No tempo em que as feras habitavam Portugal. O relato de um país entre o real e o imaginário

Ursos, lobos, zebros, castores, mas também lobisomens, sereias e outros entes habitaram física e mentalmente o espaço natural, cultural e social de um Portugal visitado por Miguel Brandão Pimenta e Paulo Caetano. Um périplo a fontes documentais que os autores sintetizam no seu livro <em>Feras e Homens - A Fauna no Portugal Medieval.</em> Conversámos com Paulo Caetano.
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"As serpentes são pequenas, mas grossas. Têm asas parecidas com as dos morcegos e a cabeça armada com um aguilhão. Os escorpiões têm o tamanho de cães de caça medianos e as costas pintadas de cor (...) e os lagartos não são menores do que gatos". Poisando os olhos nas linhas que enformam este excerto retirado das crónicas da viagem do nobre boémio Leon de Rosmithal, cremo-lo embrenhado em território fantástico. Na realidade, realizava o barão uma viagem ao nosso país. Corria o ano de 1467. O relato do seu cronista espelha uma perceção do mundo natural daquele século XV, um território de temores. Miguel Brandão Pimenta e Paulo Caetano, autores do livro Feras e Homens - A Fauna no Portugal Medieval (edição Bizâncio), transportam para a sua escrita uma paisagem de medos palpáveis, mas também mentais. A par de um elenco de grande fauna, como o urso, o gamo ou o lobo, o Portugal da Idade Média, lutava com seres sobrenaturais. Uma arena de batalha entre homens e feras onde também pesava o estatuto social.

Em jeito de prólogo à conversa com Paulo Caetano, há que perceber as razões subjacentes ao livro de mais de 300 páginas que entrega aos escaparates: "há uma razão de ordem prática. Eu e o Miguel tínhamos escrito, em 2017, a quatro mãos, o livro O Urso-pardo em Portugal - Crónica de Uma Extinção, obra que se debruça no aparecimento deste animal no nosso território, retratado nos vestígios arqueológicos mais antigos, até à sua extinção no século XIX". Na época, a obra obrigou os dois autores a consultar fontes primárias, nomeadamente as medievais. "Aí, encontrámos dezenas de outros dados muito interessantes, mas que não serviam aos propósitos do livro, nomeadamente de outras espécies, de aves, mamíferos e de peixes. Concluímos que seria interessante aproveitar este manancial de informação relativo a um período em que existe muita documentação fidedigna", sublinha Paulo. A dupla de autores ampliou as fontes e embrenhou-se no tema para nascer Feras e Homens. "Falamos do urso, mas também do lobo, do javali, do veado, do corço, da lebre, do castor, do espadarte, do texugo, do zebro, entre dezenas de outras espécies", adianta Paulo Caetano.

"A floresta era o sítio de todos os medos. Esta já vinha a ser destruída no litoral e no sul do país, embora as zonas mais recônditas no norte ainda mantivessem enormes áreas florestais. Na verdade, tudo aquilo que ficava entre as povoações e os seus locais de cultivo e daí até outras povoações, era floresta, rasgada por alguns caminhos com poucas condições de trânsito", recorda o nosso interlocutor, para acrescentar que "a floresta era uma incógnita que escondia tudo, dos salteadores aos animais selvagens de grande porte. Também escondia os mitos próprios daquela época. Ou seja, a floresta era um estado "mental", um lugar de perigos físicos exacerbados pelos medos e mitologia que as crenças e a religiosidade da época impunham". O lugar "de lobos esfaimados, do lobisomem e dos trasgos, pequenos seres sobrenaturais do norte do país. Era também um lugar de coragem e de montarias ao urso, ao veado e ao javali", como escrevem os autores no seu livro.

Para além do palco do imaginário, a floresta na sua dimensão física apresentava contornos diferentes dos atuais, "especialmente no centro e no norte, porque o sul e todo o litoral foi muito desbastado durante a ocupação islâmica e posteriormente. Obviamente que ainda existiam a sul zonas muito interessantes, nomeadamente no Alto Alentejo e na zona da Arrábida. O norte começou a ser destruído para a agricultura e caminhos a partir da Idade Média. Originalmente, essa região contava com manchas de carvalhos de folha caduca e o sul com árvores de folha perene como o sobreiro e a azinheira. A região centro era uma zona de transição", sublinha Paulo Caetano.

