Este final de ano tem sido marcado por novidades como o aumento da comparticipação dos medicamentos para a infertilidade (para 90%), ou a comparticipação dos medicamentos para a endometriose. São bons sinais para a presidente do Conselho Nacional de Procriação Medicamente Assistida (CNPMA)? Digamos que estou moderadamente otimista, porque ao longo dos últimos anos temos ultrapassado várias dificuldades e a Procuração Medicamente Assistida (PMA) não tem merecido por parte dos decisores políticos a atenção que devia e as medidas concretas tardam em surgir. Na PMA existem ainda muitos obstáculos à natalidade desejada e esperemos que de facto estas medidas anunciadas, e outras que foram faladas e que nós esperamos que sejam concretizadas, sejam o sinal de que efetivamente este Governo está comprometido com a remoção destes obstáculos à natalidade. Falamos de famílias, de pessoas que querem muito concretizar os seus projetos de parentalidade e de maternidade e que não o podem fazer, sobretudo, porque sofrem de uma doença. E o Estado português está obrigado por lei e pela própria Constituição da República Portuguesa a dar respostas, no âmbito do Serviço Nacional de Saúde (SNS), a estas pessoas..Que impacto concreto podem ter estas medidas anunciadas?Por exemplo, o alargamento da comparticipação da medicação para os tratamentos de PMA de 69% para 90% é uma medida extremamente positiva, que saudamos, porque os medicamentos para os tratamentos são extremamente caros. É uma medida francamente positiva e que vem ajudar bastante estas famílias..Criam-se condições para que a Procuração Medicamente Assistida deixe de ser, e cito-a, “o parente pobre do SNS”? Ah, está longe de ser suficiente. Porque é que digo que é o parente pobre? Porque os decisores políticos acham que, como não é uma doença que acarreta um perigo iminente de vida, pode esperar. E a verdade é que não pode esperar. É uma doença que tem que ter um tratamento e tem que ser feito em tempo útil, sob pena de depois não ter qualquer tipo de efeito. E, portanto, não pode a PMA ficar eternamente à espera que se resolvam todos os outros problemas do SNS..Sabe-se que percentagem da população portuguesa sofre de infertilidade?No ano passado a Organização Mundial de Saúde lançou um estudo a nível mundial que diz que cerca de 17% da população em idade fértil sofre de infertilidade em algum momento da sua vida e Portugal não está longe dessa realidade. Estima-se que um em cada seis casais em idade fértil sofram dessa doença, portanto é um número considerável de portugueses. E todos os dias percebemos que esta realidade está a aumentar. E vemos que em Portugal, fruto da incapacidade do SNS, os centros privados continuam a aumentar, sobretudo grupos estrangeiros que veem em Portugal um mercado para se instalarem. Há uns anos o SNS era responsável por cerca de 50% da PMA em Portugal e agora já não chega aos 30%. Não é que o SNS esteja a fazer menos tratamentos do que fazia, mas está no limite da sua capacidade de resposta e os privados crescem. .Qual é a percentagem de nascimentos em Portugal por PMA? No ano passado foram 3.424 crianças, 4,1% dos nascimentos em Portugal. Poderia ser muito mais se houvesse resposta do SNS, porque muitas destas pessoas não podem recorrer a um tratamento no privado, que custam sempre na ordem dos 3, 4 ou 5 mil euros. Isto considerando que se alcança uma gravidez e um nascimento com vida no primeiro tratamento, e sabemos que muitas vezes não é assim. .Como é que é o mapa da PMA em Portugal? Quantos centros é que temos, públicos e privados? Neste momento temos 28 centros, 11 públicos e 17 privados. O centro público mais a norte é em Guimarães, depois temos dois no Porto, temos em Gaia, em Coimbra, em Lisboa temos na maternidade Alfreda Costa, no Santa Maria e no Garcia da Orta, e temos na Madeira, que só muito recentemente é que está a fazer tratamentos de segunda linha, ou seja, fertilizações in vitro, depois de durante muitos anos fazer apenas inseminações artificiais. Nos Açores, não existe um centro público, mas há uma convenção entre o SNS e um centro privado. Mas no território continental, o centro mais a sul fica no Garcia de Orta, em Almada. Portanto, metade do território nacional não tem cobertura do SNS na área da PMA. Temos o Alentejo e o Algarve sem qualquer