O que leva médicos a não quererem o SNS? Desilusão, o ser “descartável” e “má remuneração”
As histórias são diferentes, mas cruzam-se no ideal da Medicina: trabalhar para o bem dos outros. Manuel, Susana e Ricardo tornaram-se médicos no Serviço Nacional de Saúde (SNS), mas em gerações diferentes. Manuel, de 47 anos, é da geração do virar do século. Leva oito anos de avanço sobre Susana Sousa, e 20 anos sobre a geração de Ricardo Reis. Como diz: “Conheci um SNS melhor.” Agora, a desilusão é total e tem a carta de demissão redigida e assinada. Só aguarda “a última gota para o copo transbordar.”
Susana não se diz desiludida. Aliás, custou-lhe a decisão de sair, mas ficou com mais tempo para a família. Ricardo Reis tem 29 anos. Terminou o 6.º ano em 2018, fez a Prova Nacional de Acesso para a especialidade em 2019, mas não lhe agradou as opções que tinha. Preferiu ir do Norte para o Algarve como tarefeiro enquanto procurava alternativas e uma delas foi rumar à Alemanha para fazer o internato em Psiquiatria. Ao fim de dois anos num hospital de Berlim, assume: “Voltar a Portugal seria dar um grande passo atrás.”
Ricardo é da geração que já fez saber a quem de direito que quer ser médico, mas com tempo para a vida pessoal, para fazer investigação enquanto faz prática clínica, e que quer ser mais bem pago e com mais qualidade de vida. Porque, para a sua geração a Medicina não está limitada ao “ideal do serviço público” ou de uma carreira no SNS.
Pelo contrário, a globalização chegou à Saúde em muitos outros países europeus ou fora do Velho Continente, que oferecem melhores condições do que Portugal. “Tenho colegas em Portugal a fazer o internato que trabalham 70 horas por semana ou mais. Na Alemanha, é impensável. Não é permitido. Somos respeitados, mas somos vistos como médicos em formação. Não podemos fazer mais de 42 horas por semana.”
453 - Este é o número de pedidos de declarações para exercer fora do país entregues nas regiões do Sul e do Centro até ao início de dezembro. Um número que supera o dos anos anteriores. Em cinco anos, 1888 médicos pediram as mesmas declarações.
As histórias de Manuel, Susana e Ricardo retratam o que leva os médicos portugueses a não querer entrar ou a querer sair do SNS. São exemplos, como dizem, de “desilusão”, do sentir que são “descartáveis”, de que “o futuro não vai no caminho do que querem”. E quando se pergunta a Ricardo o que seria preciso para voltar ao país, ele ri-se, mas com resposta pronta: “Teria de ter outras condições para trabalhar e mais qualidade de vida”, justificando: “Inicialmente, a minha ideia era fazer aqui o internato e regressar, mas, hoje, quando estou com a minha família ou com amigos todos me dizem para não fazer isso. E, de facto, não faz sentido. Seria dar um grande passo atrás.”
Ricardo Reis tem 29 anos. Está no segundo do Internato de Psiquiatria na Alemanha, em Berlim. E não se arrepende da decisão que tomou.
Ricardo não será, certamente, o único médico fora do país a optar por não voltar ou o último a procurar alternativas noutros países. “Tenho recebido a visita de muitos colegas que ainda estão em Portugal e que vêm à Alemanha ver como se trabalha e que condições oferecem.”
A Ordem dos Médicos e os sindicatos da classe têm alertada para o facto de “as saídas do SNS não irem parar”. Por exemplo, em 2023, e só até novembro, como noticiou o DN, mais de 450 médicos do Sul e do Centro do país tinham pedido à Ordem certidões para exercerem no estrangeiro. Nos últimos cinco anos, só nestas duas regiões houve quase 2000 médicos a fazerem o mesmo. O Norte só não está aqui representado porque o Conselho Regional da Ordem dos Médicos não quis dar estes dados ao DN. Mas a questão que está em cima da mesa para o país é: “E se este movimento não for travado, que futuro para o SNS?”
Para Ricardo “voltar a Portugal seria dar um grande passo atrás”
Ricardo Reis conta a sua experiência enquanto faz a pé o percurso de casa para o hospital onde trabalha em Berlim. Começa por confessar não ter tido “um motivo muito concreto para seguir Medicina”.
“Achava interessante a parte científica e atraía-me muito o facto de ser uma profissão que me levava a estar dedicado às outras pessoas. Tinha boas notas e candidatei-me.” Fez o curso na Faculdade de Medicina do Porto começou por experienciar a atividade no Hospital São João, o que, do ponto de vista da formação, “foi muito bom, mas senti logo um grande desgaste. Víamos os internos a trabalhar demasiadas horas, sem tempo para se dedicarem à sua vida pessoal ou aprofundar a formação e todos a queixarem-se um pouco do mesmo.”
