O advogado que gostava de ter sido presidente - de câmara ou do Benfica

Brunch com o advogado André Luiz Gomes.
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Gostava que usássemos o método inglês ou o maître francês, claro - eu sou um francófilo assumido. Não sou médico, não vejo por que me hão de chamar doutor. Detesto tudo quanto sejam corporativismos", diz-me sem rodeios. Para quem nasceu numa família de advogados e assumiu a vocação que lhe está impressa no ADN, André Luiz Gomes é pouco ou nada preso à forma. Dizem-no difícil e conflituoso, mas o riso franco e rápido, a facilidade com que vai tecendo a conversa à mesa, tiram credibilidade à sentença. É porventura "pouco consensual", por óbvia falta de paciência para certas convenções muito portuguesas. Ou talvez a explicação para quem o vê distante seja mais simples, materializada nessa forma de encarar a profissão sem se prender ao usual classismo, que rejeita em absoluto, com uma explicação pragmática: "A minha função é defender os clientes, não os outros advogados."

Sentamo-nos à sombra do Ibo, quase cantina para quem tem escritório ali pelo Cais do Sodré, mas hoje o calor afasta-o do habitual caril, trocado por uns filetes de polvo com arroz de feijão e coentros para os dois. Enquanto não chegam, vai relatando episódios da vida. Como a razão porque se chama André, mera casualidade, uma "birra" de última hora no pátio da igreja. Acontece que o padrinho, que não queria ter filhos, não desperdiçou a oportunidade de passar o próprio nome, arruinando as esperanças da mãe - que já por duas vezes tivera de ceder à tradição de família do lado paterno (os irmãos António Maria e Joaquim Maria, os "Micos", como lhes chama carinhosamente) - de dar o nome que queria a um dos filhos. "Na minha cruz e na vela de batismo está escrito Tiago Maria", conta André a rir.

Os nomes, como a advocacia, são tradição de gerações, ainda que os filhos não pareçam inclinados a prossegui-la: o mais velho fez Economia, os outros dois ainda entraram pelo Direito mas não ficaram muito tempo, um rendido às Finanças, em que se especializou em Oxford, outro a caminho de um mestrado em Gestão. Como o é a política. "Tive de tudo na família, incluindo um bisavô republicano (António Luiz Gomes) que teve um filho fascista (António, como o pai) e outro que foi o primeiro candidato do PCP a Presidente da República (Ruy Luiz Gomes). E eu, que sou um liberal, também já tive ideias de seguir essa via", confessa.

Tinha o sonho de ascender a um de dois cargos: presidente do Benfica, de que é inabalável apoiante, ou presidente de câmara. Hoje vê ambas as opções como impossíveis - "agora sou um pária", justifica. E logo junta novo episódio dos seus anos de universitário, pós-Liceu Francês mas ainda a morar na Rua Luz Soriano, no Bairro Alto, onde cresceu, a dar corpo à razão por que nunca teve verdadeiramente hipóteses.

"Estava no 2.º ano da Faculdade de Direito quando recebi uma carta do Padre Seabra, da Católica, a convidar-me para uns grupos de reflexão, e achei estranhíssimo, porque nunca tinha sido muito dessas coisas. Ao jantar - jantávamos sempre tardíssimo, quando os meus pais, ambos advogados, saíam do escritório - mostrei a carta ao meu pai, que me disse: "Ui, isso é Opus Dei... Tu é que sabes, mas eu não ia." No ano seguinte, vem o Cláudio Monteiro, que na altura era presidente da Associação Académica, convidar-me para um grupo de reflexão e tal; eu contei ao meu pai, que me disse: "Ui, isso é maçonaria... Tu é que sabes, mas eu não ia." E eu, bom filho, não fui. Portanto, queimei as minhas possibilidades de entrada."

Ri-se com a história, que diz adorar contar aos muitos amigos que tem nessas organizações, a que garante que nunca pertenceria. E conclui que, sem a hipótese política, escolheu a advocacia, "o último reduto de defesa dos cidadãos contra os abusos do Estado". A mãe queria que seguisse Economia, dado o seu jeito para a Matemática - e até o fez cumprir testes psicotécnicos para provar o argumento -, mas não conseguiu convencê-lo. "Nunca duvidei de que queria ser advogado. Tomo sempre partido, por isso não poderia ser juiz, mas cresci a ouvir falar de advocacia, a impressionar-me com casos de corporate do meu pai, que por acaso gostava de ter sido penalista, mas na altura dele, dizia, o direito penal era uma farsa."