centro… O Centro do Algarve foi anunciado, com pompa e circunstância, pelo ex-secretário de Estado da Saúde, Lacerda Sales, numa audição no Parlamento, há três anos, mas a verdade é que nunca mais tivemos notícias disso..Foto: Tony Dias.Embora a legislação permita o acesso das mulheres à PMA até aos 50 anos, no SNS essa possibilidade é limitada até aos 42, nos casos de inseminação artificial, e até aos 40 na fertilização in vitro. Essa limitação parece-lhe adequada atendendo aos novos hábitos sociais que levam as mulheres a optar pela gravidez cada vez mais tarde?Tem a ver com gestão de recursos financeiros e gestão de recursos humanos, que são necessariamente escassos. Está mais do que provado que a taxa de probabilidade de sucesso de um tratamento realizado numa mulher com mais de 42 anos é significativamente inferior ao de uma mulher com 30 ou 35. O que é importante é que o SNS dê resposta em tempo útil às mulheres que precisam desse tratamento numa idade em que, efetivamente, a taxa de probabilidade de sucesso seja aceitável. O que já não é aceitável, e existem casos desses, é que uma mulher se inscreva num tratamento PMA com 36 ou 37 anos e fique três ou quatro à espera para depois lhe dizerem que atingiu a idade limite e já não é possível. Aí sim, deveria haver um alargamento do prazo para fazer o tratamento..Qual é o tempo médio de espera no Banco Público de Gâmetas?Está nos três anos para gâmetas femininos e três anos e meio para masculinos..Porquê esse atraso? Há poucas doações?Há de facto poucas doações para o banco público, mas não se pode dizer que haja falta de dadores em Portugal. Os privados fazem o seu próprio recrutamento, o sistema público é que está a falhar. Primeiro, tem que haver uma campanha a sério, de informação e esclarecimento à população, sobre a necessidade de haver doações para o banco público. Até hoje não se fez. Depois, é preciso que o banco público e os seus afiliados tenham capacidade de dar resposta à procura. O que acontece é que as pessoas que queiram doar, para já, estão limitadas, porque só podem doar ou no próprio banco público, que é no Porto, no Centro Materno Infantil do Norte, ou nos bancos afiliados, que são no Centro Hospitalar de Coimbra e na Maternidade Alfredo da Costa, em Lisboa. Só há estes três pontos de recolha, e durante muitos anos foi só no Porto. Está a ver a limitação..São precisos mais pontos de recolha para agilizar o processo?E não só. Por exemplo, facilitar essa recolha. Nos centros privados, o dador consegue agendar a consulta, ser atendido em horário pós-laboral, ao fim de semana se for necessário. No SNS está sujeito aos horários de expediente, à burocracia que conhecemos de um serviço público..A lei que acabou com o anonimato nas doações também veio trazer mais dificuldades? O fenómeno é diferente para os dadores masculinos e para os femininos. Nos homens, notou-se, numa fase inicial, uma quebra muito significativa das doações. Mas depois estabilizou e não podemos dizer que há menos doações agora do que havia no regime de anonimato. Em relação às mulheres, pelo contrário, até houve um aumento de doações, acreditamos que devido à exposição pública do assunto, que funcionou quase como uma campanha de sensibilização.. .Há mais dádivas femininas do que masculinas? Sim. Em Portugal, precisamos de mais dadores masculinos do que femininos. Até porque das dádivas femininas precisamos apenas para casos de doença de infertilidade, enquanto das masculinas precisamos também para todos os outros casos, como mulheres sem parceiro ou casais de mulheres que querem ter filhos..Uma questão que continua em aberto é a da gestação de substituição. Continuamos sem uma regulamentação prática desta matéria. O que é que está em causa aqui? A gestação de substituição é uma daquelas profundas frustrações que eu, pessoalmente, tenho e acho que todo o CNPMA tem. Porque realmente não vemos uma luz ao fundo do túnel para estas pessoas que sofrem de uma doença, gravíssima [ausência de útero ou outra situação clínica que impeça de forma absoluta e definitiva a gravidez da mulher], em que a única resposta que têm para ultrapassar esta doença é a regulamentação desta lei. E repare que estas pessoas já estão à espera há demasiados anos, já viram o seu direito ser legislado, já há uma lei, a Assembleia