"O futuro não pode repetir o passado"
Publicação do capítulo de António Costa Silva, atual ministro da Economia e do Mar e ex-Presidente da Comissão Nacional de Acompanhamento do Plano de Recuperação e Resiliência (PRR), que integra o livro 101 Vozes pela Sustentabilidade, lançado em maio.
O tempo para mudar de rumo está a tornar-se escasso, o que transforma a década que temos à nossa frente na mais decisiva da história recente da Humanidade. Este é o momento para catalisar uma mudança que, se for conseguida, será sem dúvida uma das mais notáveis de sempre.
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A nossa civilização e as nossas sociedades estão hoje numa encruzilhada, confrontadas com desafios enormes que, se não forem superados, podem conduzir a vida no planeta para um abismo. Como disse de forma lapidar o poeta TS Elliot: "A espécie humana não aguenta um excesso de realidade." Mas é mesmo disso que se trata: é preciso expor a crua realidade para, a partir daí, encontrarmos caminhos e respostas para pôr fim a um modelo de desenvolvimento económico insustentável e reinventar o futuro. O planeta Terra está hoje exposto a um conjunto de consequências induzidas pelo modelo económico e social prevalecente que é predador dos recursos do planeta, causa uma devastação ambiental sem precedentes e, ainda por cima, é iníquo porque amplifica constantemente as desigualdades. Os resultados estão à vista de todos e é por isso que o caminho para a sustentabilidade e a reversão do modelo atual são um imperativo.
1. Um planeta à beira do abismo
Quando hoje olhamos para a situação no Ártico temos evidências claras de que nas últimas três décadas desapareceram cerca de dois milhões de quilómetros quadrados de gelo. O gelo é um estabilizador do clima da Terra porque absorve parte da radiação solar que incide sobre o planeta. Se o gelo desaparece, o aquecimento dos oceanos torna-se incontrolável com tudo o que isso causa em termos do desequilíbrio e da morte de múltiplos ecossistemas. Como têm demonstrado as investigações do projeto internacional Argo, temos nas últimas décadas o aumento exponencial do aquecimento da camada superficial do oceano. O programa Argo aglutina muitos países e usa a nova tecnologia dos sensores para colocar pequenas boias no oceano que têm sensores de alta precisão que descem e sobem em ciclos de dez dias e vão até aos dois mil metros de profundidade. Estes sensores dão toda a informação de que precisamos para estudar e compreender o oceano: pressão, temperatura, nível de oxigénio, acidificação, nível de dióxido de carbono, volume de plásticos, volume de recursos biológicos, etc... Os dados fornecidos no âmbito deste projeto estão a revolucionar a oceanografia e a climatologia. E uma das descobertas mais impressionantes é que nos últimos 30 anos deixámos acumular na camada superficial do oceano, com cerca de três metros de espessura, energia equivalente a 1000 milhões de vezes a energia deflagrada nas bombas atómicas de Nagasáqui e Hiroxima. Temos hoje uma espécie de "bomba termal" ao retardador no topo do oceano e é essa energia, quando libertada para a atmosfera, segundo mecanismos que os cientistas ainda não conhecem em detalhe, que causa alguns dos fenómenos climáticos extremos como os tufões, ciclones, inundações, ondas de calor, chuvas torrenciais, secas violentas, etc... O mundo gasta biliões de dólares para tratar as consequências destes fenómenos e pouco faz para compreender e debelar as suas causas. É por isso que defendo que Portugal devia, em conjunto com outros parceiros e com consórcios de universidades, centros de investigação e empresas, criar uma grande Universidade do Atlântico nos Açores e na Madeira, que são dos lugares do mundo mais indicados para estudar a interação entre o oceano e a atmosfera e entre a terra e o ar. Os resultados de um projeto assim podem ser transformadores e gerar o conhecimento necessário para enfrentar e superar algumas destas catástrofes que têm consequências sociais e económicas devastadoras. A sustentabilidade implica também identificar os riscos e prevenir as catástrofes minimizando as suas causas.
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2. As alterações climáticas, os pontos de não-retorno e a habitabilidade do planeta
Existem outros efeitos pronunciados das alterações climáticas que podem ser preocupantes e o maior de todos, que pode configurar um ponto de não-retorno, é o aquecimento do permafrost, o solo gelado que cobre toda a tundra ártica e representa cerca de 25% do hemisfério norte. No permafrost estão armazenadas cerca de 1,5 biliões de toneladas de carbono orgânico, o que corresponde a cerca de duas vezes mais do que a totalidade do carbono que temos hoje na atmosfera. Se este solo gelado aquece e o carbono é libertado para a atmosfera, sob a forma de dióxido de carbono ou de metano, vamos ser confrontados com condições muito difíceis para a vida no planeta. Como perguntou o antigo Secretário-Geral das Nações Unidas, Kofi Annan, "para que serve a economia quando não conseguimos respirar?"
