Do Ford Trimotor que ganhou o apelido de "Ganso de Lata", foram construídas 200 unidades. A aeronave para uso civil e militar saiu ao longo de oito anos, entre 1925 e 1933, das linhas de montagem das fábricas do norte-americano Henry Ford. Em 1929, uma destas aeronaves completou um voo inaugural sobre uma das regiões mais inóspitas do mundo, o planalto antártico. A missão comandada pelo norueguês Bernt Balchen singrou num território inóspito. Ali, onde a camada de gelo atinge os mais de dois quilómetros de espessura sobre o solo rochoso abaixo, o vento uiva incessantemente, a temperatura média anual cifra-se nos -58 ºC e, não raro, cai aos -80 ºC, espicaçada por noites que se alongam meses. No planalto antártico, a 3800 metros de altitude, onde a vida se manifesta apenas sob a forma bacteriana, eleva-se um marco dourado há 66 anos. Vladimir Ilych Ulianov, cuja história batizaria de Lenine, chefe de governo da Rússia Soviética de 1917 a 1924, fixa o olhar em direção a norte sobre um pedestal de madeira..O busto, presença solitária e inesperada no deserto ártico, firma-se no local que durante décadas foi tido como o Polo de Inacessibilidade da Antártida, um ponto a 878 quilómetros de distância do Polo Sul Geográfico. Um dos locais sobre a superfície terrestre cuja distância à linha de costa, traduzida em mares e oceanos, é localmente máxima. O deserto de Dzoosoton Elisen, na China, a 2688 quilómetros do mar, afirma-se como o Polo Continental de Inacessibilidade. Nas águas do Pacífico, o denominado Ponto Nemo designa o Polo Oceânico de Inacessibilidade, o mais afastado de terra firme, com a pequena Ilha Ducie, um atol desabitado, a assomar a mais de 2600 quilómetros de distância..Nos ermos meridionais, a estátua em plástico de Lenine aponta o rosto a Moscovo desde o dia 14 de dezembro de 1958. Aquele que é um artefacto sobrevivente aos idos da antiga União Soviética surge arrolado nos 86 itens que integram a lista de lugares históricos e monumentos aprovados pelo Tratado da Antártida, documento assinado a 1 de dezembro de 1959, então por 12 países. Documento que compromete os Estados signatários a suspender as suas pretensões sobre a posse de partes do continente a sul..Na década de 1950, uma série de expedições soviéticas partiram na demanda do coração antártico. A terceira expedição almejou alcançar aquele que se entendia, na época, ser o Polo de Inacessibilidade. Dezoito homens, visitaram as coordenadas 82° 06" S, 54° 58" L em veículos motorizados. Por 12 dias, em dezembro de 1958, as três tendas instaladas no local, uma para acolher os exploradores, outra para atender às comunicações e outra para acomodar um gerador a diesel, animaram de vida um dos locais mais inóspitos do planeta. A equipa de investigadores recolheu informações sobre a espessura e estrutura do gelo, condições meteorológicas e geomagnéticas daquela área inexplorada..No mesmo período, o busto de Lenine era erigido. Depois, fez-se silêncio na estação de pesquisa Polyus Nedostupnosti. Seis anos mais tarde, a 1 de fevereiro de 1964, a oitava expedição antártica soviética visitou o local, seguida, em 1965, da expedição South Pole-Queen Maid Land Traverse, empresa dos Estados Unidos que demandou o local a bordo de um avião Lockeed C-130. O Polo de Inacessibilidade Antártico mereceria nova visita soviética em 1967. Após essa data, o local manter-se-ia afastado de incursões humanas nos 40 anos subsequentes. Entretanto, o Polo de Inacessibilidade da Antártida também mudaria de localização..Em 2005, o segundo levantamento do British Antarctic Survey anunciava a existência de dois polos de inacessibilidade no continente antártico considerando o oceano em torno. Os cálculos situavam estes pontos míticos longe do pedestal de Lenine. O primeiro, nas coordenadas 82° 53" 14"" S, 55° 04" 30"" L., tem em conta a superfície continental da Antártida, excluindo os campos de gelo do litoral, e situa-se a 1179 km da costa oceânica. O segundo polo de inacessibilidade, nas coordenadas 83° 50" 37"" S, 65° 43" 30"" L., considera os campos de gelo e dista 1590 km do oceano..No século XXI, a localização original do polo de inacessibilidade marcada pelos soviéticos manteve o poder de atração sobre duas expedições. A primeira, em 2007, anunciava ter alcançado o local da estação Polyus Nedostupnosti no dia 21 de janeiro. Três aventureiros britânicos e um canadiano, a equipa N21, tornavam-se os primeiros humanos a chegar a pé ao local, numa jornada de seis semanas que palmilhou 1700 km sobre o gelo. Henry Cookson, Rupert Longsdon, Rory Sweet e Paul Landry, fotografaram-se frente ao busto de Lenine. Em 2011, a mais recente visita ao inóspito planalto no continente meridional chamou pelo nome "Antarctica Legacy Crossing". Sebastian Copeland, explorador polar e fotógrafo, guiado por Eric McNair-Landry alcançaram a pé o Polo de Inacessibilidade da Antártida, sem que tenham avistado o busto de Lenine..Nas últimas décadas não foi apenas o Ponto de Inacessibilidade da Antártida que encetou um movimento de relocalização na vastidão gelada. Anualmente, a 1 de janeiro, a equipa internacional de cientistas sediados na Estação Polo Sul Amundsen-Scott, o local permanentemente habitado mais a sul da Terra, reposiciona o marco que atesta o ponto aproximado do Polo Sul Geográfico do nosso planeta. Ali, no planalto a 2830 metros de altitude, a distar 1300 km do mar aberto mais próximo, o gelo tem uma espessura de 2700 metros. Ao longo de 365 dias a camada de gelo move-se sobre o leito glacial que se estende abaixo. Uma caminhada de titãs de 10 metros rumo ao Mar de Weddell, uma colossal superfície congelada com mais de 2,8 milhões de km2..O movimento anual do gelo, embora impercetível, arrasta consigo a estação polar e todas as infraestruturas que lhe estão próximas o que inclui aquele que é conhecido como o Polo Sul Cerimonial, o que se oferece às fotografias protocolares, frente às 12 bandeiras das nações signatárias do Tratado da Antártida. Numa cerimónia simples, a estaca de gelo, um prumo que comprova visualmente o Polo Sul Geográfico, avança uma dezena de metros rumo a ocidente. Acompanha-a um outro marco das conquistas humanas na Antártida, a placa comemorativa que inscreve os nomes de dois heróis antárticos. A 14 de dezembro de 1911 o explorador norueguês das regiões polares, Roald Amundsen, alcançou o Polo Sul Geográfico. A 17 de janeiro de 1912, seria a vez do oficial da Marinha Britânica e explorador polar, Robert Falcon Scott, reiterar o feito. "Aqui somos chegados, e capazes de fincar a nossa bandeira no Polo Sul Geográfico", proferiu com economia de palavras Amundsen. "O Polo. Sim, mas sob condições muito diferentes daqueles que poderíamos esperar", pronunciou Scott ao firmar no ermo branco a bandeira britânica. Palavras que perpetuaram no século seguinte as conquistas dos dois exploradores. Palavras inscritas numa singela placa fincada no Polo Sul Geográfico. Frases nómadas, avançando lentamente à boleia do gelo movente dos confins antárticos.