O terror de uma rapariga que sonha ser militar: "A minha vida tornou-se num inferno"
Debilitada e medicada pelo excesso de esforço físico terá sido violentamente agredida e ameaçada por outra militar, uma aspirante e um sargento. O Estado-Maior do Exército reduz as agressões a um "desentendimento entre duas militares em formação" e abriu três processos disciplinares, um deles contra a própria queixosa. O Ministério da Defesa garante que "existe uma clara consciência de que eventuais comportamentos inaceitáveis devem ser averiguados e tratados".
Catarina nunca imaginou o que ia passar nas primeiras semanas de recruta. Quando chegou a Abrantes, localização do Regimento de Apoio Militar de Emergência (RAME), onde os candidatos a praça recebem a sua formação, ia "orgulhosa" por ter passado nos testes de admissão com uma das melhores notas (15,25).
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Licenciada, atraente, deu nas vistas pela sua educação, conhecimentos e determinação. "Como faço bastante voluntariado, comecei a pensar em ser militar como uma forma de servir o país e ajudar as pessoas. Assisti a todo o trabalho das Forças Armadas durante a pandemia e pensei (ainda penso) que era mesmo aquilo que queria", explica Catarina (o nome é fictício para sua proteção).
A sua mãe corrobora. "Umas colegas dela diziam-me que era a recruta mais feliz do quartel", afirma.
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A intensidade dos exercícios físicos eram para si um desafio, habituada que estava a manter a boa forma no ginásio. Mas nada tinha preparado Catarina para aquilo com que se iria deparar logo a partir da segunda semana de recruta.
O esforço físico exigido levou-a à exaustão e à ansiedade, acabando por ir parar ao hospital com uma crise de taquicardia.
Apesar de lhe ter sido prescrita uma baixa médica de três dias, no segundo dia, alega que, por ter limpado mal a arma, foi obrigada a rastejar pelo chão de terra à noite, vários metros.
Exausta, foi atingida por uma pedra vinda da direção onde estava o sargento instrutor. Acertou-lhe na cara, rente ao olho. Não se quis queixar, porque sentia que, por causa da sua crise cardíaca, começava a ser olhada "com ar de gozo" por alguns camaradas e superiores.
Nessa mesma noite, quando pensava que podia descansar e recuperar forças, Catarina e as suas duas outras camaradas de caserna (havia uma quarta, que terá desistido na primeira semana), ainda receberam ordens para ir limpar a caserna masculina, sob a justificação de que "os rapazes não a limpavam em condições".
Foi só quando se levantou que notou que o olho estava inchado e ligou a um alferes a pedir gelo. "Não queria que mais ninguém soubesse, pois não podia acreditar que o sargento tinha atirado a pedra de propósito contra mim e não o queria prejudicar", contou ao DN.
Castigos, cópias, água suja, esforço até à exaustão
Catarina ficou a saber mais tarde que estava a ter o seu primeiro contacto com os castigos no âmbito da "Formação Orientada de Desenvolvimento de Atitudes", na gíria castrense, as "F.O.D.A"s". Estes castigos, normalmente exercícios físicos mais rigorosos, podem ser aplicados por alguém fazer mal a barba ou a cama, ou por a assuntos mais graves, relacionados, por exemplo, com a segurança da arma ou com os deveres militares.
"Toda a gente sabe que é assim que funciona e serve para criar resistência e sentido de disciplina", diz, reconhecendo que no início até sentia que estava a "ficar com mais massa muscular".
O problema é quando estes "castigos" nada têm a ver com esses princípios, de resistência ou disciplina, como é a obrigação dos militares, como aconteceu a Catarina, e surgem castigos como copiar quinhentas ou mil vezes a designação de todos os postos ou deveres militares.
Ou então, quando a exigência física os leva à exaustão, "a ponto de vomitarem" sob gargalhadas dos mais velhos. Ou serem obrigados a beber água suja de lixívia e areia, como experimentou. A "cadeira imaginária" (agachamento estático), os "planadores" (esticar os braços lateralmente e rodá-los em movimentos curtos) são outros exemplos.