Como disse de forma lapidar o poeta TS Elliot: "A espécie humana não aguenta um excesso de realidade." [...] é preciso expor a crua realidade para, a partir daí, encontrarmos caminhos e respostas para pôr fim a um modelo de desenvolvimento económico insustentável e reinventar o futuro.
Para preservarmos as condições de habitabilidade do planeta e este continuar a dar suporte à vida, temos de conter e minimizar as emissões de dióxido de carbono, o que passa por mudar o modelo de desenvolvimento económico e social vigente e que repousa no consumo frenético de combustíveis fósseis. Como mostram estudos do US Geological Survey, nós estamos a consumir, hoje, em termos percentuais e comparando com o que acontecia há 50 anos, 618 vezes mais petróleo, 1000 vezes mais gás, 756 vezes mais níquel, 1500 vezes mais bauxite. Isto é insustentável: nós construímos uma civilização que transforma recursos em lixo a uma velocidade sem precedentes na história. É preciso reverter o paradigma: adotar a economia circular, reprocessar os resíduos e transformar lixo em recursos. É todo um programa e toda uma mudança mental e muitos não estão preparados para isso. Por outras palavras: a sustentabilidade passa, de forma inequívoca, pela mudança do nosso modelo de desenvolvimento económico, pela mudança do nosso modo de vida e pela mudança do nosso comportamento. E tudo isto está longe de acontecer na prática, apesar de toda a retórica em torno do tema. Ainda hoje, três décadas depois da Conferência do Rio de Janeiro de 1992, a matriz energética mundial depende em cerca de 83% dos combustíveis fósseis. A transição energética não está a acontecer ao ritmo necessário. Os investimentos em energias renováveis estão longe de ser suficientes. E vimos na recente crise gerada com o aumento do preço das matérias-primas e a subida dos preços da energia, que a tentação de voltar ao passado e de acelerar o consumo de carvão, o mais poluente dos combustíveis fósseis, é grande em alguns países do mundo. Se isso acontecer, resolve-se o problema no curto prazo, mas criam-se condições para a aceleração das mudanças climáticas, para a subida do nível do mar, para o aumento do ritmo das emissões de dióxido de carbono e para a insustentabilidade da vida no planeta.

© Scott Eisen / GETTY IMAGES NORTH AMERICA / Getty Images via AFP
3. A crise global da sustentabilidade e a década decisiva
A crise climática é apenas um sintoma de uma crise de sustentabilidade que é global. Os sistemas que suportam a vida no planeta, das camadas de gelo aos oceanos, das florestas aos rios e lagos, estão hoje sob tensão e alguns em disrupção. O mesmo acontece com os gigantescos fluxos de carbono, água, nitrogénio e fósforo, que são decisivos para a vida e que estão muito perturbados. A instabilidade que está a atingir estes sistemas e fluxos, que são cruciais para a vida, é uma ameaça real e há que encontrar caminhos para repor alguma estabilidade. Este é um dos grandes desafios deste século e não podemos falhar, sob o risco de alimentarmos uma ameaça existencial crescente. A velocidade e a escala a que estas alterações ocorrem, e as consequências que espalham no mundo, criam uma espécie de efeito dominó que multiplica as crises e torna ainda mais difícil a sua gestão. O tempo para mudar de rumo está a tornar-se escasso, o que transforma a década que temos à nossa frente na mais decisiva da história recente da Humanidade. Este é o momento para catalisar uma mudança que, se for conseguida, será sem dúvida uma das mais notáveis de sempre. O caminho para a sustentabilidade passa por agarrarmos este momento de mudança e empreendermos coletivamente transformações de grande alcance na energia, na alimentação, no uso da terra, no paradigma das cidades, na segurança sanitária, na adoção de tecnologias mais sustentáveis.
Como disse de forma lapidar o poeta TS Elliot: "A espécie humana não aguenta um excesso de realidade." [...] é preciso expor a crua realidade para, a partir daí, encontrarmos caminhos e respostas para pôr fim a um modelo de desenvolvimento económico insustentável e reinventar o futuro.
