Nuno Maulide: "Quando toco piano frente a uma audiência, sinto-me mais vulnerável do que ao dar uma palestra"

Natureza, tecnologia, comida e música são temas que bailam nas palavras de Nuno Maulide. Temas que para o professor universitário radicado na Áustria, onde foi considerado o cientista do ano em 2018, encontram um denominador comum na química orgânica. O dom de comunicar com simplicidade de quem trata por "tu" a complexidade.
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Não fosse levarmos para a conversa com Nuno Maulide territórios tão vastos como a origem da vida, a crise climática e as novas fontes de energia, esta podia ser uma entrevista contida no espaço que ocupa um piano. É frente às teclas do instrumento de cordas que o químico orgânico, nascido em Lisboa em 1979, nos recebe num hotel lisboeta. Nuno Maulide entretém-se ao piano no decorrer da sessão fotográfica que ilustra este artigo. O investigador desculpa-se por se apresentar de sapatilhas: "Foi o que se arranjou de manhã cedo quando cheguei a Lisboa." O extravio da bagagem deu-se na escala do voo que trouxe à capital portuguesa o cientista e professor universitário. Nuno Maulide ocupa, desde 2013, a cátedra de Síntese Orgânica na Universidade de Viena, na Áustria. O cansaço do voo, a maratona de entrevistas e o contratempo não esmorecem o sorriso daquele que foi eleito cientista do ano na Áustria em 2018. A pretexto do mais recente livro de Nuno Maulide, Como Desvendar o Quebra-Cabeças da Origem da Vida, dedicamos uma hora de conversa com o homem que desenreda conceitos complexos. Para o diretor do Instituto de Química Orgânica da Universidade de Viena, a ciência também se faz com humor e não há que negar-lhe alguma carga emocional.

"O que diz um átomo de carbono quaternário ao ser preso? Tenho direito a quatro ligações [chamadas], caso contrário parto esta cadeia". Não sei se o Nuno tem para a troca uma anedota melhor sobre química. É possível fazer humor com a química e cativar uma audiência?
Sim, é possível. A anedota que lhe vou contar resulta melhor na língua inglesa, mas vou procurar transmitir-lhe o sentido: "Uma pessoa está num bar e pede um copo de água ["a glass of H2O"]. Outra pessoa, ao lado, pede também um copo de água ["a glass of H2O too"]. O primeiro recebe água, o segundo um copo de água oxigenada [H2O2] e morre". A melhor maneira de transmitir conhecimentos é encontrar o humor e aspetos que não se relacionam diretamente com o assunto em questão. Será que é inato ou algo que treinamos muito? Talvez seja mais inato. Na vida, como na química, procuro sempre encontrar analogias que procurem tornar o conceito numa questão óbvia e simples.

É muito esquemático nas suas explicações. Em certo momento, referiu que a química orgânica tem uma forte componente estética. Porquê?
Porque essa estética transporta-me imediatamente para uma dimensão emocional. O problema da ciência é que tende a ficar muito à superfície, no racional e no lógico. Tem o seu valor, mas as mensagens indeléveis, por exemplo, na mente de um aluno, são aquelas que deixam uma marca no cérebro e também no coração. Daí, dedico-me a palestras/concertos em que explico algo de forma científica e o ilustro ao piano.

Quando se senta frente a um piano para tocar esquece a química ou ela continua a acompanhá-lo?
Quando estou ao piano estou dentro da música, não estou a pensar em nada de racional. É uma sala mental onde me isolo. É claro que quando estou a tocar para um público, partilho algo, abro uma janela para a minha alma. Quando toco piano frente a uma audiência, sinto-me mais vulnerável do que ao dar uma palestra. Nesses momentos, estou constantemente a franquear a barreira entre o racional e o emocional.

Há exemplos de químicos ou químicas que se notabilizaram na música?
Sim, o compositor russo Aleksandr Borodin. Foi um químico de grande calibre, uma das reações que descobriu, a descarboxilação de Borodin-Hunsdiecker, ensino-a na minha cadeira de bacharelato na Universidade de Viena. Também foi um dos pioneiros da famosa reação Charles-Adolphe Wurtz, que é a base do Prémio Nobel da Química de 2021 [Benjamin List e David MacMillan].

A leitura de uma revista datada de 1979, o ano em que o Nuno nasceu, "empurrou-o" para um percurso académico internacional...
Sim, numa época em que era monitor no Instituto Superior Técnico. Andava cheio de mim, a dar conselhos [risos]. Criei a ideia que a química orgânica não tinha segredos para mim. No final dos anos de 1990, decidi ler uma edição de 1979 do Journal of Organic Chemistry. Pensava eu que a revista tinha apenas artigos triviais. Não percebi nada do que li. Pensei: "Preciso de ir para um lugar onde a química orgânica tenha segredos para mim." E sai do país para fazer um estágio.

