“O sarampo não é uma doença qualquer. Pode provocar morte, surdez, pneumonia e encefalites”
Os números divulgados esta semana pela Organização Mundial da Saúde (OMS) são elevados, assustadores, mas o que podem representar para toda a Europa e para países como Portugal?
Os números da OMS representam um risco imenso de sarampo na Europa e no mundo. Neste momento, a incidência é muito mais elevada na Europa, mas também há surtos no resto do mundo e isso significa, naturalmente, que há mais riscos para todos os países, incluindo Portugal. Felizmente, temos um nível de vacinação muito elevado, que se manteve em 2023 e ao longo de toda a pandemia, sobretudo nas idades em que a vacinação é recomendada no Plano Nacional de Vacinação (PNV) - há dois dias recebemos os resultados da vacinação referentes ao ano passado e 98% das crianças até aos dois anos já tinha a vacinação contra o sarampo e 95% das crianças até aos seis anos já tinha a segunda dose recomendada no esquema vacinal do PNV.
Isso significa que Portugal está preparado para fazer face a um surto de sarampo?
Portugal está preparado e a população também, porque estes níveis de vacinação não são de agora, são de há muitas décadas e, por isso, temos vários tipos de imunidade na população. Ou seja, temos a população que nasceu antes de 1970 e que foi toda imunizada pela doença, depois temos um misto na população seguinte, em que havia doença mas já havia também a vacina, que apareceu em 1973 e em 1974 entrou no nosso PNV. A partir daqui temos a população vacinada, o que quer dizer que, na generalidade, está imunizada. Mas isto não quer dizer que não haja assimetrias, porque, naturalmente, que dentro do país temos comunidades - ou o que chamamos de bolsas suscetíveis - menos vacinadas e às quais temos de prestar maior atenção. Só que o nosso PNV está tão enraizado dentro do nosso sistema de saúde que as unidades de saúde pública têm sempre essas comunidades de “baixo de olho” e, numa altura como esta, os alertas às unidades locais, regionais e nacionais já foram reforçados e está a fazer-se uma avaliação de risco para se determinar se são precisas medidas adicionais.
O alerta da OMS coincidiu com o registo de três casos em Portugal, dois importados, vindos do Reino Unido, e um terceiro relacionado com estes, mas tem havido mais suspeitas?
Como disse a situação está a ser avaliada, mas a informação que temos não é de alarme para Portugal, estamos a vigiar caso a caso. O nível de alerta é muito elevado na Europa, através de recomendações do Centro Europeu de Controlo de Doenças (ECDC, sigla inglesa) e por parte da OMS, e nós fizemos o mesmo. Os profissionais de saúde estão muito mais atentos à doença e as investigações epidemiológicas que fazemos são caso a caso, identificando-se os vários contactos, que é de onde podem surgir suspeitas. Portanto, o nosso nível de alerta aumentou e o número de suspeitas também. Aliás, todos os dias temos suspeitas que são enviadas para o Instituto Nacional de Saúde Ricardo Jorge (INSA) para serem analisadas. Até agora só temos três confirmados, mas não podemos excluir a hipótese de virmos a ter mais casos de sarampo. Como disse também, a avaliação do risco está a ser feita para determinarmos se são precisas medidas adicionais a nível local ou nacional.
“É precisa uma cobertura de vacinação de 95% para se conseguir imunidade de grupo na população e evitar que o vírus se transmita de pessoa para pessoa facilmente”
Quais são essas medidas adicionais?
A metodologia do PNV, que está assente na estrutura do Serviço Nacional de Saúde (SNS), nos cuidados primários e de saúde publica, implica que todos os casos sejam investigados, bem como todos os contactos próximos. Faz-se uma vigilância ativa e passiva para ver se as pessoas desenvolvem sintomas e qual é o seu nível de vacinação. Por exemplo, mesmo sem um nível de incidência de sarampo elevado o sistema informático do PNV deteta as pessoas que estão com as vacinas em atraso e estas são chamadas pelos centros de saúde para corrigirem a situação. Este sistema de informação, que temos desde 2003, está ligado ao sistema nacional de utentes e permite-nos fazer a gestão da vacinação e não deixar ninguém para trás, as convocatórias são automáticas e podem seguir por correio, telefone, SMS ou email.
Essa vigilância do sistema é uma das razões para o sucesso da vacinação em Portugal?
Sem dúvida, porque nunca deixamos de repescar as pessoas com esquema vacinal em atraso, quer na vacinação da infância até aos 18 anos, quer nos adultos. Mas também são aproveitadas outras oportunidades para relembrar a vacinação às pessoas, quando vão a uma consulta e se percebe que têm, por exemplo, a do tétano em atraso, pergunta-se se não querem fazer na hora. O não deixar ninguém para trás, garantindo que mais cedo ou mais tarde, as pessoas são vacinadas é uma das características do nosso PNV. Outra característica é o ser gratuito, o que não acontece em todos os países (há alguns em que a pessoa paga primeiro e depois é reembolsada) e o ser para todas as pessoas presentes em Portugal, imigrantes e até emigrantes (que aproveitam muitas vezes as férias para se vacinarem). São todas estas pessoas que correm o risco de doença e se não estão vacinadas devem ser. É uma questão de saúde pública.
É o PNV é dos que integra também o maior número de vacinas?
Essa avaliação não sei fazer, mas temos 13 doenças incluídas no PNV. Por outro lado, é um PNV que permite o acesso fácil à vacinação, não é necessário marcar uma consulta médica para a prescrição. As normas publicadas, e a última atualização foi feita em 2020, vão no sentido de todos os profissionais de saúde que vacinam saberem as regras e quem deve ser ou não vacinado. Isto permite também maior equidade e que as pessoas sejam vacinadas o mais rapidamente possível.