No dia a seguir à pedrada, outro recruta não terá cumprido um castigo das cópias e por causa disso todo o grupo levou para o fim de semana o TPC de copiar 400 vezes os postos.
Ainda foram obrigados a comparecer às seis da manhã "de t-shirt e botas molhadas" (outro dos castigos) à porta da caserna masculina.
Mais um momento de ansiedade, segundo nos relata Catarina, porque nessa sexta-feira, dia 11 de novembro, tinha uma consulta no Hospital das Forças Armadas (HFAR) e tinha de estar "impecavelmente fardada às 6h20".
No HFAR foi vista por uma equipa médica experiente na condição física dos recrutas e foi-lhe diagnosticada "rabdomiólise", uma doença que destrói as fibras musculares e pode ser causada por excesso de atividade muscular, normalmente associada à intensidade do esforço físico.
"Disse-me que se morresse não era problema"
Como se não bastasse, quando regressava a casa do hospital recebeu a notícia de que o seu avô, de quem era muito chegada, tinha falecido.
Voltou ao quartel na segunda-feira, emocional e fisicamente debilitada. Por não ter, obviamente devido às cerimónias fúnebres, concluído as 400 cópias, revela que foi obrigada a ver os seus camaradas a rastejarem pelo chão e a rebolarem até vomitar, como castigo da sua própria falha.
"O sargento ainda se riu na minha cara e perguntou-me quem é que me tinha dado autorização para ligar ao alferes por causa de um olho negro", revela, com a voz tremente por recordar esses momentos.
Resolveu no dia seguinte falar com um tenente da companhia de formação sobre o que lhe estava a acontecer. Achou que tinha ficado "preocupado", mas não teve disso eco.
"A partir daí a minha vida tornou-se no inferno", assinala. É esta a descrição na primeira pessoa, sobre o que lhe aconteceu nos dias seguintes: "Uma aspirante obrigou-me a rastejar em direção ao chuveiro e a tomar banho de água fria, depois a fazer marcha híper fletida, apesar de eu lhe ter dito que tinha dispensa médica devido a me ter sido diagnosticada rabdomiólise. Comecei a sentir-me mal e pedi por diversas vezes à aspirante para que me autorizasse a tomar a medicação receitada pelo médico, ao que ela se riu na minha cara dizendo que se eu morresse não seria seu problema. O sargento que assistia ameaçou-me várias vezes, acusando-me de ser mentirosa pelo facto de ter falado com o tenente por causa de uma pedrada. Fui coagida a assinar uma folha em como tinha mentido em relação à pedrada. As minhas camaradas de pelotão foram obrigadas a assinar como testemunhas".
A 21 de novembro contraiu covid-19, mas não houve sequer isolamento, apesar de ainda estar mais debilitada e febril. Desequilibrou-se numa prova de avaliação e terá sido obrigada a ir para debaixo de chuva durante cinco minutos, com os braços em cruz, sem qualquer proteção.
"Durante esse período ouvi das camaradas do outro pelotão que elas estavam a ser punidas com as ditas F.O.D.A"s e que a aspirante lhes garantiu que enquanto certas pessoas, como eu, não desistissem, elas continuariam a sofrer com tamanhos castigos. Percebi que estavam a fazer tudo para que desistisse."
Mãe ouviu por telefone a filha a ser espancada
Segunda-feira, 28 de novembro, uma militar, também recruta, mas do curso anterior, foi ao quarto onde estava Catarina. "Agarrou-me pelo cabelo e levou-me para o chuveiro, começou a bater-me, aos pontapés e aos socos. Tentava defender-me, mas estava sem forças".
Dolorosamente, a sua mãe ouviu tudo. Catarina tinha ligado quando sentiu a militar chegar e deixou o telefone em cima da cama.