Para a tornarmos palpável ao leitor quer apresentar-nos a química orgânica?
É muito simples. A química orgânica é aquela que trata, na base, dos compostos do carbono. É fascinante pensar como aquele único elemento pode ter uma importância tão grande, que uma área inteira da química se dedica simplesmente ao estudo desse composto.

De tal ordem que no seu novo livro aborda temas tão diversos como o envelhecimento e se o podemos travar ou o que explica a cor verde dos sapos...
É a química mais diretamente ligada à biologia, aos seres vivos. Quando as pessoas se dedicam à bioquímica ou à química biológica, na verdade é uma química orgânica específica, de fenómenos que ocorrem em seres vivos. No meu caso, tenho uma perspetiva singular da química orgânica porque já a lecionei em quatro línguas diferentes, em português, francês, inglês e alemão.

Muda a forma como olha para a química dependendo da língua?
Se me ouvir falar estas quatro línguas, ou sérvio ou espanhol, sou uma pessoa diferente, porque penso de uma forma diferente.

Isso já o ajudou a resolver problemas?
Na investigação não sei até que ponto isso aconteceu, na vida pessoal sim. Por vezes, quando algo me "matraqueia" no dia a dia, falo durante o sono. A minha mulher percebe qual é a natureza dos problemas que tenho dependendo se falo em português, inglês ou alemão [risos].

Numa pesquisa por Nuno Maulide no Google, o seu nome aparece associado ao tremoço. O que o liga a este petisco tão nacional?
[Risos] Muito nacional, apesar de não sermos os maiores consumidores à escala mundial. Um colega da Faculdade de Farmácia da Universidade de Lisboa, o Professor Carlos Afonso, lançou-me o desafio de olhar para as águas de lavagem do tremoço. Este tem um grande amargor após a cozedura, daí a lavagem. O amargo resulta de um composto químico que se consegue extrair dessas águas de lavagem. Ocorreu-me que aquele composto podia ser convertido, numa etapa de síntese, num outro que a comunidade científica se queixava que tinha desaparecido dos catálogos de química, uma molécula muito preciosa, a esparteína, com uma aplicação prática, é um composto da química fina. Tem interesse para a agricultura 4.0 que, ao invés de se focar exclusivamente no produto alimentício, começa a tomar atenção a todos os passos intermédios, incluindo lavagens e resíduos.

"Na escola o problema é as crianças não entenderem para que serve a química", disse o Nuno Maulide ao Diário de Notícias em 2021. Se o Nuno estivesse perante quem desenha os programas de química nas escolas, o que lhes diria?
Desde 2021 e até este momento houve uma mudança muito interessante. Comecei a receber inúmeros e-mails, muitos remetidos por professores do ensino secundário. Viram no meu primeiro livro [Como se Transforma Ar em Pão] uma ferramenta para ajudar no ensino e torná-lo mais apelativo. Foi-me dito que foram utilizados excertos do livro e inseridos nos programas de físico-química de muitas escolas secundárias. Aliás, fui convidado a visitar as escolas. Não podendo vir a Portugal, sugeria fazermos algo online. Todas as semanas, ao longo de meses, havia pelo menos um encontro com uma escola secundária, de Trás-os-Montes ao Algarve, sobretudo fora dos grandes centros urbanos. Nessas conversas surgiram muitas das perguntas que estão no meu novo livro.

Os físicos são melhores comunicadores do que os químicos?
Talvez porque os físicos tenham percebido rapidamente que uma disciplina tão abstrata e difícil, teria de ser comunicada ao público, para que não se pensasse que eram uma "sanguessugas" de dinheiro sem apresentarem resultados práticos. Na química, os investigadores convencem-se que a sua missão é dupla, fazer investigação, publicar artigos de prestígio para ganharem dinheiro e voltar à investigação. Agora, algumas universidades começam a ter uma terceira componente, a de ligação à sociedade. Nos Estados Unidos há um exemplo de alguém que faz muito boa divulgação de ciência e é um químico orgânico de exceção, o Neil Gar, um bom amigo.

