O sal não é todo igual. Os chefs revelam as diferenças
Quem nunca provou cada pedrinha, condimento essencial e indispensável ao prato da cozinha, da mais simples e humilde à mais faustosa, não pode realmente conhecer as diferenças entre as várias categorias deste autêntico arcano da natureza. Jorge Raiado, proprietário de salinas nos sapais protegidos de Castro Marim, na extrema do Sotavento algarvio, prova o sal - o da sua produção e o de outras proveniências - com a mesma curiosidade de um epicurista perante as mais delicadas iguarias. Em cada montinho de sal, sobre uma fina pedra de xisto, Jorge encontra sabores diferentes: um travo mais amargo do magnésio, um caráter picante do potássio, um gosto a mar em virtude do cálcio, um caráter a aguardente pelos vestígios de iodo - a prova de que o sal marinho, além de não ser apenas cloreto de sódio, não é todo igual.
As salinas são um prodígio da natureza. O que lá se passa, até que a água do mar seja transformada em sal, é uma lição de química inimitável em laboratório. O assombro está na proeza em reunir cloro, sódio, magnésio, potássio, cálcio, iodo - tudo num único cristal.
A água chega a um primeiro tanque retangular cavado na terra e por aqui fica durante três ou quatro dias a evaporar por ação do vento e do calor. O que resta passa para um segundo tanque e deste para um outro, cada vez em menor quantidade, e a seguir para um quarto tanque e daqui, finalmente, para os talhos, ou cristalizadores, onde repousa ao sol e ao vento, já com muita concentração de sal invisível aos olhos, para se transformar em cristais - e assim se completa o mistério do sal.
Portugal produz uma média anual de cento e poucas mil toneladas de sal marinho. Os últimos números conhecidos - e divulgados pelo Instituto Nacional de Estatística (INE) - são relativos a 2022: das 52 salinas então em atividade, repartidas por Aveiro, Figueira da Foz, Tejo, Sado e Algarve, saíram 117 mil toneladas. No ano anterior estavam registadas 36 salinas - que produziram por junto 90 mil toneladas.
Mas esta gigantesca montanha de sal retirado do mar tem muito que se lhe diga. Uns bons 83%, ainda segundo o INE, são extraídos por meio de maquinaria, de modo intensivo, apressadamente, sem o vagar e a paciência dos métodos tradicionais.
Nas salinas industriais não há tempo a perder. A água não fica o tempo necessário nos tanques de evaporização: passa de tanque para tanque, dia após dia, sem descanso - e chega aos talhos finais ainda sem grande concentração de sal. Os cristais são colhidos às toneladas ainda em formação. Têm potássio, magnésio, cálcio, iodo - em maior ou em menor quantidade - e escasso cloreto de sódio. São, por isso, menos salgados. A lei obriga a que o sal de mesa tenha, pelo menos, 94% de cloreto de sódio. Este sal “precoce” é então lavado com água salgada. A lavagem não acrescenta o que lhe falta. Retira-lhe o potássio, o magnésio, o cálcio, o iodo. A aritmética faz o resto: sobe a percentagem de cloreto de sódio exigida por lei. Este sal de cozinha, que surge nas prateleiras dos supermercados com a menção de ter sido refinado, é apenas sal - minúsculos grãos de cloreto de sódio quase puro. A sua cor imaculadamente branca atesta a proveniência e o grau de pureza.
A flor de sal que encantou franceses
O chef Nuno Diniz, professor do ofício e autor de livros, que já meteu a sua colher nas altíssimas panelas de França, foge do sal refinado mais depressa do que o ‘diabo foge da cruz’. É conhecido entre os seus pares pela tenacidade com que defende as honradas e velhas cozinhas do Minho ao Algarve - e não lhe venham com certas modernidades: “Andam entretidos a ‘desconstruir’ e a transformar noutra coisa o que levou séculos a construir…” O sal de mesa refinado é uma das modernidades de que ele foge.
“Não utilizo outro sal senão o sal integral”, diz Nuno Diniz ao DN. Sal integral significa que não se trata apenas de cloreto de sódio empacotado no seu estado mais puro, mas do sal que saiu da salina tal como se formou nos cristalizadores - uns cristais grados, suaves e crocantes, que ostentam uma cor de pérola, com um sabor mais ou menos amargo, mais ou menos picante, mais ou menos iodizado, e, às vezes, com um travo a maresia. Com sorte, segundo ele, “podemos encontrar no sal tradicional um notável equilíbrio de todos aqueles sabores” - magnífica subtileza impossível de descobrir no sal refinado. Engana-se quem pensa que ao sal está reservado o único dever de salgar.