Quando terminou fez um gap year, e só depois avançou para a Prova Nacional de Acesso à especialidade, em 2019. As opções com que ficou não lhe agradaram e optou por ir como tarefeiro para o Algarve, para decidir se repetia o exame ou se escolhia fazer o internato fora.
“A Alemanha foi sempre uma boa opção, tinha colegas lá, mas não falava alemão e decidi investir em cursos intensivos para aprender a língua. Levei oito meses até atingir os tais requisitos básicos e só depois é que me mudei para Berlim. Tive de fazer um exame de língua geral e outro especial para a linguagem da Medicina. Levou algum tempo, mas estou no 2.º ano do internato de Psiquiatria.” E, ao fim deste tempo, “não me arrependo em nada da decisão que tomei”, assume.
Escolheu Berlim por ser uma cidade onde considera ser “mais fácil a aceitação de pessoas que não estão tão familiarizadas com a língua materna”, mas não foi fácil deixar a família e os amigos. “O principal fator que me levou a esta decisão foi o nível de qualidade de vida que aqui se pode alcançar. Aqui, as unidades têm como filosofia que um médico interno não pode trabalhar mais do que 42 horas semanais. É claro que quando há falta de pessoal pedem aos internos para colmatar essas falhas, mas não podemos trabalhar mais do que isto. O que acaba por me dar tempo livre para dedicar à minha vida pessoal e à minha formação, o que é muito mais saudável.”
Em Portugal, um médico interno ganha cerca de menos 1500 ou mais do que um médico interno na Alemanha.
Embora diga também que, em relação à formação e em termos de qualidade, “é equivalente à que se faz em Portugal, mas a própria estrutura do internato é muito mais flexível”. Ou seja, explica, “aqui é possível mudar de especialidade e dão-nos a equivalência em relação ao que já fizemos. Em Portugal, se quisermos mudar temos de fazer nova PNA e voltar à estaca zero”.
Mas há outra diferença. “Aqui, o internato depende muito de nós, do que investimos, do que procuramos investigar e do que queremos fazer, se queremos estar a trabalhar a 80% ou a 50 %, podendo demorar quatro, cinco ou mais anos a fazer a especialidade. Em Psiquiatria, por norma, são cinco anos. Em Portugal, dependemos do que podemos fazer no dia a dia do SNS.”
As vantagens não são só estas. Em relação à remuneração “é completamente diferente. Os ordenados são muito superiores e o nível de vida em Berlim já não é muito mais caro do que no nosso país”. Aliás, reforça, “o supermercado acaba por ser equivalente e as rendas rondam os 900 e os 1200 euros, o que já é o que pagam alguns colegas em Lisboa com um salário inferior ao meu”.
Em Portugal, um médico interno ganha 1300 euros na Alemanha 2900 a 3200
Em Portugal, um médico interno recebe cerca de 1300 euros, em Berlim Ricardo revela que o seu ordenado vai aumentando consoante o avanço no internato.
“No primeiro ano rondou os 2900 euros limpos, mas acabava sempre por ganhar mais, por causa das Urgências ao fim de semana - fazia geralmente duas vezes por mês, o que me passava logo para os 3100 ou 3200 euros limpos. No segundo ano, acaba por subir um pouco mais, cerca de 200 euros.” Valor que Ricardo não consigue dizer com toda a certeza porque, no momento em que falou ao DN, ainda não tinha recebido um ordenado deste segundo ano.
Aos amigos que o visitam, o jovem médico dá o seu feedback: “Digo que emigrar não é uma má opção”, reforçando: “Aqui o interno é visto como um médico em aprendizagem e com pouca experiência, mas é um trabalhador em que o próprio hospital investe muito na sua formação.” E contrapõe: “As condições que existem em Portugal são terríveis para os médicos internos. Muitos deles estão no final da especialidade e fartam-se de trabalhar, com 70 ou mais horas por semana.”
Por tudo isto, assume que se tivesse de deixar uma mensagem aos jovens médicos em Portugal seria: “Tenham coragem para seguir os vossos objetivos, não tenham medo de procurar soluções alternativas.” Aos políticos, que “é preciso seriamente uma reestruturação do Sistema de Saúde e das condições dadas aos profissionais. As pessoas sentem-se cada vez mais frustradas.”
Médico endocrinologista há mais de 20 doentes assume que é a ligação aos doentes que o ainda mantém no SNS.