A Idade Média afirma-se como o período em que "começamos a perceber o retrocesso de animais de grande porte. O urso é o melhor desses exemplos, vai desaparecendo primeiro no litoral, depois no sul, mais tarde no norte, até encontrar refúgio na zona do Gerês, para ai se extinguir como reprodutor no século XVII, em 1650, quando foi abatido o último animal. Ocasionalmente, vindos do norte da Galiza, alguns ursos passavam a fronteira e eram descritos como feras e bestas estranhas, logo perseguidas. Pelas descrições conseguimos perceber que eram ursos", adianta o autor. Recorde-se que o último registo de um urso abatido em território português remonta a 1843. "No entanto, refira-se que a nobreza tinha um grande respeito pela presença do urso. D. João I, no seu Livro da Montaria, refere a certo momento em a visão de um urso no monte é divina", conclui Paulo Caetano.

De acordo com os autores de Feras e Homens, a época em apreço foi um período de enorme predação. "A fauna era dizimada por motivos muito simples o que se prende com a própria estrutura social. Para a plebe, os animais eram sempre uma ameaça, considerados "daninhos" e "condenados". Também eram sinónimo de prejuízo, pois estragavam as culturas, acarretavam prejuízos numa economia rural muito fragilizada. Por outro lado, matar o animal trazia outra vantagem, deixava de ser um prejuízo para se tornar num aporte proteico", enfatiza o entrevistado.

"No que toca aos reis e à nobreza guerreira, a perseguição dos animais relacionava-se com o jogo da caça. Esta era um desenfado, uma forma de distração entre as guerras. A nobreza procurava, desta forma, proteger a caça, não por uma questão de conservação, mas para garantir o privilégio. Se aqueles animais desaparecessem deixariam de caçar", adianta Paulo Caetano, para acrescentar que "o país estava fortemente coutado e, nesses locais, o exercício de caça era muito restringido.

Basicamente, era apenas aberto à nobreza. Na realidade, os animais iam desaparecendo. O urso é um bom indicador. Na Baixa Idade Média, o urso existia em todo o país. Nessa época a captura deste animal era proibida a sul, pois existiam poucos exemplares, mas incentivada a norte, pois o território apresentava efetivos numerosos que causavam problemas. Permitir a caça aos donatários das terras era uma forma de os incentivar a ali permanecerem".

No caso dos animais de grande porte, a caça era ainda encarada como uma preparação para as guerras. "Aliás, por isso é que D. João I e D. Duarte escrevem, respetivamente, o já referido Livro da Montaria e o Livro da Ensinança de Bem Cavalgar Toda a Sela. Obras sobre a caça e sobre a montaria, o tipo de armas que se podiam usar, como investir contra o animal e como reagir a um seu ataque. D. Duarte considerava que mais do que os torneiros, eram as jogadas de caça que, de facto, preparavam o braço e conferiam a destreza necessária para a guerra", conclui Paulo Caetano.

Caça que era muito hierarquizada, controlada socialmente. Entre a plebe a "caça fazia-se sem regras. Mesmo quando era permitida, valia tudo e sem que envolvesse risco físico. Se fosse necessário chegava-se lume ao monte, usava-se o arco ou mesmo uma armadilha com mel como chamariz e um maço de madeira como instrumento de abate no caso do urso. Quanto mais distante, mais seguro", adianta o entrevistado.

Por seu turno, a nobreza procurava a proximidade com a caça. "Por exemplo, as lanças eram curtas. Por vezes corria mal. Há registos históricos de caçadas que correram mal, nomeadamente o caso do filho de D. Dinis, Fernão Sanches, falecido em 1327, crê-se que vítima de um ferimento provocado por um javali. A plebe era convidada a participar como monteiros. Gente que, depois, tinha de bater o monte. Se o rei convocasse as pessoas para uma montaria estas tinham de nela participar obrigatoriamente. Cada um com o seu papel detalhado nos códigos".

A Idade Média foi um período particularmente difícil para o lobo. Sobre esta espécie não havia qualquer complacência e as causas para a caça que lhe era movida não se continham no campo tangível, também viviam nas crenças e mitos. "O lobo que podia ser morto em qualquer altura e sob qualquer pretexto. Os covis podiam ser assaltados, uma atividade que não só era bem aceite, como era remunerada em todo o país. As Ordenações sobre os lobos, mandadas publicar em 1549 por D. João III, são um bom exemplo do referido. Os lobos apelavam para a floresta dos medos de que falámos", recorda Paulo Caetano. "Quem percorria os caminhos escuros era eventualmente perseguido pelos lobos, não forçosamente com o intuito de atacarem. Na verdade, pensa-se que as alcateias mais jovens seguem os humanos por curiosidade. Há poucos registos de ataques de lobos saudáveis a pessoas saudáveis. O lobo aparecia muitas vezes para caçar à entrada das aldeias, na procura de ovelhas ou cabras. Por ser necrófago, também aparecia nos rescaldos das guerras e, aí sim, a devorar cadáveres. Aos olhos da época, isto não fazia do lobo um bom animal. Depois, claro, há todos os mitos. A religião Cristã que o vê como o animal que ataca o rebanho de Deus, ou mesmo crenças anteriores que associavam o lobo ao lobisomem. Ainda hoje, no século XXI, em certas zonas das serras do Gerês há quem ainda nos conte estas lendas. Mesmo em Bucelas, às portas de Lisboa, encontrámos lendas com lobisomens".