Não é preciso encomendar nas plataformas eletrónicas o famoso sal de Maldon Salt, da costa britânica de Essex, ou o das salinas francesas de Camargue. O nosso sal integral, ou tradicional, em nada fica atrás dos concorrentes estrangeiros. É mais caro do que o refinado, ou industrial, e não é produzido em quantidade suficiente para encher as prateleiras dos supermercados. Segundo os dados do INE, apenas cerca de 17% das 110 mil toneladas de sal produzido em Portugal em 2022 foram de sal tradicional - o equivalente a quase 19 mil toneladas.
O ancestral processo ainda em uso nas salinas tradicionais, em que a água do mar chega aos talhos depois de passar sem pressas por quatro tanques de evaporação e ali fica ao sol e ao vento enquanto se formam os cristais, produz ainda uma preciosidade - a flor de sal. É uma espécie de ‘coalho’, um delicado rendilhado que se forma à superfície da água que evapora nos talhos, recolhido todos os finais de tarde com mil cuidados.
Até aos finais do século passado ninguém lhe ligava. Apenas os salineiros a reservavam para consumo próprio. Uns chefs franceses que vieram trabalhar na cozinha de um luxuoso hotel de Lisboa mandavam-na vir das salinas de Guérande, na Bretanha. Até que João Oliveira, um chef que aprendia com os mestres de França, meteu-se no carro e foi ao Algarve à procura de flor de sal. Trouxe uma amostra que os encantou. Mas a flor de sal das salinas portuguesas continua a ser escassa. Em 2022, de acordo com o INE, foram produzidas escassos 240 quilos.
Uma crescente legião de chefs disputam a flor de sal do Algarve. Entre eles Alexandre Silva. Uma suave coluna de fumo ergue-se à entrada do restaurante , saída de um pequeno tacho de barro onde ardem pequenos ramos de alecrim, e perfuma o ar. Ao fundo da sala, ao lado do forno a lenha, crepitam os ramos de oliveira que hão de ficar em brasa. Nesta cozinha não há fogões a gás ou elétricos - nem sal que não seja de proveniência tradicional. E há muita flor de sal - toda a que conseguir apalavrar.
Jean Anthelme Brillat - a que acrescentou o apelido Savarin após a morte de uma tia que lhe deixou toda a fortuna - foi um dos mais famosos gastrónomos franceses. Viveu no longínquo século XVIII e sabemos dele através de um livro que nos deixou, A Fisiologia do Gosto, recentemente editado em Portugal. Estudou Direito, Química e Medicina. Foi advogado, deputado, músico e juiz. Passou à história pela rara devoção com que se oferecia aos prazeres da mesa - como “um corpo que se entrega ao amor”.
Alexandre Silva, citando Brillat-Savarin, recorda que o “sal é o caviar dos pobres”. O bom sal, claro está. Não o refinado. As carnes e o peixes que saltam para o calor das brasas de oliveira apenas levam sal na hora de servir aos clientes: o sal é para finalizar, dar sabor. A flor de sal também não é para ser destruída pelo calor. Seria um crime sem nome, que nenhum cozinheiro comete. Nuno Diniz serve-se dela, por exemplo, para temperar uma sobremesa doce.
Salgado, azedo, doce a amargo
Uma musse de chocolate regada com um poupado fio de azeite levemente picante, feito a partir de azeitonas da variedade Cobrançosa, e uns flocos de flor de sal ou até uns grãos de sal tradicional por cima, o resultado é um sensacional equilíbrio de sabores - o verdadeiro eumami, palavra do distante Japão que significa ‘saborosíssimo’. O palato, explica Alexandre Silva, deteta quatro sabores: salgado, azedo, doce e amargo. A arte está em saber misturá-los de maneira a que o resultado não nos ofenda o paladar - sentido que a natureza não deu por igual a todas as bocas. O sal tradicional e a flor de sal sobre a musse de chocolate ou sobre o pão de ló de Alfeizerão, juntamente com o azeite picante, garante o chef Alexandre, ajudam a fazer de cada colherada uma rara experiência umami.
