Paris, década de 1730, os ânimos subiam de tom entre duas falanges. “Mauriens” digladiavam-se com “pélissiens” na capital francesa. A discórdia nascera no palco da Academia Real de Música, hoje a Ópera Nacional de Paris. Distante dos assomos revolucionários que enxameariam a França ainda no século XVIII, a contenda dos anos 30 inflamara ao som das vozes poderosas de duas sopranos da mesma geração. Catherine-Nicole Lemaure, também conhecido com Le Maure, pelejava nos palcos com Marie Pélissier. A alta sociedade parisiense dividia-se no louvor às duas cantoras de ópera. Catherine-Nicole inspirava as afeições dos “mauriens”. Marie encontrava apoio nos “pélissiens”. O historiador e filósofo Voltaire afirmar-se-ia décadas depois um “maurien”. Em 1769, o iluminista francês escreveu: “Sem a voz de Le Maure e o Pato de Vaucanson, não teria nada que recordar da glória de França”. A par dos atributos vocálicos da soprano que faleceria em 1786, Voltaire evocava na sua correspondência a afeição que os gauleses devotaram décadas antes a um dos exemplos maiores de uma curta era dedicada aos brinquedos filosóficos, animados de movimento. Em 1739, o inventor e artista francês Jacques de Vaucanson, nascido em 1709, dava mostra pública do autómato em que trabalhara nos seis anos anteriores. O “Pato Digestor”, como ficaria conhecido, traduzia a teoria corrente do animal-máquina, introduzida no século XVII pelo filósofo francês René Descartes. Nesta configuração do mundo animal, o corpo da besta é apenas uma máquina. Um conceito que o antropólogo e sociólogo francês Edgar Morin criticaria no século XX por “matar a vida (…), transforma o que não é humano em puro objeto”. .O pato de Vaucanson completava esta ideia de animal-máquina. Sobre um palco, um complexo mecanismo de relojoeiro, entregava aos espectadores a imagem de uma ave de tamanho real dotada de animação. As asas do animal moviam-se agitadas por mais de 400 partes móveis. Vaucanson inaugurou nos interstícios do seu pato o primeiro tubo flexível de borracha, ao simular o intestino do animal. O Pato Digestivo, revestido a cobre e a ouro, grasnava, deglutia alimentos e água e apresentava uma singularidade: defecava perante o espanto da assistência. Sem menosprezo pelas habilidades mecânicas do seu autor, o ímpeto de vida resultava de uma ilusão, como se depreende à luz do conhecimento deste nosso século. No século de setecentos, milhares de espectadores assistiam arrebatados aos feitos digestivos da ave. Desde a década de 1730 que Jacques de Vaucanson dominava a técnica de render audiências aos avanços da mecânica. Em 1737, apresentara o seu Tocador de Flauta, autómato em tamanho real, capaz de interpretar um repertório de 12 canções. O engenho mecânico não impressionara particularmente Johann Joachin Quantz, instrutor de flauta de Frederico II da Prússia, que viu no músico mecânico, antepassado dos atuais robôs, uma tosca aproximação da humanidade. .O “Pato Defecador”, também assim apelidado, empurraria as qualidades inventivas de Vaucanson para um novo patamar. “Ele bebe e grasna como um pato natural (…), estica o pescoço para agarrar grãos nas nossas mãos, engole-os, digere-os e devolve-os pelos canais comuns (...) o alimento é ali digerido como nos animais reais, por dissolução, e não por trituração; o material digerido no estômago é transportado por tubos, como no animal pelos intestinos, até ao ânus, onde existe um esfíncter que permite a sua saída”, escreveu Vaucanson num prospeto de 1738. O inventor relatava o seu autómato como dotado de um pequeno “laboratório químico”, capaz de metabolizar o alimento ingerido e expeli-lo sob a forma de fezes. O autómato, após a apresentação em Paris na primavera de 1739, percorreria França, mais tarde a península itálica e, durante um ano, apresentou-se ao público britânico. .Em 1844, o mágico e construtor de autómatos, o francês Jean Eugène Robert-Houdin teve a oportunidade de examinar o Pato de Vaucanson para lhe descortinar, nas entranhas mecânicas, o processo digestivo. Na realidade, a ave era dotada de dois recipientes autónomos. Um, recolhia o alimento, o outro, acolhia migalhas de pão, tingidas de verde, numa ilusão de fezes. A descoberta não subtraia créditos à inventiva do francês. Jacques de Vaucanson destinaria os seus conhecimentos à indústria gaulesa. Em 1741, após a nomeação como inspetor da manufatura de toda a França, empreendeu o caminho de automatizar os processos de tecelagem. No ano de 1745 apresentou os primeiros teares totalmente automatizados. O pato mecânico soçobraria a um incêndio em 1879. Reviveria mais tarde, na década de 1990, numa réplica construída pelo francês Frédéric Vidoni e visitaria o mundo da literatura. Em 1997, o complexo romance histórico Mason & Dixon escrito pelo norte-americano Thomas Pynchon reabilita o Pato Digestor. Dotada de consciência, a ave persegue um chef parisiense exilado nos Estados Unidos..Wim Delvoye alimenta a Cloaca..Longe das letras de Pynchon, em 2002, o artista conceptual belga Wim Delvoye retomou a ideia de uma máquina capaz de reproduzir o processo digestivo. Na década seguinte a Cloaca, uma máquina computadorizada, percorreu museus europeus e norte-americanos. Em colaboração com cientistas da Universidade de Antuérpia, Deloye desenvolveu um complexo sistema de recipientes e tubagens que mimetizam a digestão humana. Após um processo de 27 horas, à temperatura de 37,2 ºC e que envolve a adição de enzimas digestivos, bactérias e ácidos, a máquina excreta fezes. O produto é engarrafado em recipientes de silicone e vendido. Tal como o Pato Digestor de Vaucanson, a Cloaca de Deloye envolve um esforço cénico. Para alimentar a máquina, “Deloye subiu a escada a carregar uma bandeja com uma saborosa e substancial refeição belga de sopa de cogumelos, filetes de peixe e um pudim”, escrevia-se em 2002 no site do New Museum of Contemporary Art de Nova Iorque. Para o seu criador, a Cloaca é “um ser humano sem alma”, uma parábola aos ambientes laboratoriais, às linhas de produção e ao consumo. Isabelle Loring Wallace, crítica de arte, resumiu a instalação artística do belga Deloye às seguintes palavras: “o que as instalações demonstram, a um grande custo, não é o processo digestivo, mas sim o fac-símile da digestão, não a merda, mas a representação da merda”.