"Nenhum país está preparado a 100% para responder a uma catástrofe como a de Marrocos"

Que resposta deve ser dada numa situação de catástrofe como a do terramoto em Marrocos e das cheias na Líbia? Um país, só por si, consegue responder eficazmente? O tempo é fundamental para o resgate de sobreviventes? A Medicina de Emergência e o apoio psicossocial também são, para tratar depois a população? O coordenador do Gabinete de Apoio Humanitário da Ordem dos Médicos, Vítor Almeida, também com competências na área da Medicina de Emergência, responde a estas e outras questões.
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Ao fim de cinco dias, as equipas de resgate de sobreviventes continuam a trabalhar. Há algum tempo definido a partir do qual as autoridades assumam que os trabalhos devem parar?

A margem de tempo para procurar sobreviventes depende de algumas variáveis. A primeira é a própria intensidade da catástrofe: quanto mais intensa, mais danos estruturais e mais vítimas causa. A segunda tem a ver com o tipo de estruturas existentes: se estas foram construídas, ou não, de acordo com as normas de segurança antissísmica. E a terceira, obviamente, com o tempo decorrido desde que aconteceu o desastre, até ao início da resposta. Quanto mais cedo o salvamento e o resgate, mais hipóteses há de sobrevivência. Embora esta também dependa de certos fatores, como do acesso a água e alimentos, das próprias lesões que as vítimas possam ter sofrido e das condições atmosféricas a que estão sujeitas - já que temperaturas e clima adversos também têm influência na capacidade de resistência das vítimas. Mas há outra componente importante, que tem a ver com a formação e eficiência das equipas de salvamento, dos meios que têm, desde a escavação aos cães para detetar vítimas que poderão estar nos edifícios colapsados, até aos meios e equipamentos na área da Medicina de Emergência, para que se possa intervir imediatamente. Ou seja, quanto mais profissionalizadas forem as equipas, maiores são as hipóteses de salvar vítimas.

Mas não há um limite de tempo para o salvamento?

Nesta fase, é preciso continuar a procurar, mas haverá um momento, e isso é muito importante, em que as próprias autoridades, perante os dados que têm depois de uma análise a todos estes fatores, terão de decidir quando acabarão com as operações de busca e salvamento para, a partir daí, iniciarem só a remoção de escombros e as operações de limpeza.

Do que tem visto, considera que a resposta de Marrocos tem sido a adequada?

Não posso avaliar uma situação que desconheço no terreno, mas, basicamente, numa situação de catástrofe, o importante é responder-se prontamente. E isto envolve buscas imediatas para procurar sobreviventes e o fazer chegar os recursos básicos, como água e alimentos, à população.

DestaquedestaqueNão faz sentido receber uma panóplia de ajuda no local da catástrofe que depois não há capacidade para otimizar.

O Governo de Marrocos já foi criticado por não ter pedido logo ajuda...

Bem, essa é uma questão que também depende da escala e da complexidade do desastre e da capacidade que qualquer Governo local tem em lidar com a situação. Num caso destes é sempre legítimo, e correto, que um Governo solicite ajuda internacional o mais rápido possível, mas este pedido tem de ser definido pelo próprio Governo e, normalmente, é dirigido a parceiros privilegiados na cooperação. Um atraso no pedido de ajuda pode ter consequências, mas acredito que as autoridades de Marrocos devem ter avaliado a forma mais eficaz de canalizar a ajuda internacional. Não faz sentido receber uma panóplia de ajuda no local da catástrofe que depois não há capacidade para otimizar. Marrocos já tem equipas estrangeiras a trabalhar no local. E não nos compete a nós, a esta distância, estar a fazer juízos de valor, até porque não temos dados concretos do que se está a passar no terreno.

Na manhã de ontem, havia registo de mais de 2800 mortos e mais de 2500 feridos. Este número pode ser ultrapassado, dado que uma das preocupações é a resposta às populações na região das montanhas, onde foi o epicentro do terramoto?

A informação que temos é a de que Marrocos está a usar equipamentos aéreos para transportar bens essenciais para essa população, mas o número de mortos pode sempre aumentar, até pelas variáveis que referi. Em primeiro lugar, pelo acesso limitado e difícil a essas áreas remotas para se fazer o levantamento de perdas nas pequenas aldeias. Só aqui temos logo um desfasamento do número real de vítimas relativamente ao número das que vão sendo encontradas ao longo do tempo. Em segundo lugar, porque, evidentemente, há pessoas com lesões que ainda lhes podem causar mais danos. E, por fim, porque um terramoto não é um evento único naquele momento, pode ter réplicas, provocar deslizamentos de terras ou chuvas intensas, como as que estão a acontecer na Líbia.

Há outras situações associadas ao terramoto que podem levar ao aumento do número de mortos?