Em relação ao sarampo há quem pense que é mais uma doença da infância, mas é uma doença perigosa. Porquê?.
O sarampo é um exemplo, uma prova, digamos assim, que usamos para mostrar às pessoas que duvidam dos números, porque se não tivéssemos uma cobertura vacinal tão elevada teríamos surtos da doença. E se tivéssemos surtos, estes não passariam despercebidos. O sarampo é uma das doenças de maior contagiosidade (entre as populações não vacinadas a média de contagiosidade é de uma pessoa doente para sete) e a vacinação protege. A má notícia é que o sarampo é uma doença muito transmissível, a outra má notícia é que apesar de haver muitos casos que são ligeiros, há outros mais graves, que podem provocar encefalite ou, anos mais tarde, quando os casos são muito cedo na infância, pan-encefalite esclerosante aguda, que produz deterioração mental e ser fatal. Portanto, não é só uma daquelas doenças da infância, não é uma doença qualquer é uma doença que pode provocar a morte, surdez, pneumonia e encefalites. A população deve estar alerta e não se fiar na situação de que à sua volta “os vizinhos estão todos vacinados”. Com a mobilidade, temos hoje constantemente pessoas a entrar no país vindos de outros países com surtos, por outro lado também viajamos mais e podemos estar expostos a este risco.
Os dois primeiros casos registados vieram do Reino Unido, é um dos países com uma taxa de vacinação baixa?
O Reno Unido é dos países que costuma ter uma elevada cobertura vacinal, mas é dos países da Europa que está a viver um grande surto grande de sarampo. E, obviamente, é uma fonte de risco para Portugal, porque temos muitas pessoas que vão para lá e que vêm para cá. Neste momento, a sua cobertura de vacinação contra o sarampo é da ordem dos 85%, não chega aos 90% nem aos 95%, como nós, e o risco existe, porque, reforço, o sarampo é uma das doenças mais transmissíveis. São precisas taxas de cobertura da ordem dos 95% (a nossa é de 98%) para conseguirmos ter imunidade de grupo na população de forma a impedir que o vírus se transmita de pessoa para pessoa tão facilmente.
Mas quais são os países que estão a ter surtos mais significativos?
O Reino Unido e de acordo com informação do ECDC a França, a Áustria e a Roménia. Por exemplo, a Roménia, em 2023, teve um surto com mais de 1600 casos e a Áustria 172. Nem todos os países têm uma estrutura de saúde pública como o nosso país, em que todos os casos de sarampo ou suspeitos são notificados e investigados.
Estes surtos estão a surgir no período pós-pandemia isto quer dizer que podem ter a ver com a emergência de grupos anti-vacinas, que ganharam força com a covid-19?
O que verificamos, e é o que dizem também a OMS e o ECDC, é que muitos países durante a pandemia tiveram dificuldade em garantir os serviços de vacinação para dar resposta à covid-19, e esta, possivelmente, será a principal razão. As pessoas ficaram confinadas, esqueceram-se da vacinação e os serviços estavam tão assoberbados com a gestão da pandemia que não as chamaram. Portanto, houve um atraso na vacinação. Mas o facto de ter surgido uma vacina muito rapidamente para a covid também deixou as pessoas muito desconfiadas, havendo por todo o mundo um aumento dos movimentos antivacinação, inclusive em Portugal. Só que no nosso caso, e como já disse, o PNV está tão enraizado nos serviços de saúde, que os profissionais nunca abdicaram da vacinação, apesar das muitas dificuldades na gestão da pandemia. Assim que houve o primeiro confinamento foram feitos alertas aos profissionais e à população para que fizessem a vacinação, sobretudo às crianças até aos 12 meses, às gravidas e às pessoas de grupos de risco, e as próprias pessoas exigiram a vacinação. Recebemos telefonemas de pessoas que queriam saber onde poderiam ir receber a vacinação.
Está na coordenação do PNV desde 2017, que balanço faz? Prevê-se alguma atualização com a entrada de novas vacinas?
O PNV foi criado em 1965 é um plano dinâmico, já foi atualizado diversas vezes, sendo que a última atualização ocorreu em 2020 com a introdução de duas vacinas, a Meningocócica B para as crianças de dois, quatro e 12 meses, e a do HPV para os rapazes. E o que vemos hoje é que a cobertura destas vacinas já é igual às das outras no primeiro ano de idade e, em relação ao HPV, idêntica à das raparigas. Neste caso, só a segunda dose é que ainda tem uma cobertura de 85% na vacinação dos rapazes, o que também é natural ,porque ainda se está a transmitir a mensagem que os rapazes também têm direito a esta vacinação. De acordo com o PNV, tal como as raparigas os rapazes podem fazer a vacinação do HPV aos 10 anos e ficam protegidos contra vários tipos de cancro, como o anal e da zona da cabeça.
Há novas vacinas que estejam a ser avaliadas para integrarem o PNV?
O PNV é um programa dinâmico e para isto a DGS conta com o apoio da Comissão Técnica de Vacinação, que vai analisando a parte mais científica, conforme as vacinas vão estando disponíveis e conforme a epidemiologia dessas doenças no nosso pais. Neste momento, temos várias vacinas que estão a ser avaliadas para entrada no PNV, como: contra o Herpes Hoster, vírus sincicial respiratório e está a ser avaliada a revisão do esquema vacinal do HPV e dos grupos de risco a abranger. É um trabalho que envolve os técnicos da DGS e da comissão de vacinação que termina com propostas apresentadas ao Ministério da Saúde que avalia e toma uma decisão.