Para alguém que acompanha e estuda as questões de segurança há mais de 30 anos, o que aconteceu nos últimos dias era previsível e inevitável? Ou é apenas uma reação de protesto à morte de Odair Moniz?Diria que era expectável! Numa entrevista que lhe dei, em 2022, referi essa possibilidade. Infelizmente tinha razão. E não, estes eventos graves na área metropolitana não são apenas uma reação de protesto à morte de um cidadão, que profundamente lamento. Traduzem seguramente mais do que isso. Mas antes de qualquer outro comentário é essencial deixar claro que num Estado de Direito, numa sociedade democrática, manifestações deste tipo, perturbações da ordem pública desta gravidade, são intoleráveis. A investigação do incidente que levou à morte de um cidadão no Bairro do Zambujal terá certamente de ser efetuada com o rigor e a profundidade que um lamentável acontecimento como este exige. Mas o apuramento da verdade é da exclusiva responsabilidade do Estado, neste caso os órgãos competentes são a Inspecção Geral da Administração Interna e a Polícia Judiciária. Como é próprio das sociedades democráticas deve-se serenamente aguardar que a justiça faça o seu caminho. A rua não é certamente o caminho!.Sabendo isso, o que poderia e deveria ter sido feito para prevenir ou, pelo menos, mitigar estes resultados? O que deveria ter sido feito e o que se deve fazer para evitar, ou, usando a sua expressão, mitigar estas consequências?Não é uma resposta fácil, talvez seja melhor dizer que não é uma resposta simples. Creio que neste caso se devem evitar análises simples e respostas simplistas. Nestes bairros confluem todos os problemas que caracterizam o que poderíamos designar como crise social. Da habitação aos transportes deficientes, do desemprego ao emprego de salários baixos, da questão da saúde. É um mundo onde a frustração por não se encontrar a via para uma vida melhor está muito presente. Nestes bairros o sentimento de discriminação - seja ela real ou percecionada - é muito presente. Esta perceção de discriminação é obviamente acentuada em contextos socialmente complexos, isto é, multiétnicos e multirreligiosos. Esta é uma realidade conhecida em todos os países da União Europeia, não é uma realidade exclusiva de Portugal. O que só por si não nos deve deixar menos atentos..Disse há dois anos, numa entrevista ao DN que o discurso de que Portugal é um país seguro poderia esgotar-se. É motivo para pensar que chegou esse momento?Portugal é um país seguro, as estatísticas confirmam-no. Mas estes acontecimentos recentes e o aumento de certas formas de criminalidade violenta obrigam a uma nova leitura da segurança. Tenho chamado a atenção para o aumento da criminalidade em sociedades conhecidas por nelas se registarem taxas até mais baixas do que as nossas. Como exemplo, o caso da Suécia que viu duplicar o número de homicídios, em menos de cinco anos. Ou o caso da Bélgica e dos Países Baixos. Quando falo numa nova leitura da segurança quero chamar a atenção para a necessidade de se pensar a segurança tendo presente as mudanças sociais, culturais, políticas e tecnológicas muito rápidas que caracterizam a nossa sociedade, em particular, e a sociedade global em geral. A situação é complexa e exige a definição de um conjunto vasto de políticas sociais e de políticas de segurança. O Grupo de Reflexão Estratégica sobre Segurança, que integro, há muito que defende a necessidade de se reflectir a segurança numa perspetiva integrada que permita a definição de políticas públicas adequadas à nova realidade social. Foi a preocupação com a ausência continuada dessa reflexão que me levou a afirmar que “o discurso de que somos um país seguro se poderia esgotar”..A ação policial e o policiamento nestas chamadas zonas urbanas sensíveis, falhou?Não vou referir a ação policial e o policiamento. Há interlocutores mais competentes do que eu para falar sobre este tema. Mas assumo a ideia de que Portugal tem polícias competentes e com capacidade de autoavaliação da sua ação. .Quais são os “gatilhos” que será preciso travar para evitar uma escalada de violência? Não sei se “gatilhos” será neste caso a melhor expressão! Mas a sua questão é pertinente e permite-me abordar, mesmo que muito brevemente, um tema que julgo crucial. O funcionamento das sociedades democráticas assenta no princípio da legitimidade das instituições e no da confiança dos seus agentes. No caso particular da segurança é fundamental que os cidadãos considerem legítima a ação da polícia e que tenham confiança nos seus agentes, na doutrina inglesa é o que se designa por polícia de consentimento. Este é o grande desafio das polícias em toda a Europa. Num mundo cada vez mais complexo, numa sociedade em que a informação circula rapidamente, em que o relativismo social erode as instituições e os valores, em que tudo pode ser criticado e alterado, em que as identidades são difíceis de definir, o grande desafio é certamente ser legitimado e ser considerado de confiança. Nesta sociedade de permanente escrutínio, nenhuma outra instituição está tão presente na vida dos cidadãos e nenhuma é tão escrutinada como as policias. .Foi por isso que afirmei no início que nas sociedades democráticas se deve serenamente aguardar que a justiça faça o seu caminho. Rapidamente e de forma transparente..Esta situação pode levar a um apertar do securitarismo? Já escrevi em vários locais, como sabe tenho por hábito escrever o que digo, que não há democracia sem liberdade, mas não há liberdade sem segurança. Como se se impusesse um trade off entre liberdade e segurança, abdico num polo para manter o outro. É um facto que isso acontece tal como é um facto que podemos ficar presos a discursos de medo. Como se a perda de partes da minha liberdade fosse o efeito perverso de manter a minha segurança. O sentimento de insegurança - que é o resultado de uma perceção - é mau conselheiro! É frequentemente facilitador da aceitação de visões securitárias. Não estamos, em Portugal, habituados a incidentes do tipo que ocorreram esta semana. Mas o contribuir para evitar excessos securitários passa por deixar funcionar o Estado de Direito. A rua é certamente um caminho intolerável!