No seu livro, o Nuno faz, por exemplo, ligações insuspeitas como a das bactérias do nosso intestino e uma possível fonte de eletricidade no futuro...
Sim, esse tema encaixa-se numa outra matéria, a das cianobactérias. Quando eu compreendo os fenómenos e os problemas de um ponto de vista químico, não preciso de me limitar à química que posso fazer num laboratório. Devo olhar para a natureza que, provavelmente, já encontrou uma solução muito melhor. A natureza teve muito tempo para se desenvolver e uma grande pressão evolutiva. Estamos num ponto da sociedade em que podemos olhar para a natureza como forma de resolver os problemas. Dou-lhe um exemplo: o processo Haber-Bosch, aquele em que se "pega" no azoto da atmosfera e o transforma em amoníaco que é a base de adubos e fertilizantes. É um processo que consome quase 5% de toda a energia produzida no planeta. Demonstra quão importante é a reação e quão ineficientes nós somos. Porque há bactérias da família nitrogenase que já fazem a fixação do azoto e transformação em amoníaco "como se não fosse nada". Porque consome tanta energia o processo desenvolvido pelos humanos? Porque envolve pressões altíssimas a temperaturas altíssimas.

Porque é que a fotossíntese artificial pode ser o "Santo Graal" da sustentabilidade?
Benjamim List, Prémio Nobel da Química, esteve recentemente numa apresentação em Viena onde disse: "não há reação química mais bonita do que a fotossíntese". Porque esta pega em tudo o que para nós é lixo (CO2), mistura com água e faz açúcar. É linda, porque descarboniza a atmosfera e transforma o CO2 em algo interessante que é o alimento da planta. Repare, como é que as pessoas pensam em energia? Quando carrego num interruptor e a luz se acende, quando o carro anda, se me sinto com mais ou menos energia. Quando se pensa na fotossíntese, percebe-se que a energia pode ser armazenada sob a forma de ligações químicas. É isso que as plantas fazem: pegam na energia do Sol, aprisionam-na sob a forma de ligações químicas no açúcar. No fundo, não é preciso muito para percebermos que o petróleo, tal como todos os combustíveis fósseis, são como toda a energia do Sol, nos últimos milhões de anos, conservada sob a forma de ligações químicas. Quando pensamos na energia como um jogo de ligações químicas, começamos a ganhar uma outra apreciação da química nos desafios da humanidade.

Quando se refere ao buraco na camada de ozono, o Nuno diz-nos que o problema foi resolvido pela comunidade internacional com "pouca fanfarra e muita eficiência". Não se passará o contrário no que toca à crise climática, "com muita fanfarra e pouca eficiência"?
Em parte, porque as pessoas perceberam que há muito dinheiro envolvido. Quando aparece um problema e todos os governos do mundo começam a desbloquear recursos para o tentarem resolver, abre-se a porta para muitas tentativas que, na verdade, não têm aplicação prática. Dou-lhe um exemplo: a falta de água é um problema enorme. Há verbas para projetos. Vai encontrar projetos que são muito bons, outros sem grande aplicabilidade e, no final, sobra dinheiro para um projeto que diz "vamos espremer as toalhas todas para um balde e com isso recuperamos água" [risos]. À superfície até parece que convence. Quem faz isso sabe muito bem o que está a fazer que é procurar obter recursos para a sua investigação. Acontece um bocadinho isso com as alterações climáticas, sobretudo com a questão do CO2. Cresceu uma química de CO2 que não existia antes e que, sejamos sinceros, 90% nunca terá aplicabilidade. Até posso escrever um projeto de investigação, recebo uma verba, vou aos media e nunca sairá disso. Se calhar a fanfarra está aí.

Momento fake news: Há um lobby das companhias petrolíferas que nos impede de ter carros movidos a água?
Admito no livro que durante muito tempo também achava. Quando me fizeram essa pergunta, investiguei para "tirar a limpo". Quando pensei nisso do ponto de vista químico, percebi que os produtos finais da combustão são o CO2 e a água. Logo, o produto final da combustão não pode ser um combustível.

Se ao Nuno fosse possível fazer uma pergunta a ser respondida por um químico do futuro, qual seria?
A mesma que deixo no novo livro: Como desvendar o quebra-cabeças da origem da vida? Acho que vamos fazer por essa resposta nos próximos cem anos. Tem tanto de íntimo e pessoal como de fascínio científico. A vida, seja nossa, seja a de uma bactéria, não é mais do que um aglomerado de moléculas em que todas interagem, como numa rede social. Cada uma sabe muito bem qual é a sua missão, como reagir e em que contexto. Mas, como é que isso tudo começou, qual a lógica por detrás disso? A partir de que ponto é que um agregado de moléculas se torna num ser vivo?

Como desvendar o quebra-cabeças da origem da vida
Nuno Maulide
Planeta
216 Páginas

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