O mundo voou no século XIX nas asas de Lilienthal
Contava 56 anos de idade, sofria de um cancro da laringe em fase terminal e ascendera meses antes ao trono da Prússia. Os derradeiros dias de Frederico III, imperador Alemão e rei da Prússia, foram documentados com diligência. A desesperança entregou o monarca às mãos de diferentes médicos, do alemão Rudolf Virchow, que lhe diagnosticara a doença, às do britânico Morell Mackenzie, que defenderia, como ato de possível salvação, uma traqueostomia. Coube ao médico alemão Ernst von Bergmann conduzir a operação em fevereiro de 1888. Quatro meses após a intervenção Frederico III sucumbia ao cancro. O mérito de que gozava Ernst von Bergmann não foi alheio à escolha para a intervenção. O cirurgião, nascido em 1836, beneficiava do estatuto que lhe conferia o pioneirismo em inúmeras intervenções e procedimentos médicos: fora dos primeiros a adotar o uso da bata branca, introduziu a esterilização por calor dos instrumentos cirúrgicos, contribuiu para melhorar os procedimentos da apendicectomia.
Oito anos volvidos sobre a cirurgia a Frederico III, a 10 de agosto de 1896, Bergmann recebeu na sua clínica berlinense um paciente em estado terminal. No dia anterior, pela tarde, Karl Wilhelm Otto Lilienthal saiu de casa, dirigiu-se à colina artificial que construíra na sua propriedade nos arredores de Berlim e lançou-se em voo duma altura de 15 metros. Lilienthal não cometia um ato suicida, antes um voo planeado.
Nos cinco anos anteriores, o alemão nascido em 1848 próximo de Potsdam, somava cerca de dois mil voos, aproximadamente cinco horas com o corpo em suspensão sobre o solo e a invenção de 12 modelos de monoplanos e biplanos. Naquele 9 de agosto de temperatura amena, a rondar os 20 ºC e de céus claros, Otto Lilienthal empreendia o seu último voo. Ao quarto salto da tarde, o Homem Voador, como era conhecido, planou alguns metros, subiu rapidamente no firmamento e desceu de forma abrupta.
Inconsciente, com a terceira vértebra cervical fraturada, Lilienthal viria a falecer na clínica de Bergmann. O seu epitáfio não esqueceu os feitos dos anos anteriores do homem que materializou a ideia do voo, antes do pioneirismo dos norte-americanos Wilbur e Orville, que a história chamaria de Irmãos Wright (a quem é creditado o primeiro voo controlado de uma máquina voadora mais pesada do que o ar).
Num tempo em que o voo humano não era uma possibilidade, Otto Lilienthal superava uma barreira psicológica: o voo humano era possível. O pioneiro da conquista dos céus concretizou o sonho humano no design de inúmeros planadores manufaturados a partir de madeira, algodão, ferro e cordas de cânhamo. O aviador registou quatro patentes ligadas às suas invenções aéreas. “De todos os homens que enfrentaram o problema da aviação no século XIX, Otto Lilienthal foi facilmente o mais importante”, escreveu em 1912 Wilbur Wright no Aero Club of America Bulletin.
A rematar o século XIX, os céus alemães ganharam um afã nunca visto na história anterior. “Pássaros” artificiais, com asas de envergadura superior a seis metros, lançavam-se em voos a partir de colinas. Percorriam não mais de 250 metros, uma distância humilde, embora de grande amplitude no que respeita aos avanços da tecnologia.
No solo, a par do seu irmão Gustav, o pioneiro Otto desenvolvia o conceito de asa moderna, construiu o Lilienthal Normalsegelapparat, o primeiro engenho aéreo com produção em série, e fundou a Maschinenfabrik, sediada em Berlim, tida como a primeira indústria de produção de aeroplanos. Máquinas voadoras projetadas para distribuir o peso do utilizador da forma mais uniforme possível de modo a garantir estabilidade no voo.
A empresa da idade adulta de Lilienthal nascera décadas antes nos campos próximos da sua aldeia natal. Em criança, o pioneiro da aviação, fascinara-se com o voo das aves. Na década de 1860, iniciaria os estudos em aerodinâmica, atividade que suspendeu para participar na Guerra Franco-Prussiana.
Finda a peleja, Lilienthal fundou uma empresa de fabrico de caldeiras e motores a vapor. Casou-se com Agnes Fischer, com quem teria quatro filhos e sediou-se em Berlim. Ao céu da capital alemã o inventor endereçou o seu trabalho.
O primeiro voo, tímido, ocorrera em 1891 numa colina próxima da aldeia de Derwitz, a oeste da cidade de Potsdam. O inventor erguera o seu monoplano no céu e percorreu uma distância de 25 metros. Em 1893, Otto deu um salto de gigante. As colinas do Município de Rhinow serviram de trampolim a um voo recorde de 250 metros de distância. Um ano depois, o aviador construía na sua propriedade uma colina de aviação, aquela que lhe eternizaria os feitos e que lhe seria fatal dois anos mais tarde.
Na época, Lilienthal granjeava fama mundial. Contribuiu para o facto a profusão de fotografias com os voos pioneiros do inventor. No período entre 1891 e 1896, foram captadas mais de 140 fotografias dos voos de Otto. Instantâneos de fotógrafos conceituados como Ottomar Anschütz, inventor alemão, ou do físico americano Robert Williams Wood, terminavam nas páginas de revistas populares de divulgação científica.
Lilienthal não se coibia de levar a sua verve para jornais e revistas com publicação nos Estados Unidos, França e Rússia. Em paralelo, correspondia-se com outros pioneiros da aviação, com o norte-americano James Means. Nove dos seus modelos de planadores foram vendidos a personalidades da época, entre elas o cientista russo Nikolai Jukovski e o magnata norte-americano William Randolph Hearst. Os engenhos voadores de Otto encontram-se atualmente em exibição, entre outros, em museus londrinos, moscovitas e americanos.
Não obstante a fama e glória alcançadas, o aviador procurava arrefecer entusiasmos no que respeita ao caminho trilhado nos céus: “No final, quero pedir-lhes que não considerem as minhas conquistas mais do que realmente são. Pelas imagens fotográficas onde me veem a voar alto no céu, pode dar a impressão de que o problema já está resolvido. Não é esse o caso (…). As conquistas até agora são para o voo humano nada mais do que os primeiros passos inseguros de uma criança destinada a imitar o andar do homem”, proferiu Otto Lilienthal a 15 de novembro de 1894 numa leitura Sobre o Mistério do Voo das Aves.
Menos modesto na utilização das palavras, escreveu o já citado Wilbur Wright: “Ninguém o igualou [a Lilienthal] para atrair novos recrutas para a causa; ninguém o igualou na plenitude da compreensão dos princípios do voo; ninguém fez tanto para convencer o mundo das vantagens das superfícies curvas das asas.”
Em 1972, o nome de Karl Wilhelm Otto Lilienthal foi adicionado à International Air & Space Hall of Fame, ao lado de nomes como Charles Augustus Lindbergh ou de Neil Armstrong.
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