É um homem que conhece o peso das palavras e, ainda assim, não tem medo de as empregar sempre que o contexto o justifique. Frédéric Martel, francês, 55 anos, deu o título original de Sodoma ao livro que, em Portugal como na generalidade dos países, se chamou No Armário do Vaticano (edição Sextante, 2019), que em todo o mundo vendeu perto de 700 mil exemplares. Antigo assessor dos políticos socialistas Michel Rocard e Martine Aubry, jornalista e conferencista, é um homem intelectualmente irrequieto e bem informado, que para a realização deste livro ouviu 41 cardeais, 52 bispos, 45 núncios e centenas de padres, concluindo que sob o discurso tradicionalmente homofóbico da Igreja Católica está, afinal, uma grande percentagem de homossexualidade, praticante ou não, mas sempre vivida com recalcamento e culpa..Diz, por isso, que o momento crítico por que passa a Igreja Católica portuguesa, na sequência da divulgação dos resultados do trabalho realizado pela Comissão Independente para o Estudo dos Abusos Sexuais contra Crianças, não o surpreende: "Os resultados apurados pela comissão vêm ao encontro dos obtidos em estudos similares desenvolvidos em França, Estados Unidos, Chile, México, Polónia e Itália." Mas acrescenta: "É preciso fazer a justiça de dizer que a Conferência Episcopal Portuguesa aceitou de bom grado que a investigação fosse feita por esta comissão, que realizou, aliás, um excelente trabalho. O que eu penso que terá acontecido é que, conhecidos os resultados, a Conferência Episcopal Portuguesa se dividiu e José Ornelas não foi capaz de construir um discurso eficiente sobre o assunto.".Não obstante as possíveis dificuldades de comunicação, Martel pensa que a Jornada Mundial da Juventude, marcada para agosto em Lisboa, está em risco e, mais uma vez, não poupa nas palavras: "O Papa não pode vir a Lisboa com um bordel destes instalado. Se nada mudar, é provável que diga que está doente e delegue a deslocação noutra pessoa." O que pode inverter esta situação? "A renovação da Conferência Episcopal Portuguesa com a votação para um novo presidente já em abril, por um lado, e a substituição do cardeal-patriarca de Lisboa, D. Manuel Clemente, por outro." Frédéric Martel considera que o Vaticano veria com bons olhos o pedido de resignação do cardeal, que, para mais, completará 75 anos em julho: "Tenho a certeza de que, no ponto a que as coisas chegaram, o Papa Francisco aceitaria imediatamente esse autoafastamento." Importante seria também, acrescenta, "que a organização da Jornada se mostrasse harmoniosa e empática com as preocupações da sociedade portuguesa neste momento"..Batizado e educado no catolicismo até ao princípio da adolescência, o jornalista iniciou o seu trabalho em torno dos segredos mais recalcados da hierarquia da Igreja durante os quatro anos em que viveu num apartamento no Estado do Vaticano: "O meu objetivo nunca foi denunciar pessoas ou fazer mal a alguém, vivo ou morto. O que eu critiquei foi todo um sistema montado há séculos em torno de uma mentira, que é o celibato dos sacerdotes. Uma mentira contra natura que torna uma boa parte destes homens psicologicamente muito vulneráveis." É como se a cultura do segredo e da culpa em torno de qualquer forma de sexualidade fosse um eterno convite à transgressão: "No meio disto há pedófilos e abusadores que usam o sistema em seu benefício. Até aqui têm-se sentido protegidos por esse secretismo.".No seu livro, Martel não hesita em considerar o Papa João Paulo II (pontificado entre 1978 e 2005) um dos pontífices que mais protegeu os abusadores: "O discurso de João Paulo II pôs no mesmo plano a homossexualidade, o divórcio, as relações fora do casamento, as relações de um padre com uma mulher ou com um homem adultos em comum acordo e os abusos sexuais, que são efetivamente um crime, muito mais do que um pecado." João Paulo II fez muitas coisas importantes: "Teve um papel preponderante na queda do comunismo na Europa de Leste, promoveu a reconciliação com os judeus e foi, pelo sofrimento que suportou até ao fim, o Papa da penitência, mas também deu cobertura a vários casos conhecidos de sacerdotes abusadores no México, em Washington e muitos na sua Polónia natal." Embora não concorde com a ideia de retirar a canonização ao antigo Papa (concedida em 2014 pelo Papa Francisco, depois de um processo invulgarmente rápido), ao contrário do que vem sido defendido em alguns meios, o jornalista pensa que "a sua responsabilidade, sim, deve ser discutida.".No atual Papa, vê uma atitude diferente: "Sou um grande defensor do Papa Francisco. Sem esquecer que, durante a sua vida na Argentina, foi peronista, que teve cumplicidades com a ditadura, que é jesuíta, o que o torna muito hábil com as palavras, e, de certo modo, alguém para quem a mentira e a verdade são coisas muito fluidas, as suas afirmações sobre a homossexualidade e sobre a posição das mulheres na Igreja são muito justas. Não tenho dúvidas de que nestas matérias tem sido bastante melhor do que João Paulo II e até do que Bento XVI.".Ao contrário do que talvez fosse de esperar, Martel não enfrentou obstáculos de maior enquanto realizava a sua investigação: "Sempre assumi o que estava a fazer, sempre usei o meu nome e o próprio Conselho do Papa tinha conhecimento do que se passava." Depois da publicação, recebeu algumas mensagens de ódio, mas não as considera relevantes. "Chegaram-me, sim, muitas mensagens de padres, de vítimas e de pessoas que, de algum modo, sentiram que lhes foi feita justiça. Hoje estou convencido de que os críticos decidiram refugiar-se no silêncio." E conta como o próprio Papa Francisco terá reagido quando, durante as suas viagens, foi confrontado com perguntas sobre o seu livro: "Está OK. Conheço tudo aquilo de que ele fala.".dnot@dn.pt