O que deve mudar no SNS? Valorização dos recursos humanos e gestão, dizem profissionais

O ano que vai entrar é de grandes expectativas para o setor. A mudança de toda a equipa ministerial e a criação de uma direção executiva para o Serviço Nacional de Saúde assim o ditam. Resta saber se o que a tutela tem em mente é o mesmo que pretendem os profissionais. O DN pediu a representantes de várias classes que indicassem três prioridades para a mudança, e são essas que aqui ficam.

A valorização dos recursos humanos é a prioridade apontada por cinco classes profissionais do Serviço Nacional de Saúde (SNS), como sendo a mais importante a encetar já em 2023 para se iniciar um caminho de mudança. Dos administradores aos médicos, dos enfermeiros aos técnicos superiores de diagnóstico e terapêutica e aos auxiliares de saúde todos são unânimes. E porquê? "Porque o SNS é feito por pessoas", dizem.

A nova equipa ministerial tem estado em negociações com as várias classes profissionais, nomeadamente com a dos médicos, na tentativa de melhorar carreiras e grelhas salariais. O diretor executivo do SNS já defendeu a valorização dos recursos humanos, mas quem lá trabalha, cerca de 150 mil trabalhadores, sabe que se não se começarem a tomar medidas rapidamente "no sentido desta valorização, do capital humano, e de se aplicar modelos de gestão mais flexíveis, será difícil o serviço de saúde sair da situação que vive atualmente", argumentam também.

O DN pediu a representantes de cinco classes profissionais, sem as quais um serviço de saúde não funciona, para elegerem três prioridades para a mudança já em 2023. E são essas que aqui ficam.

Xavier de Barreto

Presidente da Associação dos Administradores Hospitalares

A primeira prioridade no sentido da mudança é a valorização dos recursos humanos do SNS, que integra cerca de 150 mil trabalhadores. Digo-o muitas vezes, não são as paredes ou os equipamentos que fazem o SNS, são as pessoas que lá trabalham. E o que temos vindo a assistir nos últimos tempos é a um desânimo generalizado e a uma exaustão tremenda desses profissionais. A questão é que quando se olha para o Orçamento do Estado para 2023 não vemos incentivos suficientes para mudar esta trajetória de desânimo. Portanto, eu diria que são precisas respostas diferentes que motivem mais os trabalhadores da Saúde. Respostas que tenham em conta, por exemplo, o seu desempenho e a qualidade da sua prestação e que isso se reflita na sua remuneração. Isto é particularmente importante, sobretudo num momento em que cada vez mais profissionais abandonam o SNS. Isto significa que não somos competitivos, que não conseguimos captar, nem reter, os melhores profissionais. Senão conseguirmos valorizar as pessoas, essa será a principal ameaça para o SNS.

A segunda prioridade é assegurar que se concretiza o investimento previsto para o SNS em 2023. O Orçamento do Estado volta a ter mais de 900 milhões para investimentos. O problema é que este montante já existia em 2022, mas só vai ser executado menos de metade. O desempenho no SNS tem sido sempre assim nos últimos anos, uma execução muito baixa. E é preciso um SNS mais forte e mais capacitado em termos de investimentos tecnológicos, para se poder responder às necessidades dos doentes.

Por último, uma prioridade que tem muito a ver com o grupo profissional que represento, mas que acredito que será muito boa para o SNS. É a revisão da carreira de Administração Hospitalar. Não podemos continuar a falar em melhorar a gestão dos serviços do SNS se tivermos administradores hospitalares absolutamente descontentes com a sua situação. E é isso que está acontecer. Os administradores hospitalares estão extremamente descontentes com a situação em que estão há mais de 20 anos no SNS. E se a sua carreira não for revista não se podem esperar melhorias. Temos de ser consequentes.

Miguel Guimarães

Bastonário da Ordem dos Médicos

A medida mais importante de todas, e em função do que está acontecer no SNS, é criar as condições adequadas de trabalho para os médicos e para todos os outros profissionais de Saúde. E quando falo em condições de trabalho, falo em condições que incluam desde a prática com qualidade, ao acesso à investigação, à inovação tecnológica e terapêutica, bem como em condições de apoio a situações de burnout e de sofrimento ético. Ou seja, é preciso criar um conjunto de condições que comecem na valorização do trabalho e que acabem nos apoios que o Estado tem obrigação de dar nas questões relacionadas com o burnout, sofrimento ético e violência contra os profissionais de Saúde. Esta é a prioridade número um. E se este objetivo não ficar apontado até ao final de 2022, apesar de sabermos que os sindicatos das várias classes estão em negociações com a tutela, e que a própria Ordem dos Médicos está a fazer a parte que lhe diz respeito, dificilmente conseguiremos inverter a rampa deslizante a que se assiste na Saúde. Isto é, se não mudarmos o paradigma da valorização dos recursos, não conseguiremos resolver o resto, por muito boas medidas que tomemos no plano da gestão para se tentar a eficiência. Os problemas são sérios, mas andamos todos a falar das Urgências e a esquecer o acesso aos cuidados.

