Mutilação genital feminina atinge números recorde após a pandemia
Mulheres vivem em Portugal e têm, agora, entre 15 e 44 anos. Foram sujeitas a cortes nos órgãos genitais no país de origem quando eram muito novas, algumas no primeiro ano de vida.
Têm 30 anos, vivem em Portugal, são naturais da Guiné-Bissau e Guiné. Foram mutiladas nos órgãos genitais em criança, quando se deslocaram aos países de origem. Situações detetadas em adultas, durante uma gravidez ou depois de um parto. Estes casos atingiram o ano passado um número recorde de registos: 138.
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Estas mulheres têm, agora, entre 15 e 44 anos, sendo a média das idades 30,6 anos. Foram sujeitas à mutilação genital feminina (MGF) quando eram muito novas, algumas durante o primeiro ano de vida. Também há quem o tenha feito aos 36 anos. A média de idades em que tal aconteceu é 8,4 anos, segundo o relatório da Direção-Geral da Saúde (DGS), que analisa os registos de 2018 a 2021.
"Ao longo dos anos fui conhecendo várias mulheres que foram submetidas ao corte. Algumas não gostam da expressão mutilação, outras usam esta designação. Muitas não falam desta questão, nem com as pessoas mais próximas. Outras falam com os seus parceiros. Outras tornaram-se ativistas e "dão a cara" em entrevistas e projetos para contribuírem para a erradicação desta prática", explica Lisa Vicente, médica de ginecologia-obstetrícia, num artigo que a coordenadora da comissão da Sexualidade Feminina da Sociedade Portuguesa de Sexologia Clínica publicou na Associação para o Planeamento da Família.
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A MGF constitui uma grave violação dos direitos das meninas e das mulheres. É considerado crime e em Portugal desde 2015 (lei n.º 83/2015) que se tornou autónomo, bem como os crimes de perseguição e o casamento forçado. Mas esta prática também se faz no país - há um caso registado em 2021.
Além de provocar a morte a muitas crianças, causa toda uma série de complicações para a vida: psicológicas, na resposta sexual, obstétricas e uro-ginecológicas. A maioria dos casos são detetados em unidades de saúde de Lisboa e Vale do Tejo, particularmente no Hospital Fernando Fonseca, na Amadora.
Amadora lidera registos
Mamadou Bah, presidente da Associação da Comunidade islâmica das Mercês e Mem Martins, considera que estes números tenderão a diminuírem com as novas gerações. "Não temos conhecimento de casos na nossa comunidade. Falou-se dessas práticas há muitos anos, agora, não temos registos. As pessoas estão sensibilizadas para não o fazerem. Nós próprios temos ações de sensibilização, não só com os adultos como com as crianças. Aliás, essas práticas estão proibidas internacionalmente". É da Guiné e vive em Portugal há 34 anos.
As práticas de mutilação digital feminina são justificadas por questões etnico-religiosas. Realizam-se em vários países do continente africano e no Médio Oriente, alguns deles com um grande fluxo migratório para Portugal. É o caso da Guiné-Bissau (63,6 % dos casos no país), comunidade de língua portuguesa com 9469 mulheres residentes, também da Guiné (27,2 % dos registos), 379 habitantes do sexo feminino no país, e do Senegal (3,8 %), 451 imigrantes. Mas há mulheres que aqui vivem e foram mutiladas na Nigéria, Eritreia, Etiópia, Costa do Marfim, Somália, Serra Leoa, Sudão do Norte, Gana e Gâmbia.
A maioria das mulheres observadas em Portugal foram sujeitas à MGF do ao tipo I, remoção total ou parcialmente do clítoris e/ou do prepúcio do clítoris (clitoridectomia), e tipo II, corte dos pequenos lábios, associado ou não ao corte do clítoris e/ou dos grandes lábios.
Os 138 casos descobertos em 2021 nos centros de saúde e hospitais portugueses representam um aumento de 39 % em relação aos 99 de 2020, ano em que o país fechou devido à pandemia. Isto, depois dos 126 verificados no ano anterior, que era até agora o valor mais alto.
Representava uma duplicação dos registos face a 2018 (63), segundo a Plataforma de Dados da Saúde, criada em 2012. Mas o apuramento destes casos só foi possível a partir de 2013.
Entre 2018 e 2021, os médicos indicaram 433 registos, maioritariamente no no âmbito da vigilância da gravidez (43,4%) e no pós-parto (22,1%), além das consultas (17,6%) e internamento (16,9%).
Os tipos III e IV, os mais graves, representaram 4,7% dos casos, sendo que há dois do tipo IV (0,5 %), realizados um na Guiné e outro na Guiné-Bissau.
No tipo III, há o estreitamento do orifício vaginal através da criação de uma membrana selante, pelo corte e aposição dos pequenos lábios e/ou dos grandes lábios, com ou sem excisão do clítoris (infibulação). O tipo IV inclui todas as outras intervenções nefastas sobre os órgãos genitais femininos. punção/picar, perfuração, incisão, corte, escarificação e cauterização.
Segundo a UNICEF há pelo menos 200 milhões de adolescentes e mulheres, em 30 países, que foram submetidas à MGF.
ceuneves@dn.pt