Manuel tem a carta de demissão assinada, mas na gaveta
Manuel, vamos chamar-lhe assim, porque pediu que assim fosse, não faz parte desta geração mais jovem de médicos, mas também não está entre os mais velhos: tem 47 anos e 20 de especialidade, mas é da geração que se sente “descartável” e uma “enorme desilusão”.
Entrou na especialidade de Eendocrinologia em 2001, fez doutoramento e optou sempre pelo SNS. “Nunca fiz privada”, diz-nos. E nem se vê a fazer. De tal forma, que a desilusão que sente em relação ao serviço público pode mesmo levá-lo a cortar os laços com a instituição onde sempre trabalhou, para depois ali continuar como “prestador de serviços, mas com muito menos responsabilidades e a ganhar muito mais”, admite.
A desilusão leva-o também a confessar que “esperava mais” de um Governo de esquerda e de um ministro médico, por considerar que tinham a obrigação de “valorizar o trabalho médico e de repor a perda do poder de compra”. “Foi como um balde de água fria, esta equipa retirou aos médicos a perspetiva de futuro a longo e médio prazo”, sublinha.
Mas não é só esta a razão da sua desilusão com o SNS, “há várias”, diz. “Desde o ter de ir para tribunal para o meu patrão, que é o Estado, me pagar 20 mil euros de horas extraordinárias, por considerar que não tem de mas pagar, à forma como o trabalho médico está hoje hierarquizado no SNS, à perda de autonomia e às métricas de produtividade que nos impõem, e que não são de qualidade dos cuidados, mas do número de doentes vistos e revistos.”
Manuel explica que quando entrou no serviço em que trabalha, “havia enfermeiros especializados, hoje foram deslocados para outras áreas por a administração considerar que os doentes de Endocrinologia podem ser vistos tanto nas Urgências como em serviços de outras áreas. E o trabalho médico acabou por ficar isolado, tendo nós que fazer tudo. Entro no hospital antes do administrativo chegar e quando saio ele já não está.”
O que não ajuda em nada ao trabalho de equipa num serviço ou à motivação. Mas esta ainda é agravada por “pequenas coisas”. “Tenho uma cadeira completamente rota há 15 anos, que não é substituída por não haver dinheiro”.
822. É o número de médicos que terão pedido a reforma no SNS em 2023, segundo o jornal Público, o que revela um aumento de cerca 5% em relação a 2019, superando as projeções feitas pelo Governo, com base nos dados da Administração Central do Sistema de Saúde, que apontavam para menos de 700.
Não ajuda também à motivação que “a área em que trabalho não esteja incluída na limpeza do hospital, porque lhes foi dito que os médicos deixaram de funcionar naquele espaço, quando não é verdade”. Não ajuda sobretudo “ter de ir várias vezes ao conselho de administração explicar que precisamos de agulhas de três centímetros para biópsias, porque há doentes com pescoços maiores e mais largos para quem é doloroso fazer biópsias com agulhas de dois centímetros, e termos de esperar um ano por uma decisão, quando as agulhas custavam na totalidade 70 euros”.
É desta forma que “as coisas vão acontecendo no SNS e isto desgasta muito”, desabafa Manuel, considerando que esta forma de funcionar “está a desfocar o SNS do doente”.
A grande frustração em relação ao serviço público “é exatamente esta, o não conseguir melhorar a qualidade dos cuidados para o doente”. No ano passado atingiu um limite e escreveu a carta de demissão, que mantém guardada na gaveta, mas sempre a pensar na proposta que lhe foi feita. “Sair do SNS e voltar a ser recontratado, o que é ridículo”, assume, mas “é cada vez mais difícil ficar com o trabalho de todos os outros que foram saindo e com um funcionamento que nos faz sentir que somos descartáveis e que não há futuro”.
Portanto, o caminho para o futuro pode ser “o corte institucional com a organização laboral”, mas permanecer no SNS para fazer só trabalho diferenciado, com o mínimo de responsabilidades e a ganhar muito mais, que é o que “fazem já muitos dos meus colegas”.
Se ainda mantém a carta em stand-by (ou na gaveta, literalmente) “é porque quando estou a tratar os doentes, que foram os que me trouxeram para esta profissão, a Medicina ainda me faz todo o sentido”. Mas é cada vez mais difícil agarrar-se a este ideal, pois “falta tudo o resto e, ainda por cima, sou de uma geração que conheceu um SNS melhor, onde nos serviços se formavam equipas, cumplicidades, aceitávamos fazer mais horas, porque, muitas vezes, era para apoiar um colega/amigo que estava sozinho na Urgência. Hoje, já somos poucos os desta geração, e acabamos por ficar com todo o trabalho de quem saiu”.
