A minha viagem para Lisboa começou a 22 de maio de 2017, poucos dias antes do centenário das aparições de Fátima, a 13 de maio de 1917. O Papa tinha deixado Portugal uns dias antes e os funcionários do Ministério dos Negócios Estrangeiros português desfrutavam de uma pausa depois de um intenso programa de celebrações que teve lugar a 124 kms de Lisboa. Após 18 horas de voo desde Manila, cheguei ao lounge dos dignitários do aeroporto de Lisboa, com o meu traje oficial: vestido preto, meias escuras e sapatos também pretos de meio salto. Acolheu-me de forma calorosa Margarida, responsável pelo protocolo do Ministério dos Negócios Estrangeiros..Devo admitir que as primeiras semanas como embaixadora foram um pouco enervantes. Afinal, preparara-me durante 27 anos para esta ocasião. Como funcionária superior da diplomacia filipina (passei nos exames para admissão na carreira diplomática em 1989 e ingressei no serviço em 1990), toda a vida sonhei com o dia em que eu própria me tornaria embaixadora e dirigiria o meu próprio gabinete. Chegara o meu momento. .Tempo de espetáculo, pensei..Como falo português (e espanhol) fluentemente (estudei Português antes de ingressar na carreira diplomática e pude exercitá-lo no meu primeiro posto, em Brasília, em 1992), a minha ansiedade foi-se dissipando à medida que o charme dos lisboetas e da sua cidade me foi conquistando. Comecei a sentir-me muito à vontade e cedo me apaixonei por Lisboa..Algumas semanas depois da minha chegada, os jacarandás começaram a florescer, enchendo os passeios e as ruas com flores púrpura. Eu passava pela Rua Barata Salgueiro (onde está a Embaixada) e maravilhava-me com as árvores verde e púrpura…que vista! A partir daí, dirigia-me para Sul, pela Avenida da Liberdade, a mais bem desenhada avenida de Lisboa, e chegava à Praça Dom Pedro IV, mais conhecida como Praça do Rossio, também ela coberta de flores de jacarandá caídas. Era muito bonito. Num dia claro de Primavera, as árvores faziam contraponto com o céu azul e os edifícios antiquíssimos, muito bem restaurados, e o panorama era o mais instagramável possível. Quantas fotos terão sido partilhadas no Facebook ou no Instagram por turistas encantados..Havia também as buganvílias vermelhas e cor-de-rosa (algumas tão antigas que os ramos se tornam árvores) em praticamente todos os bairros da cidade, incluíndo a Lapa onde eu vivia. Com o tempo, consegui enroscar os ramos de uma dessas buganvílias ancestrais em torno do topo do portão da minha casa, de modo a criar um dossel rosado que me envolvia quando eu entrava ou saía..Surpreende-me nunca ter visto alguém cair ou tropeçar ao caminhar de saltos altos no pavimento de Lisboa. As suas mulheres devem estar protegidas por anjos da guarda. Lisboa é uma cidade para caminhar. Todos os lugares são transitáveis a pé. A Embaixada, o supermercado, a Igreja, a farmácia, o hospital, o mercado, as zonas de comércio, Chinatown, Alfama, Baixa Chiado, até as docas de Alcântara junto ao Tejo, com uma vista fabulosa sobre a ponte 25 de Abril e o Cristo Rei estavam a 40 minutos do meu bairro, a Lapa. Se andasse uma hora e meia estaria também na Torre de Belém e no Mosteiro dos Jerónimos. Se ficasse cansada, chamava um Uber. .Quando tinha fome, havia literalmente centenas de restaurantes. O meu lugar favorito era o Mercado de Campo de Ourique, uma versão mais pequena e menos comercial do Time Out Mercado da Ribeira (onde todos os Chefs portugueses com uma estrela Michelin apresentam a sua versão gourmet de fast food). Eu prefiro o Mercado de Campo de Ourique onde as escolhas são simples e diretas. Ali preferia o Atalho do Mercado onde se podia escolher entre porco preto, costeletas de borrego, entrecote ou picanha com salada verde ou uma salada de massa e bolo do caco e aquilo de que ualquer filipino sente a falta depois de três dias longe de Manila: Arroz branco. As refeições eram deliciosamente temperadas com sal, e eram sempre frescas e saborosas..Na rua onde eu vivia, a uns 55 passos do meu portão debruado por buganvílias, podia comprar deliciosos croissants franceses ou saborear um brunch por menos de 12 euros, com sumo de laranja acabado de fazer e uma grande chávena de café. Sentados na esplanada num domingo soalheiro, podia ouvir-se uma cacofonia de vozes, em francês, inglês e português. Até os empregados falavam várias línguas..A menos de 50 passos está o Museu Nacional de Arte Antiga e o Jardim 9 de Abril que tem uma vista desimpedida sobre a ponte 25 de Abril, o Cristo Rei e a vizinha cidade de Almada do outro lado do Tejo. Do mesmo lugar é possível ver dezenas de contentores que demonstram ia ntensidade do comércio internacional em que Lisboa desempenha papel nevrálgico. .