Onde estava ... por Alice Vieira
Alice Vieria

Onde estava ... por Alice Vieira

Alice Vieira. Jornalista e escritora. Nasceu em Lisboa a 20 de março de 1943.
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“Em janeiro de 1974 estava em Paris. Saí de Portugal em 1962 zangada com o país, com a família, com os amigos e, sobretudo, com os cortes que a censura fazia aos meus textos no “Diário de Lisboa”, jornal onde eu trabalhava há um ano. Zangada com a falta de liberdade que por cá se vivia. E dou um exemplo engraçado: Um dia, fiz uns bolos para mandar a uma tia, porque sabia que ela apreciava muito. Os bolos chamavam-se (e chamam-se) russos. Telefonei e disse-lhe “os russos já aí vão”! Pouco tempo depois, tinha à porta da rua uma data de polícias à minha espera, que me levaram para a esquadra. Lá estive horas e horas a ser interrogada, a responder a perguntas. ‘E onde é que estavam os russos, e com quem é que eles tinham vindo, como tinham passado a fronteira, e quem lhes tinha dado a minha morada’. Agora consigo rir-me, mas na altura não achei graça nenhuma.

Paris foi então a minha liberdade, a minha universidade. Em Paris fiz amizade com Pablo Neruda, Jorge Amado, Nicolás Guillén. E como não tinha ido para lá como emigrante ou a salto, mais impressão me fazia pensar naquilo que se estava a passar no meu país. Depois, houve o Maio de 68. Eu a correr atrás da polícia, a atirar-lhe pedras e a escrever slogans nas paredes. E, de repente, a pensar: “por que estou a lutar aqui e para quê?”. Falei muito com os meus amigos, pensei no que ia fazer. Um ano depois, apanhei um avião e voltei para Portugal. Onde, evidentemente, me integrei nos grupos que lutavam pelo fim da ditadura.

A minha filha nasceu em 1970 e eu lembro-me de a ir passear no carrinho com toda a papelada de propaganda que era preciso distribuir debaixo do pequeno colchão. Lembro-me de ver as pessoas quase sempre vestidas de escuro e de perceber que nenhuma mulher entrava sozinha num café.

Voltei para o Diário de Lisboa, onde a censura cortava ainda mais.

A Pide cortava coisas perfeitamente incompreensíveis. Um exemplo: Quando Grace Kelly veio a Portugal, escrevi que era filha de um pedreiro. A censura cortou porque, evidentemente, uma princesa não podia ser filha de um pedreiro.

Quando chegou o 25 de Abril ninguém acreditava que fosse possível. Lembro-me de fugir para casa, convencida de que se tratava de um golpe comandado por Kaúlza de Arriaga, de que se estava à espera.

Quando cheguei a casa, o meu marido tranquilizou-me. O Kaúlza não tinha nada a ver com aquilo. Nasceu então um país novo, gente nova, trabalhos novos. Ou seja, nasceu a liberdade”

Depoimento recolhido por Alexandra Tavares

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