"Não é difícil colocar em marcha reivindicações dos médicos. Tem é de haver vontade política"
Os sindicatos médicos voltam a sentar-se esta tarde à mesa das negociações com o Ministério da Saúde. Joana Bordalo e Sá, a nova presidente da Federação Nacional dos Médicos (FNAM), diz ao DN que tem esperança nesta negociação, querendo acreditar que o seu sindicato "não será obrigado a tomar posições mais gravosas que não são do interesse de ninguém". Em cima da mesa, está a discussão de temas que os médicos consideram que ao longo da última década degradaram o SNS, como a revisão das carreiras e grelhas salariais, o horário base e tempos de descanso e a organização dos serviços.
Médica no Instituto Português de Oncologia do Porto, com a categoria de assistente hospitalar graduada, Joana Bordalo e Sá assume aos 44 anos a presidência da Federação Nacional dos Médicos (FNAM), que integra os sindicatos dos Médicos do Norte, Centro e Sul. Acredita no Serviço Nacional de Saúde (SNS) e diz que a estrutura que agora dirige está a trabalhar para que na próxima década a população possa ter um SNS mais capaz, com melhores respostas e sem barreiras no acesso. Joana Bordalo e Sá também é coordenadora do Internato Médico no Serviço de Oncologia Médica, no IPO do Porto, Mestre em Medicina e Oncologia Molecular pela Faculdade de Medicina da Universidade do Porto e docente externa do ICBAS-UP. Até dezembro foi a presidente do Sindicato dos Médicos do Norte.
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Assume a presidência da FNAM numa das alturas mais críticas do SNS e quando se discutem carreiras médicas e grelhas salariais. Neste início de 2023, como olha para o serviço público em Portugal e para o papel dos médicos na sociedade portuguesa?
Vivemos uma fase muito crítica do SNS e exatamente pelo que referiu. O acordo de trabalho dos médicos tem uma década e tem de ser atualizado e melhorado. O que posso dizer é que a degradação do SNS a que assistimos na última década é da responsabilidade dos sucessivos governos, independentemente da cor política. Nunca foram tomadas medidas para cativar os profissionais e tornar o SNS atrativo, e não falo só de medidas para os médicos mas para os profissionais em geral. O resultado é a debandada de profissionais do SNS, que se tem vindo a agravar. E este problema não tem só a ver com o número de médicos que se quer reformar, que está a crescer, ou com o número de especialistas que também estão a sair. O problema são os jovens médicos, porque estamos a formar jovens especialistas que, pura e simplesmente, não querem ficar no SNS. Não há motivação para ficarem, e uns emigram e outros vão para alternativas no setor privado. Isto tem a ver com as condições de trabalho e salariais. É preciso perceber que os médicos pretendem uma vida mais saudável e equilibrada, entre a vida profissional e familiar, o que hoje não é possível no SNS.
Mas se tivesse que definir hoje o SNS e o papel do médico na sociedade portuguesa como definiria?
Em relação aos médicos, que continuam a ser fundamentais no SNS. Todos os profissionais de saúde trabalham de forma colaborativa e todos são importantes, quer sejam médicos, enfermeiros, técnicos auxiliares de diagnóstico, farmacêuticos, outros técnicos superiores, auxiliares, administrativos, etc. Todos fazem parte de uma equipa. Agora, é evidente que sem médicos não é possível haver um serviço de saúde. Não há outro profissional que nos consiga substituir em termos de decisões. Todas as peças são importantes, mas os médicos têm um papel fundamental na saúde e no SNS.
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Acredita que esse papel fundamental se manterá no futuro?
Claro. E a FNAM está a trabalhar para isso. No sentido de manter o SNS de pé e com condições dignas de trabalho e salariais, para que tenhamos médicos suficientes e possamos prestar um bom serviço aos doentes e aos utentes.
Olhando para a última década, o que falhou e levou à degradação a que hoje se assiste?
O não haver investimento em infraestruturas e nos equipamentos e a falta de organização nos serviços, - sobretudo nos hospitais, porque os cuidados primários têm modelos de organização que funcionam bem. Mas além destes há outro problema que a FNAM alerta já há muito tempo, que é a nomeação das chefias, que não tem ajudado à organização e competência dos serviços. A FNAM defende processos de eleição para os cargos de chefia e de coordenação. Processos transparentes que tenham em vista a democratização das instituições. Já falei da falta de investimento, das chefias, mas há condições de trabalho que contribuíram para a degradação do SNS e que têm de ser revistas.
"É preciso muito bom senso e ponderação na reorganização dos serviços, o que não está a acontecer. O que está a ser feito diminui a acessibilidade da população aos serviços e implica que os médicos se desloquem para outros serviços.
Além das grelhas salariais?
Por exemplo, o respeito pelos descansos. Um médico que trabalhe a noite inteira tem de sair para descansar, senão corre o risco de trabalhar 30 horas de seguida e isto não é seguro sequer para os doentes. A situação está legislada, mas nos últimos tempos não está a ser cumprida. E não é possível continuarmos assim. Outra questão é o congelamento das carreiras. Não há avaliação e os médicos não progridem de escalão. Isto é inadmissível. Repare, um recém especialista e um médico especialista há 10 ou 15 anos têm ambos o mesmo salário, precisamente porque não há avaliação e progressão, o que é desmotivante para a classe. E em relação à grelha salarial, esta tem mesmo de ser atualizada. Há estudos a comprovar que os médicos foram a classe profissional que mais poder de compra perdeu nos últimos anos.
Nas negociações com a tutela, o que é importante assegurar para os médicos?
