"O investimento educacional no mundo não é apenas insuficiente, mas também dramaticamente desigual"
O encontro que se propõe debater e refletir os caminhos para reinventar a escola decorre sob a égide da Cátedra UNESCO - Futuros da Educação e tem lugar no Instituto de Educação da Universidade de Lisboa. Nos trabalhos participa, por videoconferência, o costa-riquenho Leonardo Garnier, conselheiro especial do Secretário-Geral das Nações Unidas para a Cúpula Para a Transformação Educacional. Uma intervenção que levará aos presentes, entre outros temas, os desafios de equidade e qualidade da educação; a transformação das escolas, dos professores e dos recursos pedagógicos; o investimento na educação, de forma mais equitativa e com mais eficiência. Leonardo Garnier, economista, foi ministro da Educação no seu país natal entre 2006 e 2014. No plano académico, assinou diversos artigos em revistas e livros sobre questões económicas e sociais ligadas ao desenvolvimento. É coautor do livro Costa Rica: Um País Subdesenvolvido Quase Bem-Sucedido (2010). Presentemente é também professor da Universidade da Costa Rica.
A conferência Futuros da Educação, amanhã (dia 24), conta com moderação de Sampaio da Nóvoa, doutor em Educação e em História e titular de uma Cátedra UNESCO sobre os futuros da educação.
Na sua intervenção na conferência Futuros da Educação vai enfatizar uma questão preocupante: "A educação está em crise profunda em todo o mundo." Como se está a manifestar esta crise?
Por um lado, há mais de 250 milhões de rapazes e raparigas que estão completamente fora da escola em todo o mundo. Por outro lado, mesmo muitos daqueles que têm acesso à escola não estão realmente a aprender. Em muitos casos, nem sequer aprendem o básico: estima-se que 70% das raparigas e rapazes de dez anos não conseguem ler e compreender um texto simples, muito menos avançar em aprendizagens mais complexas, como matemática, pensamento científico, educação cívica, ou desenvolvimento emocional saudável. Condenamos gerações inteiras a serem excluídas da participação ativa na vida social e produtiva, ou de beneficiarem de uma vida plena para si e para as suas famílias.
Pondo a pergunta de outra forma, como podemos levar para os bancos das escolas estes mais de 250 milhões de jovens em todo o mundo? A este propósito nunca é demais recordar o quarto Objetivo de Desenvolvimento Sustentável definido pelas Nações Unidas: "Garantir o acesso à educação inclusiva, de qualidade e equitativa, e promover oportunidades de aprendizagem ao longo da vida para todos."
Esse é o desafio que enfrentamos: resolver tanto a crise de equidade e acesso, como a crise de qualidade e relevância dos nossos sistemas educativos. Ao ritmo a que caminhamos - e pior ainda com o golpe que a pandemia significou para o setor da educação - não será possível atingir esse objetivo básico. Portanto, precisamos de transformar a educação quantitativa e qualitativamente. Precisamos de investir em mais e melhores escolas, em professores mais qualificados, no desenvolvimento de recursos digitais de ensino-aprendizagem e, sobretudo, no abandono das velhas práticas às quais Paulo Freire, educador e filósofo brasileiro, chamou de "educação bancária", focada na memorização de pré-respostas definidas. Temos de avançar rumo a uma aprendizagem ativa, atenta à curiosidade e à investigação.
Considerando que a educação é um dos melhores investimentos que um país pode empreender para melhorar o bem-estar da população, o que podemos esperar num futuro próximo face a um mundo em crise nesta área?
Desde que autores como George Psacharopoulos e Jacob Mincer apresentaram a sua primeira investigação sobre os retornos da educação, há mais de 50 anos, sabemos que a educação compensa. Cinco décadas de pesquisa apenas corroboraram essa convicção. Estima-se que, em consequência da exclusão educativa, esta geração de estudantes corre o risco de perder o equivalente a 21 biliões de dólares de rendimento potencial ao longo da vida, o que equivale a 17% do PIB mundial atual. Este é o paradoxo do nosso tempo: por um lado, dizem-nos que os governos se encontram num ambiente de aperto financeiro, mas, por outro, renunciamos a fazer os investimentos que mais contribuiriam para o crescimento económico e o bem-estar material futuro.
Esta não será uma crise igual em todas as latitudes. Vão-se acentuar as assimetrias entre países desenvolvidos e em vias de desenvolvimento. Precisamos de mais cooperação internacional? E de que forma?
O investimento educacional no mundo não é apenas insuficiente, mas também dramaticamente desigual. Quase dois terços do investimento global na educação está concentrado nos países ricos, onde vive 10% da população mundial em idade escolar. Em contrapartida, os países de rendimento médio-baixo servem 50% da população mundial em idade escolar com 8% do investimento global. Finalmente, os países mais pobres procuram educar 25% dessa população com apenas 0,6% do investimento mundial na educação. Em termos muito simples, três quartos da população mundial em idade escolar recebe menos de 10% do investimento mundial na educação.