O segundo aspeto que refiro é o da gestão. É fundamental que se implemente rapidamente um novo modelo de gestão que nos afaste do atual, que está baseado na teoria burocrática de Max Webber - ou seja, um modelo muito rígido que não permite tomar decisões rápidas, nomeadamente que permitam às Unidades de Saúde contratar os profissionais de que necessitam ou renovar os seus equipamentos. Se não mudarmos o modelo de gestão, não conseguiremos adaptar a resposta das Unidades de Saúde às necessidades da população. Mas, obviamente, que este modelo de gestão teria de incluir a responsabilidade das administrações, orçamentos reais - porque sabemos que os orçamentos, como por exemplo dos hospitais, são sempre inferiores ao que são as necessidades -, e o funcionamento em rede das Unidades de Saúde.

E daqui passo para a terceira prioridade, que é uma verdadeira articulação de cuidados entre hospitais e Cuidados Primários, com vias verdes para doentes mais graves. Se fizermos isto vamos diminuir o fluxo de doentes nos Serviços de Urgência dos hospitais, podendo melhorar as respostas. Esta questão está muito associada ao processo de inovação digital, nomeadamente no que toca ao Registo Único do doente, sobre o qual se fala há mais de 10 anos, mas nada se faz. Agora, aponta-se esta medida aos dinheiros do PRR, mas é preciso fazer-se algo que leve à execução desta e de outras que melhorem o funcionamento em rede das várias Unidades de Saúde.

Ana Rita Cavaco

Bastonária da Ordem dos Enfermeiros


Em primeiro lugar, gostaria de ver mudar uma coisa de que se fala há anos e nunca se mudou no SNS. O modelo de exclusividade - mas um modelo à séria e não a brincar. Um modelo que seja só para quem quer, porque é legítimo que alguns não queiram e que até prefiram trabalhar apenas 20 horas por semana no SNS, mas com contrato, e não à tarefa, porque esta foi a pior coisa que se permitiu no serviço público. E isto leva-nos à primeira prioridade para a mudança, que é o delinear-se um modelo de contratação mais flexível para o SNS. O que está a acontecer é que os profissionais rescindem o seu lugar de quadro nas Unidades de Saúde para, no dia seguinte, proporem às mesmas serem tarefeiros, pois ganham cinco vezes mais. Portanto, se tenho alguém que produz em 20 horas e que não quer estar mais tempo no SNS para poder fazer outras coisas, por que não permitir modelos de contratação que prevejam isto? Estou só a falar de especialidades médicas, porque isto não se aplica aos enfermeiros, que trabalham por turnos. E, se calhar, seria bom repensar este modelo também para todos os profissionais do SNS, nomeadamente para os médicos, porque não podemos continuar a dizer que fazem bancos de 24 horas, quando isto é humanamente impossível. Portanto, o SNS tem de ter outras opções de contratação mais flexíveis. Esta é uma parte que gostaria de ver a mudar.

A outra, e que casa com esta, tem a ver com os horários de funcionamento, que, para mim, é a segunda prioridade. O SNS não é uma Repartição de Finanças, não pode funcionar só de manhã se quisermos rentabilizar os recursos que temos. Portanto, é preciso alterar os horários. Se no setor privado é possível fazer uma ressonância magnética ou uma TAC, sem ser em contexto de Urgência, a um sábado ou a um domingo, o SNS também tem de o conseguir fazer. Os horários têm de colocar as unidades a funcionar em pleno de segunda a domingo. Ou seja, temos de ter consultas de especialidades a funcionar de segunda a domingo em todos os horários, os blocos operatórios e os exames de diagnóstico também. O SNS precisa de responder às necessidades das pessoas de segunda a domingo e tem de funcionar dessa maneira, mudando também a forma de financiamento das Unidades de Saúde, porque ainda financiamos por ato, por um número, e isso pode levar à perversão do sistema, quando já há muitos países, nomeadamente da UE, a financiar as unidades com base na qualidade dos resultados. Tudo isto melhoraria a qualidade dos cuidados.