da República já disse como é que têm direito ao tratamento, numas circunstâncias muito específicas. Não podemos dizer que em Portugal há barrigas de aluguer, como se vê em alguns países. Há uma gestação de substituição com padrões éticos e morais muitos restritivos e supervisionados pelo CNPMA. Mas ainda assim estas pessoas estão há tantos anos à espera, é um absurdo. .O CNPMA mostrou-se contrário à proposta de regulamentação do anterior Governo…Aquela proposta não regulava nada, era lavar as mãos como Pilatos. Basicamente era dizer: olhem, isto resolve-se nos tribunais. Não, não pode resolver-se nos tribunais porque nós estamos a falar de uma criança que, entretanto, já nasceu e a sua vida não pode ficar em suspenso à espera de uma decisão de tribunal. Nós somos um Conselho de Ética para as questões da PMA, não podíamos em consciência deixar que aquela regulamentação passasse, porque pior do que não haver regulamentação era haver uma péssima regulamentação. .E agora aguardam um avanço por parte deste Governo? Este Governo entrou em funções há relativamente pouco tempo, mas começa já a ser altura de pegar neste assunto. Sabemos que é um tema muito delicado, mas estamos disponíveis para dar toda a colaboração necessária, como estivemos também com o anterior Governo. Agora, tem que haver uma vontade política….Não sentiram ainda essa vontade política? Ainda não sentimos e começamos a ficar preocupados. Há uma lei da República e tem que ser cumprida, porque o Governo - quer o anterior quer este - já está a violar a lei. Estas pessoas têm um direito consagrado em lei e não conseguem concretizá-lo. .Carla Rodrigues, presidente do Conselho Nacional de Procriação Medicamente Assistida, fotografada na Biblioteca Municipal Ferreira de Castro.Foto: Tony Dias.Há estimativa da quantidade de pessoas que o aguardam? Sabemos que não é uma multidão de pessoas, porque, como lhe disse, a nossa lei é tão restritiva que é para casos muito específicos, mas são algumas dezenas. E que fosse uma só pessoa… O que está aqui em causa é uma questão de direitos humanos, é uma violação grosseira dos direitos constitucionais destas pessoas. Há anos que estas pessoas estão à espera disto, que o legislador lhes anda a prometer isto, mas estamos a poucos dias de 2025 e ainda não há gestação de substituição. Acho que isto nos deve envergonhar..Estão a cumprir-se dois anos da legalização da inseminação pós-morte e notícias recentes falam em 10 casos nos últimos dois anos. O CNPMA levantou reservas à lei. Está hoje mais tranquila em relação à forma como se tem concretizado esta lei? Não posso confirmar os dados que avançou porque ainda estamos a concluir o relatório de 2022. Há alguns casos, são poucos, rondarão talvez esses números. Mas as críticas que fizemos à lei mantemo-las. Foi uma lei feita de forma muito pouco ponderada, muito apressada, e todas as leis devem ser gerais e abstratas e não se focarem em casos concretos. É uma lei com muitas fragilidades, que se verificam até hoje, porque os centros, sempre que têm dificuldade na interpretação da lei, recorrem ao CNPMA. E não nos cabe dar esses esclarecimentos, porque o CNPMA não tem competências legais na aplicação desta lei. A única coisa que a lei da inseminação pós-morte nos atribui é centralizarmos e registarmos os consentimentos da pessoa, do homem que faleceu, para que o tratamento seja feito após a sua morte. .Têm registados muitos consentimentos?Temos sete, creio, mas depois não sabemos a quantos tratamentos é que esses consentimentos deram origem, isso são decisões médicas e dos centros. .Mas tem havido dificuldades na interpretação da lei no terreno? Sim, claro. Muitas dificuldades e muito receio dos diretores dos centros. É uma responsabilidade muito grande em cima dos ombros deles, porque a lei é muito ambígua no âmbito do consentimento. No fundo, o que a lei diz é que, basicamente, qualquer documento pode autorizar um tratamento desses; e um diretor num centro tem que olhar para o documento e avaliar se é o bastante. Isto pode trazer-lhe enormes implicações. Portanto, as dúvidas e receios parecem-me perfeitamente legítimos. Não ficaria surpreendida se algum caso viesse a espoletar uma batalha legal. Espero sinceramente que não aconteça, mas da forma como a lei está feita é perfeitamente possível.