Manuel ainda teve alguma esperança no processo de negociação que foi levado a cabo entre o Ministério da Saúde e os sindicatos durante 19 meses e que terminou em dezembro de 2023 só com uma estrutura a assinar um acordo que visa um aumento de 15% para os médicos, o que para ele “não é praticamente nada”.
Precisamente, porque não envolve o que considera essencial em relação à valorização da profissão e à reorganização do funcionamento do SNS, vai esperar até 10 de março, para saber o que aí vem, mas a desilusão de quem esperava no início de carreira fazer Medicina só como médico do SNS, essa, já está instalada.
E o pior “é a atitude, o tratamento que nos é dado no dia a dia, fazendo-nos sentir descartáveis. Eu, por exemplo, trabalho numa unidade onde o diretor dos recursos humanos acha que não tem de receber médicos para os ouvir, para dizermos o que pensamos e o que até poderia ser feito para melhorar o funcionamento. Isto é colocar-nos de lado, é dizer-nos que somos números”. E se achava que não era possível sentir-se assim, hoje considera que, aos 47 anos, já não tem idade para um futuro com grandes projetos.
Susana diz nunca ter imaginado que o seu “percurso fosse sair do SNS”
Susana Sousa, oncologista médica, encontrou um futuro melhor há quase dois anos. Em março de 2022, deixou a instituição do SNS, onde fez toda a sua formação, prática clínica, e onde progrediu na carreira, para abraçar um projeto no setor privado, que lhe permite fazer o mesmo que estava a fazer, mas sem horas extra, sem ter de trabalhar aos fins de semana ou feriados, sem noites ou Urgências. Uma saída que, assume, “não foi de decisão fácil”: “Custou-me muito separar-me dos meus doentes e da minha equipa”.
Mas faz questão de sublinhar que nada teve a ver com desilusão no SNS: “Não procurava soluções para sair. Nem sequer nunca tinha imaginado que o meu percurso, em termos de carreira, fosse sair do SNS, nunca tinha feito privada”, comenta.
A decisão de deixar os doentes e os colegas no SNS, não foi fácil, mas foi convidada para um novo projeto onde poderia crescer mais.
A saída “teve a ver com um convite para coordenar a Unidade da Mama e de Ginecologia de um hospital privado, no Porto. No fundo, fazer o que já fazia no IPO, mantendo as mesmas áreas, o que era muito importante para mim, com estabilidade total, com um horário de trabalho semanal, sem noites, sem fins de semana, sem feriados, que foi o que fiz durante mais de 20 anos da minha vida, e a ganhar um salário que cobria tudo o que fazia no SNS”, admite.
Tudo isto associado ao projeto que considerou muito interessante e desafiante - porque “era para coordenar a clínica, dinamizando-a, fazendo-a crescer, trazendo para cá investigação e ensaios clínicos, algo que achei que me daria muito prazer” - fê-la pensar e tomar uma decisão.
E ao fim de quase dois anos, afirma: “Acho que estamos a conseguir concretizar este projeto.” Com a vantagem de “poder tratar aqui as minhas doentes com a celeridade que não conseguia no SNS, porque todos sabemos que o agendamento dos exames em Ooncologia é um problema no serviço público”.
Nesta altura, fica satisfeita por dizer que o doente em Portugal “tem várias soluções e que é bem tratado, quer num lado quer no outro”, mas não deixa de sentir preocupação em relação a algumas situações no SNS. “Todos queremos um serviço público de Saúde bom - quando este deixa de ser de grande qualidade, no que é a massa crítica, e na qualidade de formação dos seus profissionais, é claro que temos de nos sentir preocupados, mas o facto de termos um serviço público e privado, para quem tem a opção de o poder escolher, também é bom.”
Susana Sousa espera que possam ser pensadas soluções que permitam “pensar num Sistema de Saúde com projetos em conjunto, porque alguma coisa tem de ser feita. Tratar bem um doente é tratá-lo de forma atempada, com os exames, os relatórios e os tratamentos feitos no tempo certo. Se isto não acontece, é uma preocupação para todos”.
A oncologista saiu do SNS para fazer o mesmo que fazia no serviço público, com mais tempo para a família, mas também por acreditar que, “desde que tenhamos a vontade de fazer coisas, podemos fazer a diferença”. Não há números oficiais de saídas de médicos do SNS.
O Ministério da Saúde e a ACSS não os divulgam, mas quem está no terreno diz que quase todos os dias “se sabe de um colega que se vai embora”.