O Governo aprovou a nova Lei-quadro que regulamenta o exercício das ordens profissionais, a Lei n.º 12/2023, de 28 de março, que está a gerar reações nalgumas áreas, nomeadamente jurídica, e agora na Saúde, levando à primeira baixa nas comissões nomeadas pelo Governo..O médico Mário Jorge Neves, nomeado ainda por Marta Temido para o cargo de coordenador da Comissão para a Reforma da Saúde Pública, enviou nesta terça-feira, dia 12, a carta de demissão à Secretária de Estado da Promoção da Saúde, Margarida Tavares. Nesta elogia o seu trabalho de articulação institucional com a comissão, "sempre pautado por uma atitude de rigor técnico, de seriedade política e de simplicidade na relação pessoal", atributos que diz que nestes cargos "não têm sido, infelizmente, muito frequentes ao longo dos tempos", assumindo não poder continuar a exercer tais funções.."Ao tomar conhecimento da nova lei-quadro das ordens profissionais e do novo estatuto da Ordem dos Médicos, entendi que, sendo eu um cidadão livre e com bons costumes de coerência e de ética políticas, era incontornável uma tomada de posição da minha parte", escreve Mário Jorge Neves..O médico justifica a sua posição do ponto de vista pessoal por considerar que a nova lei aprovada pelo Governo "constitui uma violenta e escandalosa tentativa de liquidação de elementares competências legais da Ordem dos Médicos e de ingerência política e governativa na autonomia e independência técnico-científica da profissão médica"..E, neste sentido, tendo assumido sempre uma "intervenção política e cívica sem "amarras" e tendo como pedras angulares a defesa e dinamização do SNS como pilar humanista e solidário de uma sociedade democrática, bem como na defesa da Carreira Médica como mecanismo inquestionável de garantia da qualidade do exercício da profissão médica", era "incontornável uma tomada de posição da minha parte"..O coordenador da Reforma da Saúde Pública especifica ao longo da carta de demissão as medidas na lei que o levaram a esta decisão, nomeadamente as alterações em relação à livre concorrência, as quais, no caso da profissão médica considera que colocam em causa a garantia de segurança dos cuidados. "As disposições da livre concorrência sobrepõem-se a tudo, esmagando as garantias da qualidade do exercício da profissão médica e os níveis de segurança dos atos próprios dos médicos. Em nome dessa livre concorrência até chegai ao ponto de possibilitar o exercício da profissão médica sem necessidade de inscrição na Ordem dos Médicos"..Segundo o médico, "estas medidas passam a ficar registadas como o exemplo dramático da capitulação político-ideológica do Partido Socialista ao neoliberalismo mais extremista de inspiração thatcheriana." E dá exemplos, como "a questão da criação de 'estágios' e de os médicos no início da sua atividade profissional deixarem de ser considerados médicos internos e passarem a ser 'estagiários'. O contrato de trabalho passa a ser um 'contrato de estágio' e o salário mensal passa a ser ' bolsa de estágio mensal'.".No entender do especialista em Saúde Pública, "são disposições mais que suficientes para podermos concluir muito facilmente que Governo está a escancarar as portas para em seguida poder ser liquidada a Carreira Médica e ser estabelecida uma extrema precariedade laboral a nível dos médicos mais jovens.".Mas vai mais longe, referindo que as disposições nesta lei-quadro visam "instaurar o clima do comissariado político cavaquista inaugurado em 1988 com as nomeações político - partidárias para os vários níveis de gestão dos serviços públicos de saúde e que tem sido um decisivo fator de erosão e debilitamento do SNS. Existir um chamado provedor de serviços não médico, estabelecer a criação de um órgão de supervisão para regular o exercício da profissão médica, presidido por um cidadão não médico e constituído maioritariamente por não médicos, que vai ao extremo de intervir na definição de regras dos estágios profissionais e até das próprias especialidades e, ainda, estabelecer órgãos disciplinares integrados por não médicos, constituem um somatório monstruoso destas medidas governamentais.".O médico comenta mesmo que "nem nos tempos do regime ditatorial deposto em Abril de 1974 houve descaramento político para ir tão longe.".Perante "a gravidade brutal destas medidas", Mário Jorge Neves diz que se impõe à sua "consciência cívica um imperativo de intervenção enérgica na luta que, inevitavelmente, se avizinha", o que, e estando nas funções de coordenação estava eticamente limitado para ter uma intervenção de contestação". Sendo este o contexto em que apresenta a sua demissão..O DN já pediu à tutela um comentário sobre esta demissão e os seus argumentos, mas ainda não obteve resposta.