A captura de animais tinha também uma componente alimentar. A este propósito, Paulo Caetano, destaca o consumo das patas dos ursos, "consideradas um pitéu dos príncipes. De tal ordem que a pata constituía o imposto que o camponês tinha de pagar ao senhor feudal quando matava o urso. Já no javali a carne preferida era a do lombo e no veado a da coxa. Preferências que se assemelhavam àquelas que encontrávamos na procura de peles. Havia desde as mais comuns como a do gato, do coelho e da lebre e aquelas mais exclusivas, como a do esquilo ou a da marta". Se visitássemos um mercado medieval, a oferta dependeria da zona do país: "É muito interessante verificar esta questão, pois o Baleal era um local onde se caçava baleias. Ali, existiam vigias para a caça de cetáceos. Em toda essa zona existia um esforço de caça e de pesca dirigido à baleia e aos golfinhos, como o roaz, em embarcações muito frágeis. Estimamos que nessa época a densidade populacional destas espécies fosse elevada e que se aproximasse da costa. Não há grandes descrições sobre isso, mas calculamos que o tipo de embarcação e técnica não fosse muito diferente daquela praticada nos Açores. Desta forma, num mercado dessa região era possível encontrar carne daquelas espécies, algumas denominadas "sereias". Pagava-se imposto para caçar "sereias" que seriam, eventualmente, algum cetáceo da costa, talvez o boto".

"Era possível que no norte encontrássemos a cabra-montês, sobrevivente nas serranias do Gerês, de Barroso e em Trás-os-Montes. Depois, encontraríamos um pouco de tudo, como os animais domesticados, até qualquer tipo de animal que fosse capturado legal ou ilegalmente, vendido à luz do dia ou debaixo da banca. Isso inclui todo o tipo de aves, menos as de rapina. Depois, obviamente, tudo o que é animal do monte, desde o ouriço-cacheiro, às lebres, aos coelhos bravos, o veado, o javali e, uma vez mais, o urso".

Entre as espécies extintas que Miguel Brandão Pimenta e Paulo Caetano levam às páginas do seu livro está o zebro. "A carne de zebro também seria comercializada nas feiras e também o auroque, ancestral do touro doméstico. Sobre o zebro há pouca informação disponível, ainda hoje não percebemos se era uma espécie de burro ou de cavalo selvagem. Sabemos que era um equídeo, conhecemos-lhe a cor, que tinha várias listas escuras nos membros e no dorso, era muito rápido e destruía as culturas. Sabemos que estava distribuído por toda a Península Ibérica devido à toponímia. Por exemplo Zebrais, Zebreira, Vale do Zebro. A sua pele era muito valorizada, provavelmente porque já existiam poucos exemplares na Idade Média".

Nos principais estuários como os do Tejo, Douro e Guadiana, os pescadores aguardavam a chegada dos esturjões. Há mesmo o relato de um exemplar monumental, com mais de três metros de comprimento, pescado em Muge e servido à mesa do rei D. Dinis. "O esturjão era um animal belíssimo, enorme. Certamente era muito apreciado pelas suas ovas e pela sua carne. Mas, certamente também porque havia subprodutos aproveitados, como uma espécie de cola obtida a partir das membranas. Surpreende-nos as dimensões destes animais. D. João I, em Santarém, refere um esturjão que lhe foi oferecido e que era um animal tão gigantesco que mandou vir um tabelião para registar em ata a dimensão do exemplar para memória futura". Também o castor, espécie que pululava em rios nacionais, foi muito perseguida devido à sua pele. "Quem sabe se não vamos ter boas notícias nos próximos anos. O castor está em expansão na Europa. Foram localizados animais a reproduzirem-se, na natureza, no rio Ebro e também relatos no Douro Internacional. Quem sabe se os nossos rios não receberão de novo um animal aqui extinto há séculos", adianta com otimismo Paulo Caetano. "Aqui há uns anos quando entrou um urso em Montesinho não encontrou condições para se manter e reproduzir. O coberto vegetal está muito degradado, dificilmente conseguimos acolher de novo estas espécies. Mas, às vezes temos surpresas. A cabra-brava do Gerês esteve em vias de extinção e está agora bastante bem naquele território com núcleos populacionais importantes", conclui.

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