O resultado não poderia ser outro: enquanto os países ricos investem, em média, cerca de 8.500 dólares por ano e por pessoa em idade escolar, os países de rendimento médio-baixo investem cerca de 300 dólares anuais e os países mais pobres apenas 50 dólares, ou seja, um dólar por semana. Por mais esforços que façam estes países só serão capazes de transformar a sua educação com o apoio financeiro da comunidade internacional. Cooperação que tem vindo a diminuir.
No fundo há que que canalizar melhor o investimento em educação...
Primeiro, precisamos de investir mais na educação, aumentando o esforço nacional e governamental e aumentando gradualmente o investimento por pessoa em idade escolar. Em segundo lugar, precisamos de investir de forma mais equitativa, para que os países mais pobres -- e os setores mais vulneráveis dentro de cada país -- recebam o investimento educacional de que necessitam. Por último, precisamos de investir de forma mais eficiente na educação, para que os recursos atribuídos à educação não se traduzam apenas em taxas de cobertura mais elevadas, mas, acima de tudo, em aprendizagem sólida e relevante.
Quais as dimensões a que deve atender a educação para formar cidadãos plenos, ativos, produtivos e com impacto significativo na sociedade?
Para ter o impacto que refere na sua pergunta junto dos alunos, a educação deve transformar-se tanto no seu conteúdo como nos seus métodos. Dizer isto não é dizer nada de novo, mas é uma tarefa que permanece pendente: temos de passar do modelo tradicional de aprendizagem mecânica -- que ainda prevalece em muitos lugares -- para uma abordagem mais ativa, baseada na curiosidade, na colaboração e na solidariedade, através de processos de aprendizagem, através de projetos baseados na investigação e na resolução de problemas.
O conteúdo deve ser relevante e interessante para os alunos. Deve partir do contexto - tanto local como global -- e levantar as grandes questões do nosso tempo. À aquisição de conhecimentos e competências -- como a literacia, a capacidade matemática ou científica e o domínio do mundo digital em mudança -- deve acrescentar-se a formação ética, estética e cívica: a educação deve formar cada aluno para aprender a aprender, aprender a fazer, aprender a viverem juntos e, finalmente, para que aprendam a viver, a desfrutar de uma vida plena e significativa.
Uma educação transformadora exige qualidade da escola, dos professores, dos métodos e ferramentas de ensino. Em síntese, como se concretiza esta exigência?
Para enfrentar tanto a crise da inclusão como a da aprendizagem relevante, a educação necessita de transformações nos seus componentes básicos. Precisamos de mais e melhores escolas que sirvam como ambientes ideais para a aprendizagem. Precisamos de mais professores e mais bem preparados para se tornarem guias na aprendizagem dos seus alunos. E também precisamos de melhores recursos de ensino-aprendizagem, incluindo recursos digitais - que devem tornar-se um bem público global e de acesso aberto. Tudo isso, claro, exige um grande investimento educacional.
Na conferência em Lisboa vai desenvolver o conceito de "armadilhas da pobreza". Como pode a educação libertar-nos dessa armadilha?
Os círculos viciosos são difíceis de fragmentar. Um país onde predominam os baixos salários tem, normalmente, uma economia extrativa e de baixa produtividade, cuja rentabilidade não depende da elevação do nível educacional dos seus trabalhadores. Pior ainda quando prevalece uma "corrida para o fundo", em que os países competem para atrair investimentos com base em incentivos fiscais generosos ou na desvalorização monetária. Neste contexto, prevalece a rentabilidade a curto prazo e é politicamente difícil promover reformas fiscais progressivas que aumentem o espaço fiscal para financiar a educação. Só um movimento que altere o equilíbrio de poder pode fraturar a armadilha da pobreza e avançar para o círculo virtuoso típico dos países avançados, onde os aumentos salariais andam de mãos dadas com aumentos de produtividade e há acordo nacional sobre o aumento dos impostos como forma de financiar o desenvolvimento educativo. Este, a longo prazo, trará retorno.
Desempenhou num passado recente o cargo de ministro da Educação na Costa Rica. Nessa qualidade, o que mais se orgulha de ter implementado e qual a decisão que lhe deixou mais frustrações?
Embora na Costa Rica existam boas universidades e excelentes professores, foi muito frustrante descobrir a deterioração na formação inicial de novos professores, especialmente aquela que é ensinada nas chamadas "universidades de garagem". Isto causa muitos danos e é um obstáculo a qualquer reforma educacional.
Quanto ao que me orgulha, em primeiro lugar, da reforma constitucional para aumentar o orçamento da educação de 5% para 8% do PIB, o que nos permitiu melhorar a remuneração dos professores, expandir e melhorar as infraestruturas educativas e aumentar sistematicamente as taxas de cobertura no ensino secundário. Na educação, orgulho-me de ter promovido uma visão de educação centrada nos alunos, que estimula o seu interesse e prazer em aprender, uma educação crítica e questionadora. Isto não foi aplicado apenas em disciplinas académicas - línguas, matemática, ciências - mas, sob o lema "ética, estética e cidadania", foi traduzido em programas e atividades que formam estudantes de forma abrangente, incluindo reformas inovadoras e novas na educação artística, na educação física, a educação cívica, a educação para a vida quotidiana e, sobretudo, a inclusão pela primeira vez de um programa de educação para a afetividade e a sexualidade.