É preciso, como acontece nos momentos transformadores da evolução das sociedades, que se crie uma grande convergência entre os movimentos sociais que lutam pela sustentabilidade, os decisores políticos, uma nova geração de políticas públicas e a transformação económica, envolvendo todos os atores numa aposta profunda na economia circular, na bioeconomia e na inovação tecnológica. O crescimento económico não se pode fazer à custa da degradação da biosfera do planeta e da alteração e disrupção profunda dos processos que regulam a estabilidade da Terra. O planeta tem os seus limites que não convém serem desafiados, sob risco de tornar a instabilidade incontrolável. Em 2009 os cientistas identificaram nove limites do Sistema Terrestre. Estes limites são variáveis críticas que são essenciais para manter a estabilidade da vida na Terra, em condições semelhantes às que prevaleceram no Holocénico nos últimos 10 mil anos. Em 2015 os cientistas concluíram que a atividade humana já teve um impacto sério e transgressivo em quatro desses limites: no sistema climático; na biodiversidade; no uso e tratamento da terra; nos fluxos biogeoquímicos. Mas se analisarmos os outros limites do Sistema Terrestre, também eles estão sob pressão e os riscos são elevados na acidificação, na camada de ozono, na atmosfera, no uso da água fresca, na poluição com novos elementos. É tempo para pararmos e definirmos um caminho capaz de respeitar os limites do Sistema Terrestre. É tempo para assumirmos a custódia responsável do nosso planeta e preservarmos a vida e a habitabilidade. Neste caminho a sustentabilidade é também e sobretudo um modelo de desenvolvimento e de vida capaz de operar dentro dos limites do Sistema Terrestre e de impedir a sua violação sistemática, como acontece hoje.
ortugal devia, em conjunto com outros parceiros e com consórcios de universidades, centros de investigação e empresas, criar uma grande Universidade do Atlântico nos Açores e na Madeira, que são dos lugares do mundo mais indicados para estudar a interação entre o oceano e a atmosfera e entre a terra e o ar.
Os limites do Sistema Terrestre oferecem-nos um envelope de segurança dentro do qual devemos operar e viver. E isso significa cuidarmos dos três grandes sistemas que regulam a estabilidade do nosso planeta e que operam a uma escala gigantesca: o sistema climático; a camada de ozono; o oceano. O sistema climático liga a terra, o oceano, as calotes de gelo, o ar, a água, a atmosfera, num sistema único, complexo e interdependente. Controla os fluxos essenciais que suportam a diversidade da vida no planeta. A camada de ozono é um escudo protetor que salvaguarda a vida na Terra e impede que ela seja exterminada pela radiação ultravioleta que provém do espaço. O oceano cobre 70% da superfície da Terra e é no fundo a sala de máquinas do nosso extraordinário planeta. O oceano regula a troca de calor entre a atmosfera e a superfície, alberga múltiplas formas de vida, regula o fluxo de nutrientes e o ciclo da água. Sem um oceano estável e funcional não podemos ter um planeta estável e sustentável.
O tempo para mudar de rumo está a tornar-se escasso, o que transforma a década que temos à nossa frente na mais decisiva da história recente da Humanidade.
Neste contexto a sustentabilidade implica também cuidarmos dos processos fundamentais que têm lugar na biosfera, preservar a sua integridade e assegurar as condições de vida dos ecossistemas, incluindo os grandes biomas naturais, que são críticos para toda a vida na Terra, como as florestas húmidas, a tundra, as savanas, os pântanos. Decisivo é também salvaguardar os ciclos biogeoquímicos, os fluxos globais de nitrogénio e fósforo e o ciclo natural da água, que está hoje muito perturbado com as alterações climáticas e a desertificação. Todos estes ciclos e processos interagem com a natureza viva, com os micróbios, as plantas, as árvores e os animais e são decisivos para a vida no planeta e para a sua estabilidade.