Como terceira prioridade, gostaria que houvesse mudanças no sentido de deixarmos de estar agarrados a pequenos poderes. Em todo o mundo, os enfermeiros praticam os atos para os quais detém competências, mas em Portugal isso não acontece porque os médicos não querem. Temos um exemplo muito claro, o da Obstetrícia, onde os enfermeiros fazem mais de 80% dos partos no SNS. Portanto, é importante dar-se à classe de enfermagem o poder de desempenhar as competências que tem e que os médicos entendem que são deles.

Luís Dupont

Presidente do Sindicato dos Técnicos Superiores de Diagnóstico e Terapêutica

O primeiro ponto tem a ver com o nosso grupo profissional: que fiquem resolvidos todos os problemas que resultam da revisão da nossa carreira, como o descongelamento e os regimes contratuais. O resolver-se esta questão já seria uma grande motivação para a classe, porque o processo tem sido longo. Começou em 2017 e teve vários momentos, com o adiamento de muitas situações, que acabaram por não ficar resolvidas e com outras que não resultaram bem da própria alteração feita. Por exemplo, negociaram o nosso sistema de avaliação de desempenho, mas, falta a questão da remuneração das chefias. Há uma série de situações que estão por resolver e que iriam consolidar a revisão da carreira, algo extremamente importante para este grupo de trabalhadores.

Em relação ao segundo ponto, o que mais desejamos é que se deixe de prometer uma coisa aos portugueses e depois nada se faça para o conseguir. E isto tem a ver com os Cuidados de Saúde Primários e com a intenção de que estes sejam uma resposta efetiva à urgência, que não é a urgência grave e cirúrgica, sendo que esta tem de ser obrigatoriamente tratada nos hospitais, mas a urgência que é possível tratar nos Cuidados de Saúde Primários. Mas para tal é necessário que os Cuidados Primários sejam reforçados com uma resposta efetiva em termos de meios de diagnóstico e terapêutica e de recursos humanos. Isto está previsto no Programa do Governo e no PRR, está previsto em tudo, mas ainda nada se fez para o concretizar. É claro que sabemos que não é num ano, ou já em 2023, que se vai resolver tudo, mas é agora que temos de começar a fazer. Por isso, dizemos que é preciso equipar os Cuidados Primários de meios de diagnóstico, quer a nível laboratorial e de imagem, já que estes são essenciais para um clínico poder fazer um diagnóstico, por mais simples que ele seja.

Este ponto implica o terceiro, que é o reforço dos recursos humanos, sobretudo na nossa classe profissional. Podemos dotar os Cuidados Primários de equipamentos, mas são precisos recursos humanos para que estes funcionem. E, neste momento, já somos em número insuficiente para dar resposta a todos os cuidados no SNS. Se tal for conseguido, certamente que as listas de espera para a realização de exames de rotina serão menores e tanto hospitais, como centros de saúde, não terão tanta necessidade de enviar utentes para o setor privado para fazerem exames.

Paulo Carvalho

Presidente do Sindicato Independente dos Técnicos Auxiliares de Saúde

Em primeiro lugar, é necessária a aprovação, publicação e aplicação imediata da carreira de técnicos de auxiliares de saúde. Isto deveria acontecer logo em janeiro. É uma questão de justiça para os profissionais, não só moral, mas também legal. Neste momento, e sendo nós considerados profissionais de Saúde, não faz sentido estarmos nas carreiras gerais da Administração Pública. Precisamos de uma carreira especial para técnicos auxiliares de saúde. Aliás, esta medida já estava prevista no Orçamento do Estado para 2022, mas foi um objetivo não-cumprido por parte do governo. É preciso perceberem que o reconhecimento deste grupo profissional vai motivar os profissionais no seu desempenho.

Depois, é necessário o aumento do número de trabalhadores na nossa área: já somos manifestamente insuficientes. Prova disso é o número de horas extraordinárias que tivemos de fazer ao longo de 2022. O reforço de profissionais vai permitir que os cuidados prestados sejam mais e de melhor qualidade. Com isto não quero dizer que os nossos cuidados são de fraca qualidade, não. Somos é insuficientes para enfrentar a quantidade de cuidados que temos de fazer no dia a dia.

Por fim, o SITAS é um dos sindicatos que não representa mais nenhum grupo profissional, somos independentes. Portanto, era de toda a justiça que tudo o que tenha a ver com os assistentes técnicos de saúde passasse sempre por nós.


anamafaldainacio@dn.pt

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