Bertílio Gomes, chef algarvio que assentou em Lisboa com pratos do Sul do país, ainda hoje se recorda de uma flor de sal muito especial que provou em Castro Marim. Foi um acaso. Um sem-número de caranguejos entraram nas salinas e, por qualquer razão, não regressaram ao mar: morreram na água cada vez mais salgada. Essa quantidade de massa orgânica ‘alimentou’ uma flor de sal cor-de-rosa e saborosa. Tão cedo não há de provar outra igual. Bertílio não usa outro sal que não seja o tradicional. Outro dia, na cozinha do seu restaurante, arrepiava uma abrótea: esfregava-lhe a pele delicadamente com sal para a expurgar de sucos e garro. O sal tradicional tinha a dupla função de arrepiar e deixar sabor.
Montanha de sal com 200 milhões de anos
Num vale frondoso do sopé da serra dos Candeeiros, andando para norte de Rio Maior, surge uma paisagem bela e invulgar: um imenso tapete branco, quase do tamanho de três campos de futebol, rodeado de arvoredo e terras de cultivo. São as salinas - e o sal ali produzido, a uns bons 30 quilómetros da costa, onde não chega uma gota de água salgada, é tão salgado como o do mar.
José Casimiro trabalha nas salinas desde rapaz. Já por lá andava com o avô e o pai e ainda não tinha braços para carregar as sacas de serapilheira, cada uma com sete medidas de sal, 70 quilos bem pesados. Hoje é o presidente da cooperativa que explora 80% das salinas. A safra anual, entre maio e setembro, quando o tempo está mais seco e sem chuva que derreta o sal, anda à roda das duas toneladas.
As salinas de Rio Maior são testemunhas de uma fantástica história natural. Era uma vez, há um larguíssimo número de anos, um número vasto, talvez uns 200 milhões, uma única massa disforme de terra repousava sobre uma casquinha ao sabor das correntes de rocha derretida nas entranhas do planeta. Ainda não havia continentes. Só esse monstruoso amontoado de terra rodeado de mar por todos os lados. Eis senão, estando tudo quieto, a casca estalou - e gigantescos pedaços de terra mexeram-se em várias direções como jangadas pesadas: um bocado moveu-se para leste e formou a Europa; outro andou para oeste e resultou a América. O sal de Rio Maior é praticamente desse tempo.
Todo o chão que hoje pisamos, mais ou menos do Mondego ao Algarve, era um manto de mar salgado pouco profundo. O clima, garantem geólogos e meteorologistas, era muito quente e seco - de tal maneira abrasador que a água do mar se evaporava velozmente. Esse mar que então cobria essa metade do território que viria a ser Portugal, submetido aos rigores do calor insuportável, transformou-se numa imensa planície de sal. As forças da natureza continuaram a fazer das suas ao longo do vagaroso andar do tempo. Quando uma parte da grande massa inicial de terra andou para oeste, há 100 milhões de anos, arrastou com ela outro formidável pedaço - e este pedaço mover-se-ia, muito depois, dando origem ao continente africano. Este novo continente há de comprimir e empurrar a futura Europa. Tudo se move lentamente, em várias direções. Começa a nascer o mar Mediterrâneo.
Prova deste deslocamento encontra-se, por exemplo, nas serras de Monchique e da Arrábida, praticamente alinhadas no eixo este-leste em resultado de afloramentos da terra brutalmente comprimida. Mas nem tudo se mexeu numa só direção. Os ferozes caprichos da natureza, duradouros e contínuos, arredaram, empurraram, destruíram, comprimiram - e o que era um mar passou a ser terra firme. Duas autênticas montanhas subterrâneas de sal - sal-gema -, uma que se estende sob a cidade de Loulé, no Algarve, e outra que abarca a Estremadura, de Leiria a Torres Vedras - ficaram aprisionadas pela terra, como “o recheio de uma bola de Berlim”, diz o professor Galopim de Carvalho.
As salinas de Rio Maior vêm deste singular fenómeno geológico. O maciço calcário e poroso da serra dos Candeeiros filtra a água da chuva - que corre em caudais subterrâneos por entre a jazida de sal-gema. Uma dessas correntes corre para sul e alimenta um poço onde chega salgada - sete vezes mais salgada do que o mar. O poço, com cerca de nove metros de profundidade, enche os 470 talhos das salinas. Depois, é só esperar entre três dias a uma semana, conforme faça mais ou menos calor, até que a água desapareça pela evaporação e apenas reste o sal.