À beira rio, dezenas de pessoas caminham ou correm sozinhas ou na companhia de amigos e familiares. O seu ritmo só é interrompido pela passagem dos comboios que ligam Lisboa a Cascais. Tudo funciona em sincronia nesta bela cidade à beira Tejo. Os lisboetas sabem que têm muita sorte em viver e trabalhar neste adorável lugar. OK, há dias em que o sol não brilha e que podem ser pesados e húmidos. Mas, em média, Lisboa tem 300 dias de sol no ano..Não há enormes filas de trânsito em hora de ponta e as ruas estão ladeadas por árvores. Ser embaixadora foi um sonho que se tornou realidade para mim, e ser embaixadora em Lisboa foi a cereja no topo do bolo. Mesmo ir ao Ministério dos Negócios Estrangeiros em Lisboa era um prazer. Este edifício centenário é um antigo palácio transformado em ministério. Escapou ileso ao terramoto de Lisboa de 1755. As paredes e escadarias decoradas do chamado Palácio das Necessidades estão cobertas com belos azulejos que tratam temas religiosos e históricos. Encontrar-me ali com o chefe de divisão responsável pela área das Filipinas era tão agradável que me permitia imaginar acontecimentos ali ocorridos há quatro séculos. Quem imaginaria que eu pudesse estar ali a discutir o futuro das relações entre os nossos dois países..O corpo diplomático acreditado em Lisboa tem muita sorte. O Presidente Marcelo Rebelo de Sousa decidiu que o dia nacional de Portugal, que é 10 de Junho e é conhecido como Dia de Portugal, Camões e das Comunidades Portuguesas, seria comemorado todos os anos numa cidade diferente. Assim, tive ocasião de visitar oficialmente Porto, Ponta Delgada nos Açores, Portalegre, Braga e uma cidade no Douro, Peso da Régua. Lembro-me de comentar com o Presidente que era uma maneira fantástica do corpo diplomático conhecer Portugal. E nesses eventos, certifiquei-me sempre de usar algo filipino e constatei que o plano funcionou. Em breve, os funcionários do Protocolo reconheciam-se e diziam: “Está aqui a embaixadora das Filipinas”..Fizemos muito para promover as Filipinas em Portugal. Ao contrário do que acontece na vizinha Espanha as Filipinas não têm ali um passado em comum. Procurámos, por isso, que as nossas atividades em Lisboa tratassem pontos comuns às Histórias dos dois países ou em aspectos em que elas convergem. É muito interessante perceber que os portugueses chegaram à Asia 23 anos antes da expedição espanhola, comandada pelo navegador português Fernão de Magalhães, que chegou a Guiuan, na zona Este de Samar, a 16 de Março de 1521. Mas foi em 1498 que os portugueses chegaram à India, e, em 1511, estabeleceram-se em Malaca,hoje parte da Malásia. Foram também à China e ao Japão, mas, por qualquer razão, não continuaram para Leste a ponto de atingir as nossas ilhas. .Por isso, desenvolvemos atividades em torno do nosso legado. Em conjunto com os nossos amigos, peritos em História da Ásia, no Centro de Humanidades (CHAM) da Universidade Nova de Lisboa, desenvolvemos diversas publicações e materiais de pesquisa (prontos a imprimir) que incluem: 1) a primeira Bibliografia anotada das Filipinas encontrada nos Arquivos e bibliotecas portugueses relativa ao período entre os séculos XVI e XVIII 2) As Filipinas na historiografia portuguesas 3) a primeira edição de bolso portuguesa do livro de Jose Rizal Noli Me Tangere (editada pela Penguin Random House Portugal, integrada na coleção de clássicos); 4) um livro na coleção de ensaios de História Moderna das Filipinas; 5) um manuscrito pronto para impressão intitulado Relatos Ibéricos das Filipinas no princípio da Idade Moderna; 6) a publicação de uma obra intitulada Filipinas, uma Zona de Contacto Global no princípio da Idade Moderna, baseada nas comunicações apresentados durante a conferência promovida pelo CHAM em 2019, tendo as Filipinas por tema. .Claro que também tivemos conferências sobre Magalhães na História filipina, afinal, ele foi o mais famoso navegador ao serviço da Coroa de Espanha. Em minha opinião, quando o rei de Portugal declinou a sua proposta de navegar para Ocidente para chegar ao Oriente, ele procurou outro investidor, que foi o Rei de Espanha. Para esta conferência, que intitulei “Magalhaes, Magallanes, Magellan”, convidámos importantes historiadores filipinos como o Professor Danny Gerona (o único historiador filipino a escrever um livro sobre Magalhães); Rene Escalante ( então presidente da Comissão Nacional de História das Filipinas); Professor Felice Noelle Rodriguez of the Ateneo de Zamboanga; Professor Chas Navarro do Ateneu de Manila; e, claro, o meu querido amigo Professor Ambeth Ocampo, para nos contar narrativas sobre Magalhães. Foi um sucesso..Ao longo dos anos, realizámos inúmeras leituras e conseguimos inúmeras entrevistas sobre História do nosso país na imprensa escrita; organizámos a primeira retrospectiva de Cinema filipino na Cinemateca Portuguesa , justamente quando se comemorava o centenário do nosso Cinema, organizámos três concertos de Raul Sunico em várias cidades portuguesas, assim como convidámos o pianista Lawrence Aliganga e a soprano Manila Adap para atual em Portugal. Também tivemos Pundaquit Virtuosi, uma jovem orquestra de cordas com 28 membros que encantou o público português em três cidades diferentes. E muito mais. Mas para fazer tudo isto precisamos de fundos e não podemos estar mais gratos aos Senadores Loren Legarda e Franklin Drilon por acreditarem nesta missão de divulgar a cultura filipina em Portugal. Sem eles, não poderíamos ter realizado uma grande parte do que conseguimos fazer. .Perguntam-me talvez se tenho saudades de Lisboa..Claro que sim! Mentiria se dissesse que não. Estes seis anos e cinco meses de estadia em Lisboa, estarão sempre entre os pontos altos da minha carreira..Na verdade, da minha vida..Artigo originalmente publicado na revista online The Diarist