Tudo isto influencia. Além de que o número de vítimas também depende da população afetada, se é uma população envelhecida ou não. Imagine se esta situação ocorresse em Portugal e numa zona montanhosa? A população que aí vive é diferente da que vive num centro urbano, como Lisboa, por exemplo. Na zona montanhosa, as certamente que temos mais pessoas idosas e fragilizadas, cujas hipóteses de sobrevivência seriam sempre menores das de um jovem em boas condições físicas a viver na cidade.

Falou na questão das chuvas na Líbia, ontem a Cruz Vermelha também fez um balanço e já há mais de 2000 mortos e mais de 10 mil desaparecidos. A Líbia já pediu ajuda internacional, mas que tipo de apoio deve ser dado?

O que posso dizer em relação à Líbia é que é uma situação diferente da do terramoto de Marrocos. É mais uma situação, de certeza, fruto das alterações climáticas, mas diferente pelas necessidades do ponto de vista de salvamento. O desafio aqui é, sobretudo, manter as condições de Saúde Pública, sendo a prioridade fazer chegar às populações água potável e alimentos e a manutenção das vias de comunicação, como estradas, e de outras infraestruturas para se poder transportar os bens essenciais e evacuar as populações.

DestaquedestaqueO fator verdadeiramente importante para que a resposta a uma catástrofe seja eficaz é haver uma coordenação e comunicação capazes de colocar todos os elementos no terreno a funcionar.

A Medicina de Emergência é fundamental em catástrofes como estas?

Para situações como estas tem de haver uma assistência médica com profissionais preparados em emergência pré-hospitalar, para dar resposta em blocos operatórios e cuidados intensivos, pois o que se enfrenta são sobretudo situações de traumatologia. Mas também é preciso outro tipo de ajuda: como envio de material médico e medicamentos. As pessoas continuam a sofrer das patologias que já tinham e precisam de continuar a tratar a diabetes, a hipertensão, etc. Imagine uma população idosa que não consegue ter acesso a uma farmácia, necessita que lhe façam chegar, ou por helicóptero ou por drone, como já se faz, alguns medicamentos. A água potável e as condições de saneamento também são fundamentais e habitualmente são asseguradas por estruturas militares. Mas o fator verdadeiramente importante para que a resposta a uma catástrofe seja eficaz é haver uma coordenação e comunicação capazes de colocar todos os elementos no terreno a funcionar. Para além disto, há ainda o apoio psicossocial e depois a ajuda financeira, mas já que falámos nas críticas que estão a chegar à opinião pública quanto aos pedidos de ajuda muito seletivos por parte do Governo de Marrocos, penso que depois de todas as operações, deverá haver uma avaliação concreta ao que correu bem e menos bem na resposta, para que se possam tirar ilações, conclusões e treinar as equipas para futuras ocorrências.

Portugal estaria preparado para uma situação como esta?

A proteção civil portuguesa já tem alertado para essa situação. E se tivermos um sismo de grande intensidade, como o de 1755, evidentemente que haverá danos graves no país. Aliás, nenhum país no mundo está preparado a 100% para uma catástrofe como a de Marrocos. Catástrofes desta dimensão precisam sempre de uma resposta global, de apoio a todos os níveis, e nenhum país consegue dar essa resposta só por si. Portugal necessitaria do apoio dos mecanismos europeus de proteção civil.

Já falámos dos vários tipos de apoio, o psicológico é tão importante como qualquer outro? Quer para quem ficou ferido, foi resgatado e até mesmo para os turistas que viveram a situação?

A primeira linha de apoio, e sem descurar a importância dos turistas que lá estavam, deve estar focada no apoio psicossocial às vítimas diretas do terramoto, as que perderam entes queridos e feridos. A população turística poderá, evidentemente, viver situações de trauma e de stress pós-traumático, que poderão vir a manifestar-se em sintomas de ansiedade e de depressão, mas tal dependerá muito de cada pessoa e da sua vivência na situação. Mas o apoio no luto será fundamental para os que ficaram sem famílias inteiras, para as crianças que perderam os pais ou para os que perderam os filhos. A estrutura social das aldeias, vilas e cidades afetadas está claramente comprometida e as suas populações precisarão de apoio a longo prazo, dado por equipas com formação expressa nesta área. Em Portugal, o INEM e a Proteção Civil têm equipas destas. E penso que as autoridades de Marrocos também terão no seu plano de ação este tipo de apoio.

A que sintomas devem os turistas que viveram a experiência estar atentos?

Há uma série de sintomas que acabam por se desenvolver, nomeadamente a visualização do momento, os chamados flashback, ou lembranças intensas, pesadelos, ansiedade, tristeza profunda, medos de ruídos que se assemelhem ao da situação ou o evitar lugares que lembrem também o do desastre. Tudo isto são sinais, tal como a irritabilidade ou problemas com o sono, que acabam por ter impacto na vida das pessoas. E se forem sentidos, aconselho a que estas pessoas não atrasem um pedido de apoio psicológico, para que se possa intervir de forma profissional, organizada e precocemente.

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