"Ocultar a ocultação passa a ser um abuso da Igreja"
A Comissão Independente para o Estudo dos Abusos Sexuais de Crianças na Igreja Católica apresentou esta terça-feira o último balanço antes do relatório final: 424 vítimas e centenas de abusadores. Só 47 poderão ser investigados pelo Ministério Público, os restantes crimes prescreveram. Mas a equipa vai entregar uma lista dos denunciados à hierarquia católica e, dos que estão vivos, ao Ministério Público.
"Os abusos não são da Igreja, são cometidos por membros da Igreja. Se acontecer a ocultação da ocultação, passam a ser abusos sexuais da Igreja", defendeu Laborinho Lúcio.
O juiz conselheiro jubilado, um dos seis membros da Comissão, falava sobre o papel dos católicos na denúncia dos abusos sexuais de crianças, crime público desde 2007, como sublinhou. Agressões ocultadas durante anos e que, sobretudo a partir da declaração do Papa Francisco de "tolerância zero", tiveram "abertura completa" para serem investigadas. Mas, se a Igreja persistir na ocultação, o ex-ministro da Justiça considera que passam a ser abusos sexuais da Igreja.
Uma posição que vem, também, a propósito do bispo de Leiria José Ornelas, presidente da Conferência Episcopal Portuguesa (CEP), estar a ser investigado pelo Ministério Público (MP) por duas situações de alegado encobrimento. A Comissão reiterou que mantém o silêncio sobre casos concretos, nomeadamente os vindos a público. Sobre as denúncias de abusos sexuais do ex-bispo de Díli, Ximenes Belo, frisou que o âmbito de ação da equipa é apenas a Igreja Católica portuguesa.
A Comissão enviou para o Ministério Público (MP)17 casos passíveis de investigação e está a estudar mais 30 que não terão prescrito. Na lei portuguesa, o crime de abuso sexual de menor prescreve cinco anos depois de a vítima completar 18 anos, ou seja, aos 23 anos. O Parlamento aprovou no ano passado propostas para alargar o prazo, mas o processo ainda não teve continuidade.
Independentemente dos casos de abusos sexuais na Igreja terem prescrito, a CEP irá receber "a listagem de todos os nomes de membros da Igreja Católica portuguesa reportados à Comissão", anunciou o pedopsiquiatra Pedro Strecht, o seu coordenador. E para o MP irão todos os nomes dos que ainda estão vivos, a maioria.
"O MP não pode fazer nada nas situações que prescreveram, mas decidimos enviar no sentido de, porventura, serem tomadas medidas de prevenção. É uma ação claramente preventiva", justificou Laborinho Lúcio. E acrescentou: "Em relação ao que a Igreja pode fazer, não há prazo de prescrição e, aí, temos de esperar pelo relatório final".
O psiquiatra Daniel Sampaio referiu que "a ocultação é inerente ao abuso sexual" e que a função da equipa foi a de tirar "esse manto de ocultação". Salientou que "as vítimas estão numa situação de grande vulnerabilidade".
"Se os crimes prescreveram, o sofrimento das vítimas persiste e a ele continuamos atentos e solidários", prometeu o pedopsiquiatra. Até porque existem "diversas situações em que o mesmo alegado violador é referido por diferentes pessoas ao longo dos anos, o que revela a noção de risco de prossecução temporal deste tipo de atividade e em locais diversos onde vão sendo colocados para exercer atividade religiosa".
Os 424 testemunhos - entre os quais oito enviados pelas 21 comissões diocesanas -, dizem respeito apenas às vítimas com menos de 18 anos à data dos abusos sexuais. Deram "depoimentos consistentes" e traçam "quadros graves existentes ao longo das décadas, mais evidentes quanto mais para trás se recua no tempo, sendo que em alguns locais assumiram proporções verdadeiramente endémicas", concluiu a equipa.
A socióloga Ana Nunes de Almeida explicou que o limite de 17 anos de idade é o que está contemplado na Convenção dos Diretivos da Criança. "Tivemos testemunhos de mulheres que, à data, tinham 18 e mais anos, que descartámos, bem como quem estava no estrangeiro". Essas pessoas foram aconselhadas a dirigirem-se a outros organismos.
Marcelo Rebelo de Sousa considerou que o volume de queixas "não parece particularmente elevado", o que motivou críticas dos partidos, da esquerda à direita (ver última página).
"O número mínimo de outras vítimas referidas nestes depoimentos será, no final, muitíssimo maior do que as quatro centenas", sublinhou Pedro Strecht. "Atinge crianças de ambos os sexos, quase todas então católicos e praticantes, com maior proporção de rapazes, de todos os pontos do país, englobando as diversas realidades e grupos sexuais."
O relatório final será divulgado a 31 de janeiro, quando a Comissão dará o seu trabalho por terminado. Reportará todos os testemunhos registados até 31 de outubro (através do 91 711 00 00 ou do e-mail geral@darvozaosilencio.org), cruzando com a informação do MP e da PJ. E o Grupo de Investigação Histórica está a fazer um levantamento dos arquivos eclesiásticos entre 1950 e 2022.
Apenas os depoimentos registados até ao final do mês serão contemplados na amostra de trabalho, mas a equipa continuará disponível para "ouvir todas as pessoas" e "recolher todos os dados".
ceuneves@dn.pt