"Foi a pior coisa que me aconteceu na vida. Fiquei desesperada. Disse-lhe foge, vai ter com alguém que te ajude", confirmou a mãe ao DN. Ainda conseguiu ligar para o quartel e contou a um alferes que a filha estava a ser espancada. "Às 5 da manhã ligou-me a dizer que já estavam a ser tomadas medidas".
Desse episódio ficou o registo fotográfico dos hematomas que lhe marcaram todo o corpo, pernas, braços, peito, em enormes manchas púrpuras que se tornaram depois negras.
Há também um vídeo que enviou à sua mãe, a que o DN teve acesso, que alguém gravou e lhe deu, que testemunha a etapa final dessa brutal agressão.
Catarina está sentada encostada à parede da caserna, mãos amarradas no regaço, com um olhar meio perdido, cabelo escorrido pelos ombros, quando a mesma militar que a tinha espancado lhe atira com baldes de água à cara enquanto ri e grita para ela. Outra militar fardada está na sua frente a observar.
"Por amor de Deus, ajuda-me mãe"
Noutro vídeo, de rosto inundado de lágrimas, descreve à sua mãe as agressões. Percorre com a câmara do telemóvel o seu quarto e sussurrando, em pranto, mostra a destruição. "Partiram-me a cama toda mãe, a minha roupa toda vandalizada. Partiram-me tudo. Não sei onde vou dormir. Não sei o que fazer, mãe. Por amor de Deus, ajuda-me, mãe. Destruíram as minhas coisinhas todas. Não aguento mais. O que faço, quem é que eu chamo?"
Dois dias depois, dia da cerimónia de juramento de bandeira, os pais de Catarina foram ao quartel e denunciaram ao comandante o que se tinha passado.
Nesta altura, a mãe recebeu uma chamada de Catarina. "Tínhamos um código de dois toques que era para eu só ouvir. E ouvi a mesma militar que lhe tinha batido a gritar -lhe que se não desistisse lhe dava um tiro a ela, a mim e que ia para a cova ter com o avô". O comandante, assevera, "mostrou-se muito preocupado, até nos recomendou a fazer também queixa à Polícia".
Questionado pelo DN, o gabinete do Chefe do Estado-Maior do Exército (CEME), Nunes da Fonseca, confirma esta reunião com o comandante. "Os pais da soldado-graduado do 8. º Curso, em deslocação ao RAME no dia 30 de novembro para assistir à cerimónia de Juramento de Bandeira, reportaram os acontecimentos e foram recebidos pelo Coronel Comandante do Regimento."
Exército: tratou-se de "um desentendimento entre duas militares"
Mas a versão que o Exército diz ter apurado é de que tudo não passou de "um desentendimento entre duas militares em formação no RAME, com alegadas agressões físicas e verbais, ocorrido entre os dias 28 e 29 de novembro".
Sublinha fonte oficial do ramo que, "não obstante tratar-se de uma ocorrência não diretamente decorrente do serviço ou da ação da hierarquia, o Exército não se alheou dos acontecimentos e adotou as diligências previstas nas suas normas e regulamentos. Foi contactada a Polícia Judiciária Militar e foi imediatamente instaurado um Processo de Averiguações, tendo em vista o apuramento cabal, com rigor e precisão, de todos os factos, com eventual existência de matéria disciplinar militar. De forma a prevenir eventuais contactos adicionais entre as duas soldados-graduados, a militar do 8. º Curso foi transferida, com a sua concordância, da caserna feminina comum para as instalações femininas da Casa de Sargentos. Os pais da militar foram informados pelo Comandante do RAME que, face à natureza dos factos comunicados, deveria ser também apresentada queixa junto das autoridades policiais".
Acrescenta o mesmo porta-voz de Nunes da Fonseca que foram instaurados três processos disciplinares com acusação contra a soldado que Catarina denunciou (a qual, entretanto, chumbou no curso e foi excluída a 15 de dezembro), à própria Catarina, acusada por esta, pela aspirante e pelo sargento de os ter ameaçado e agredido, e a uma oficial, comandante de pelotão da alegada agressora de Catarina, mas que o Exército diz não estar "diretamente relacionado com o episódio de agressões em causa". De acordo com a mesma fonte oficial, está "a decorrer o prazo para apresentação de defesa sobre as acusações imputadas".
