“Negligência tornou-se a principal razão de risco para menores e isso é importante”
A Comissão Nacional da Promoção dos Direitos e da Proteção das Crianças e Jovens (CNPDPCJ) apresentou ontem, no seu Encontro Anual, na Covilhã, o sumário do seu relatório de atividades referente ao ano de 2023. Ou seja, o relatório que integra a atividade das 312 Comissões de Proteção das Crianças e Jovens (CPCJ) que existem espalhadas pelo país. Ontem foi feita apenas a divulgação do sumário do relatório, porque o documento na íntegra será entregue até ao final do mês à Assembleia da República.
Na entrevista ao DN, a presidente da CNPDPCJ, Rosário Farmhouse, que termina o seu mandato a 31 de julho, anunciou que não irá continuar por vontade própria, embora considerasse ter condições para se manter no cargo. "É precisa mudança", disse. Os novos desafios ficarão para quem trabalha na área e para que o objetivo será sempre o de "melhorar o sistema" e de "procurar soluções para o que é difícil".
Por isso mesmo, o mote escolhido para a apresentação deste relatório foi: ”Enquanto Houver Estrada para Andar. O Presente e o Futuro do Sistema de Promoção e Proteção”. Na sua discussão estiveram presentes cerca de 600 pessoas, entre técnicos das comissões, magistrados e outros. O facto de “a negligência” ter-se tornado a principal razão das situações de perigo comunicadas às entidades, mas também a principal razão nas situações diagnosticadas pelas comissões, é uma novidade a marcar este documento.
Em 2023, as CPCJ receberam 54 746 comunicações de situações de perigo, mais 10,5% do que em 2022. O que dizem estes números sobre Portugal? São normais ou algo está a falhar?
Creio que esta tendência de aumento se deve a uma maior sensibilização e capacitação da população para comunicar situações de perigo. Ou seja, não me parece que haja concretamente mais crianças ou jovens em perigo, mas há mais sensibilidade da população em geral para este tema. Posso dizer que as campanhas que a Comissão Nacional tem desenvolvido no sentido de “Proteger as crianças compete a todos” - que levaram ao aumento das ferramentas através das quais todos podem comunicar estas situações, quer seja através dos nossos formulários online ou das formações dadas a várias entidades com competências na infância e juventude, como escolas, forças de segurança, IPSS - têm ajudado. E para a Comissão Nacional estes números revelam esse combate à indiferença da população.
A população está mais atenta e comunica...
Sim. E, na dúvida, comunica. Depois todas as situações serão avaliadas e diagnosticadas pelas CPCJ para sabermos se se confirma ou não a situação de perigo. E isto revela um enorme ato de cidadania, que deve continuar, porque o que fizermos ou não pelas crianças e jovens será decisivo naquilo em que se vão tornar a breve, a médio e longo prazo. É decisivo para a vida de uma criança que está numa situação de perigo, seja por negligência, maus-tratos físicos, psicológicos, emocionais ou abuso sexual, haver uma decisão atempada. Portanto, a situação tem de ser comunicada para podermos atuar.
A maioria das situações reporta a jovens dos 11 aos 18 anos, só depois vêm os escalões mais jovens. Há uma inversão nas idades?
Esta tendência de situações com crianças mais crescidas já existia. Ou porque só mais tarde é que as próprias crianças dão sinais e verbalizam o que se está a passar, mas também porque a terceira categoria de perigo mais comunicada tem a ver com os comportamentos na infância e na juventude, o que é mais identificado quando atingem as faixas etárias mais crescidas. Ainda assim, o grupo dos 0 aos 5 anos representa 23,5% das comunicações, o que nos preocupa muito. São crianças muito pequeninas sobre as quais queremos intervir atempadamente nas suas vidas para mudar o rumo ao seu crescimento integral.
Este ano fica marcado pelo facto de a negligência ter ultrapassado a violência doméstica como razão principal nas situações de risco? O que significa em termos sociais?
A violência doméstica era sempre o primeiro motivo das comunicações de perigo, mas, depois, quando as CPCJ iam avaliar as denúncias para aferir o principal perigo percebiam que, afinal, esta não era, de facto, a principal causa. Ou seja, a principal razão era a incapacidade que havia de proporcionar às crianças e aos jovens a satisfação dos seus cuidados básicos, como higiene, alimentação, afeto, saúde, educação e, muitas vezes, até a indiferença aos ambientes a que os sujeitavam e que não eram, de todo, saudáveis.
Mas refere-se concretamente a que ambientes?
Ambientes violentos, geralmente de famílias que não têm uma vida muito estruturada, embora se deva reforçar que os maus-tratos são transversais a todas as classes sociais. Até porque há situações de perigo que ocorrem por razões secundárias, como doenças psiquiátricas dos cuidadores ou problemas de consumos (álcool ou substâncias), o que os torna incapacitados para protegerem as crianças e de as ajudar a fazer o seu caminho.
De acordo com o sumário do Relatório Anual foram reabertos quase dez mil processos (9142). É uma preocupação?
As situações de perigo são muito variáveis e o facto de um processo ser reaberto pode significar que, em determinado momento, este foi arquivado porque estava sarada a indicação de perigo, mas que surgiram novas circunstâncias que estariam a colocar a criança ou o jovem em perigo. E, nesse sentido, o processo é reaberto. O importante é que não se descanse nas situações e quando há novas circunstâncias se volte ao processo para proteger as crianças. Faz parte do sistema e da intervenção das comissões.
O relatório revela também haver 2665 crianças e jovens de nacionalidade estrangeira em situações de perigo, é uma novidade?
É um dado que temos vindo a recolher, mas não é por a criança ser estrangeira que está em perigo. Isso tem a ver com as circunstâncias em que vive. A situação de perigo é completamente transversal às crianças portuguesas ou estrangeiras. É um número que não é significativo, mas é uma realidade nova.
Quais as preocupações que vão ser debatidas neste Encontro Anual e as recomendações que podem ser feitas?
Este Encontro Anual tem como mote Enquanto houver estrada para andar. O presente e o futuro do Sistema de Promoção e Proteção. Portanto, vamos falar das principais dificuldades do sistema, da composição e funcionamento das CPCJ, vamos falar das fragilidades mas também das boas-práticas para se olhar para o futuro e conseguirmos melhorar o sistema, torná-lo cada vez mais eficaz. Vamos à procura de soluções para o que é mais difícil.