Quanto a André, muito novo deixou-se conquistar pelos mercados de capitais, área em que se especializou mal terminou o curso, chegando a ser, com menos de 10 anos de profissão, membro do Conselho Consultivo da Comissão do Mercado de Valores Mobiliários. Deu aulas de Finanças Públicas na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. Como advogado de corporate, passou pela Luiz Gomes & Associados e pela Cuatrecasas, antes de fundar a Luiz Gomes & Associados, em 2017.

Em mais de 30 anos a exercer, foi advogado de Horácio Roque e Paula Amorim, administrador não executivo de várias sociedades dos setores financeiro e de capital de risco, assessorou empresas de diferentes setores - bancos, financeiras, capital de risco e companhias das mais diversas áreas -, tendo estado envolvido em operações de recapitalização e venda de instituições do setor bancário e segurador.

E foi no início dessa vida que conheceu Berardo, de quem se tornou advogado e amigo, com quem construiu a coleção de arte e por quem é descrito como "the best lawyer in the world". Apoio incontornável do comendador, esteve ao lado dele em todos os passos do processo de negociação da dívida aos bancos, que levou os dois à Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) em 2019 e por fim à detenção, no último verão. Do processo de alegada fraude à CGD, que está a correr na justiça, André não pode falar. Já a descrição que faz das 48 horas que passou fechado, a sós, numa cela da Gomes Freire, depois de a polícia lhe bater à porta às 7h30 da manhã, é exaustiva, impressionista - ainda que André tente racionalizar, curar feridas.

Se o mediatismo do caso e do cliente, potenciado pela CPI, não lhe deixou grandes dúvidas de que seria provavelmente alvo de buscas (e para tal constituído arguido), nenhum pesadelo podia tê-lo preparado para a detenção. Para viver a humilhante revista à chegada aos calabouços - onde aguardaria dois dias para ser presente a juiz -, a fotografia tirada com a plaquinha a exibir o número de registo, a apreensão do pequeno saco que preparara quando percebeu que seria detido. Só lhe foi autorizado ficar com a pasta e a escova de dentes e um livro, por especial favor; os remédios foram entregues aos guardas. Na cela, tinha fronha mas não almofada no beliche, montado no canto oposto ao recanto onde havia duche, retrete e lavatório. Um par de maçãs foi tudo quanto conseguiu comer nas horas que se arrastaram até ser ouvido e, já na sexta-feira, libertado sob fiança.

André diz que a má experiência do lado de lá da justiça lhe deu mais sentido cívico, fê-lo perder o egoísmo. Admite que se fosse mais novo talvez tivesse ponderado emigrar. Mas nem por um momento se desiludiu com a profissão que escolheu. Tão-pouco com a família e amigos - "uns, poucos, desapareceram, mas a maioria esteve ao meu lado, a apoiar-me". Ou com os clientes, que mantém em larga escala, exceção feita aos bancos com quem sempre tivera trabalho - foi ele que, em 2012, defendeu a CGD no caso da venda da Cimpor, tendo ainda sido administrador do BCP, por exemplo - e que deixou de ter.

Retomou a vida profissional e aos poucos a pessoal é quase normal. Como antes, ainda faz as escapadelas de fim de semana para Brejinhos de Água sempre que está tempo de praia, mas ainda tem de evitar certos jantares e festas, até de família, para não se cruzar com quem está proibido de contactar. "É um milhão de euros que lá está de caução, dinheiro meu, da minha mãe e de dois amigos, como garantia de que cumpro a proibição de contacto com certas pessoas", explica.Não deixou de acreditar na justiça - ainda que lamente o desinvestimento do país nesta área, por oposição ao que se fez "na educação, quanto a mim com maus resultados, e na saúde, com muito bons". E essa convicção continua a passá-la a quem o procura no escritório, onde todas as manhãs chega já com uma hora de exercício físico feito. E se tem "o privilégio" de se sentir de férias à hora de almoço, vantagem de quem trabalha no Cais do Sodré, de olhos postos no Tejo e nos turistas que ali enchem as ruas, não descura os cuidados à mesa. Acompanha o almoço a água com gás e o "abuso" fica confinado a uma bola de gelado, antes de voltar ao trabalho, que lhe preenche o dia e a alma. "Se eu não trabalhasse, não me levantava antes das 13h00 e continuava a fumar três maços por dia", ri-se. Mas é a advocacia a vida que conhece. E garante: "Temos em Portugal juristas de excelente categoria, reconhecidos lá fora, de nível muito mais alto do que os espanhóis, por exemplo. O que nos falta são chefias em condições e um pouco mais de atitude."

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