Para nós, os pontos chaves são: um horário base que respeite os tempos de descanso - toda a administração pública tem um horário base de 35 horas, os médicos são os únicos que têm de 40 horas, o que não se compreende. Queremos voltar a ter dedicação exclusiva, mas opcional e majorada, não uma dedicação plena como a que o governo pretende e que ainda não percebemos bem o que é. Uma coisa definida é que não vamos aceitar nada que pressuponha mais horas de trabalho, porque o que pretendemos são horários de trabalho mais equilibrados, possíveis de compatibilizar com a vida pessoal e familiar. O horário é um dos pontos chaves. Outro é a efetivação da progressão na carreira com processos ágeis e diligentes. Não pode acontecer abrir-se um concurso e só passados três anos é que este é efetivado. É ainda importante a reposição do tempo de férias para os 25 dias, era o que os médicos tinham e deixaram de ter. Antigamente, quando um médico tirava férias na época baixa tinha mais cinco dias de férias por ano. Esta medida tem zero impacto orçamental e pode ajudar a resolver as épocas mais críticas, do Natal e período de verão. No fundo, isto seria repor um direito que nos foi retirado. Depois, há ainda a antecipação da idade de reforma, tendo em conta a nossa atividade e risco. Em boa verdade, trabalhamos mais anos do que os outros profissionais da saúde, já nem falo em horas.

Joana Bordalo e Sá diz ser preciso perceber que os médicos querem "uma vida mais saudável e mais equilibrada entre a vida profissional e familiar".
© Rui Oliveira Global Imagens
E o que é necessário para salvaguardar o SNS e os utentes?
Em relação ao SNS e utentes o que é preciso é haver recursos humanos suficientes e com qualidade. Sem recursos humanos também não é possível um SNS com melhores respostas. Portanto, diria que é preciso um SNS organizado de forma a conseguir chegar a toda a população. E não é a concentrar ou a fechar serviços de urgência que mudamos alguma coisa. É preciso garantir que os cuidados primários funcionam, que há médicos de família para toda a população e que a população tem serviços de proximidade na sua área de residência. Por isso dizemos que é preciso muito bom senso e ponderação na reorganização dos serviços, o que não está a acontecer agora. O que está a ser feito diminui a acessibilidade da população aos serviços e implica que os médicos se desloquem para outros serviços.
Como é que a FNAM resolveria a situação?
O que tem de haver é profissionais em número suficiente nos devidos hospitais, sejam distritais, do interior ou fora dos grandes centros, para que não se tenha de concentrar serviços ou os médicos tenham de se deslocar. Isto só acontece porque há carência de médicos nesses locais e sabemos bem o que significa fechar serviços públicos em zonas que já são muito carenciadas. Só vai contribuir mais para a desertificação da população. É preciso criar condições para que haja médicos nesses hospitais. Neste sentido, esta reorganização é uma medida paliativa, porque está a tratar o sintoma e não a raiz do problema. Os profissionais são precisos nos hospitais e nos centros de saúde para que a população não tenha de se deslocar quilómetros para ter acesso a cuidados.
A Direção Executiva do SNS emite deliberações atrás de deliberações sobre a reorganização de serviços que envolvem matérias laborais sem ouvir os sindicatos, o que é grave.
Estas medidas são aceitáveis ou deveriam ser tomadas outras em conjunto com quem está no terreno?
Estas medidas estão a ser tomadas porque não foram encontradas outras soluções, mas, mais uma vez, está a tratar-se o sintoma e sem sinais de que a questão de fundo está a ser resolvida. A Direção Executiva do SNS emite deliberações atrás de deliberações sobre a reorganização de serviços que envolvem matérias laborais sem ouvir os sindicatos, o que é grave. Os sindicatos têm de ser ouvidos, e mais: estamos completamente disponíveis para fazer parte da solução. Há uma negociação em curso e não tem lógica estar a publicar-se deliberações de forma completamente unilateral.
Perante isso há alguma esperança nas negociações? A FNAM tem dito que quer uma negociação séria, o que é isso?
Em relação à negociação em si, temos esperança. Temos quatro assuntos em cima da mesa: as normas particulares de organização de trabalho, a valorização do trabalho no serviço de urgência, a dedicação plena, que é a tal figura que o governo apresentou e ainda ninguém percebeu o que é, e as grelhas salariais, que só foram incluídas graças a um finca pé dos sindicatos. A forma como se está a negociar não está a ser incorreta. Aliás, vimos com bons olhos o facto de o dr. Manuel Pizarro (ministro) estar connosco na mesa das negociações, o que é muito diferente da equipa anterior. Portanto, temos esperança nesta negociação e esperamos não ser obrigados a tomar medidas mais gravosas que não são do interesse de ninguém. A FNAM quer uma negociação séria e célere. Uma negociação em que os nossos objetivos também possam vir a ser cumpridos. Temos trabalho feito, propostas com reivindicações que enviámos ao Ministério da Saúde e que esperamos ver algumas atendidas já que têm exatamente a ver com condições de trabalho e grelhas salariais. Não é difícil colocar as reivindicações dos médicos em marcha. Tem é de haver vontade politica para que isso aconteça.
O que esperam que aconteça nesta reunião?
Esperamos que alguns dos trabalhos e das propostas que temos em curso e que apresentámos sejam validados. Queremos fazer parte da solução e não do problema e esperamos poder anunciar algumas medidas. Neste momento, há dois grupos de trabalho, com elementos dos dois sindicatos médicos e da tutela, a trabalhar nas grelhas salariais e reorganização e disciplina do trabalho e na dimensão da lista de utentes. Esperamos que funcionem, porque o que espero como médica e presidente da FNAM é que na próxima década tenhamos um SNS que consiga servir toda a população, independentemente do seu estado económico, um SNS que se mantenha público e universal, sem barreiras no acesso, e, acima de tudo, que preste uma boa qualidade de serviço aos utentes e aos doentes.
anamafaldainacio@dn.pt
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