As lesões de Catarina estão confirmadas por fotos, mas também por relatórios médicos que juntou a uma queixa que fez na Polícia contra a outra recruta, tal como o diagnóstico médico da rabdomiólise e síndrome de ansiedade ao esforço físico.
O seu desespero é visível, tanto quanto surpreendente a sua capacidade de resistência e o desejo de não querer abandonar o quartel. Alega que ouviu outras histórias de raparigas que são agredidas, psicológica e fisicamente, que acabam por desistir. "Também rapazes", frisa.
Nunca ouviu falar da Unidade de Prevenção de Assédio (UPA) na Defesa Nacional, criada em março de 2021 pelo então ministro da Defesa Nacional, João Gomes Cravinho. O Exército e o MDN asseguram que há na formação aulas sobre este tema (ver textos relacionados).
Quando falámos com Catarina, antes do Natal, confirmou que não tinha sido alvo de mais agressões físicas, mas apercebeu-se de alguma pressão sobre outros recrutas para que a ostracizem. "É um bullying constante que vou ter de aguentar até ao final de janeiro, quando terminar a recruta. Gostava só que alguém me ouvisse. Já nem falo por mim, mas por outros militares nas minhas condições. Acho que, no meu caso, por ser mulher e licenciada posso representar uma ameaça e tentam por tudo que desista."
Mónica Quintela: "situações chocantes"
Catarina reconhece que "há também histórias positivas". Tem como exemplo outro pelotão de recrutas mulheres que treinava na mesma altura "em que havia um espírito de equipa incrível e instrutores que são como pais".
O caso de Catarina chegou também ao conhecimento da deputada do PSD Mónica Quintela, que se manifestou chocada. "Situações de agressões físicas e assédio configuram práticas inadmissíveis em qualquer democracia respeitadora dos Direitos Humanos e, por isso, intoleráveis em qualquer instituição, designadamente nas Forças Armadas".
Considera que "as situações" de que teve "conhecimento são chocantes e contrastam violentamente com a intenção da recém-criada UPA e com as políticas anunciadas pela atual ministra para criação de um plano para recrutar e manter mais mulheres na Defesa".
Para Mónica Quintela, as descrições de Catarina "chocam também com as medidas anunciadas em 2019 no Plano Setorial para a igualdade na Defesa Nacional, como a criação da figura do assessor de género junto dos chefes dos ramos militares, a elaboração de um código de boa conduta para a prevenção de assédio ou a utilização de linguagem não discriminatória".
Sublinha que "o objetivo da UPA seria reforçar a responsabilidade de todos os militares, militarizados e civis que exerçam funções na Defesa Nacional, no que respeita à sua conduta, no estrito cumprimento dos princípios do rigor e da transparência, da legalidade, da igualdade e não discriminação, por forma a gerar e manter a credibilidade e o prestígio da Instituição que representam."
Acrescenta que "ofensas à integridade física consubstanciam crime previsto e punido no Código Penal e não podem, em circunstância alguma, confundir-se com disciplina e/ou hierarquia".
Lembra que "o ex-ministro João Cravinho, na campanha que lançou no Dia internacional da Mulher em Março de 2022, referiu expressamente "que proteger os que denunciam e atuar sobre aqueles que agridem é mais um passo no caminho da igualdade."
Assinala que "em finais de 2021 havia apenas 13,2% de mulheres nas Forças Armadas sendo necessário a implementação de boas práticas para aumentar esta percentagem".
"Não obstante saber que situações de agressão e assédio não são de todo, a prática habitual das Forças Armadas, não podemos deixar que "algumas maçãs podres contaminem o pomar", prejudicando o prestígio e bom nome da instituição e causando sério prejuízo às vítimas. O Ministério da Defesa Nacional tem o dever de pugnar pela erradicação de condutas violentas, humilhantes e degradantes, desconformes à lei e à Constituição", conclui.