4. Portugal à procura de um caminho
Para um país como Portugal a questão da sustentabilidade e da mudança do modelo de desenvolvimento económico é crucial. O sistema costeiro português esteve estável nos últimos três mil anos, exibindo um comportamento geodinâmico regressivo. Em termos geológicos, a tendência dominante da linha costeira era para migrar para o oceano. Este comportamento mudou drasticamente a partir da última década do século xx, com a aceleração das mudanças climáticas e com a subida do nível do mar. O sistema costeiro português passou a ter um comportamento transgressivo, o que significa que a erosão do litoral começou a agravar-se sendo que, hoje, dos 950 quilómetros da costa portuguesa cerca de 25% estão a ser atingidos, como é visível na Figueira da Foz ou em Aveiro (onde o balanço e equilíbrio sedimentares devem ser repostos), ou nas zonas estuarinas do Tejo, do Sado ou da Ria Formosa. Este problema é importante porque na faixa litoral vive cerca de 75% da população portuguesa e é responsável por cerca de 85% do PIB do país. A sustentabilidade é um conceito multidimensional e isso significa que é necessário assegurar a sustentabilidade ambiental, mas também a sustentabilidade económica e social. Portugal está a ser duramente flagelado pelas alterações climáticas porque ao problema do litoral acresce a desertificação, que se pode acelerar em zonas do interior como é já hoje visível no Alentejo ou no norte do Algarve. Por todas estas razões é essencial apostar na sustentabilidade, mudar o modelo económico, adotar a economia circular, mudar o paradigma mental vigente, reprocessar os resíduos, transformar "lixo" em recursos, mudar a matriz energética, reforçar o cluster das energias renováveis, apostar na bioeconomia e nas biotecnologias. Estas podem criar produtos biológicos capazes de substituírem os plásticos e as redes de pesca que danificam os oceanos e onde continuamos a depositar entre oito a 10 toneladas de plástico todos os anos. Os produtos biológicos podem também substituir os fertilizantes químicos, que danificam os terrenos. A bioeconomia, incluindo a bioeconomia azul com base nos biotas e nas algas marinhas, pode contribuir decisivamente para uma economia sustentável e regenerativa e alimentar inúmeros clusters industriais, desde o setor agroalimentar à farmacêutica e fabricação de medicamentos, à cosmética, a novos clusters baseados na física e na química da natureza. O maior erro da nossa civilização foi divorciar-se da natureza e é urgente voltar a aprender com ela e "renaturalizar" os nossos processos de produção e de fabrico. A natureza opera com a energia livre do sol, interage geoquimicamente com todo o Sistema Terrestre e cria ecossistemas que são eles próprios operativos, eficientes e regenerativos. Na natureza não existe a noção de lixo, o lixo de uns é o alimento, o húmus de muitos.
conomia pode adaptar-se, cortar as suas emissões e tornar-se muito mais sustentável. A indústria e a manufatura podem adotar a economia circular. O sistema de transportes pode apostar na oferta pública e na mobilidade elétrica. A produção de alimentos pode reduzir o desperdício e investir na agricultura de precisão e sustentável.
É imperioso também repensar o território, dar maior relevância ao papel das cidades médias do interior, que podem ser novas âncoras de desenvolvimento, potenciando as suas valências e as ligações entre o tecido produtivo e o sistema científico e tecnológico. Deve ser construído um novo modelo para as cidades, mais inteligente e mais sustentável, apostando na gestão integrada dos fluxos de pessoas, veículos, água, energia e resíduos. Este modelo, para ser sustentável, deve ser capaz de utilizar a tecnologia dos sensores, o tratamento de dados com a inteligência artificial e as máquinas que aprendem, para reconfigurar o sistema de transportes, otimizar as frotas públicas, promover a eletrificação e reduzir consideravelmente as emissões de dióxido de carbono e o desperdício. É importante também reconfigurar o mosaico agrícola e florestal, de forma a aumentar a resiliência do país, combater a desertificação e apostar em culturas agrícolas que consomem menos água, que contribuam para a regulação do ciclo hidrológico e que podem funcionar como "sumidouros" naturais e eficazes de carbono. A gestão integrada do sistema agrícola e florestal e dos recursos hídricos é um dos caminhos para a sustentabilidade. É preciso olhar de forma profunda para a gestão dos recursos hídricos e para sua sustentabilidade no futuro, apostando também aí na economia circular, no tratamento das águas residuais, na captação da água da chuva, no estabelecimento de novas reservas, na identificação dos riscos de escassez e stresse hídrico, explorando novas soluções como a dessalinização. A sustentabilidade começa na cabeça das pessoas. O caminho é exigente, multifacetado, pluridisciplinar, abrangente e transformador. As respostas existem e devem ser exploradas e enriquecidas com novas ideias. Cada setor da economia pode adaptar-se, cortar as suas emissões e tornar-se muito mais sustentável. A indústria e a manufatura podem adotar a economia circular. O sistema de transportes pode apostar na oferta pública e na mobilidade elétrica. A produção de alimentos pode reduzir o desperdício e investir na agricultura de precisão e sustentável. A construção pode apostar no isolamento dos edifícios, na luta contra a pobreza energética e no uso de novos materiais mais sustentáveis. Na energia, a maior utilização de energias renováveis, como a eólica e a solar e os novos sistemas de armazenamento, é um caminho promissor. As ideias existem, é preciso vontade política e social para mudar a caminho da sustentabilidade. Esta cria riqueza e prosperidade, preserva o capital natural do planeta e os seus ecossistemas, promove uma vida mais saudável e é essencial para construirmos um país diferente capaz de ter futuro e de reconstruir a esperança. E a esperança é a gramática da vida.