Fernanda Figueiredo, 60 anos, leva mais de duas décadas a trabalhar como empregada doméstica em Leiria.
Fernanda Figueiredo, 60 anos, leva mais de duas décadas a trabalhar como empregada doméstica em Leiria.Nuno Brites / Global Imagens

Mulheres, precárias e pobres. O retrato português no Dia Mundial do Trabalhador Doméstico

Os números declarados à Segurança Social aumentaram 70%. A subida deve-se à obrigatoriedade dos empregadores declararem esta atividade. Mas o quadro do trabalho doméstico continua precário: a maioria são mulheres imigrantes que nem auferem o salário mínimo. Há, no entanto, uma minoria que ganha quase o dobro.
Publicado a
Atualizado a

Há duas realidades completamente antagónicas em Portugal, no que respeita ao trabalho doméstico. Mas uma agiganta-se: cresce o número de trabalhadores em situação precária, em que os baixos salários dominam - afetando sobretudo mulheres, na sua maioria imigrantes. Por outro há uma franja de trabalhadoras que aufere vencimentos razoáveis, bem acima do salário mínimo. São sobretudo mulheres com mais de 50 anos, que trabalham há décadas nas mesmas casas, e que ainda complementam o trabalho regular com alguns extras. É o caso de Fernanda Figueiredo, 60 anos, mais de 20 a trabalhar como empregada doméstica na cidade de Leiria. “Sou muito feliz a fazer este trabalho e sinto-me realizada”, conta ao DN, numa pausa entre o trabalho de todas as manhãs, na vivenda de que cuida há meia dúzia de anos, e as horas repartidas “por mais três patrões”. Ao todo, trabalha em quatro locais, dois deles escritórios de serviços.

A vida de Fernanda nem sempre foi esta. Tinha um negócio seu, uma vida estável, mas há 20 anos (na sequência do divórcio) viu-se obrigada a procurar emprego. Ainda trabalhou num escritório, depois numa loja, mas quando lhe perguntaram se queria “fazer umas horas de limpeza”, decidiu experimentar. Percebeu então que “ganharia mais a fazê-lo do que a trabalhar como empregada de escritório, numa loja ou num restaurante”. Volvidos 20 anos, 13 dos quais a trabalhar “para a mesma pessoa, uma juíza a quem ajudei a criar o filho”, continua convicta de que tomou a decisão certa. “Comprei a minha casa, o meu carro, quando me apetece viajar, viajo”, afirma, ela que faz “de tudo um pouco: limpo, arrumo, cozinho, passo a ferro” e que diz sentir-se “valorizada”. “Ganho mais do que ganhava noutro trabalho, não tenho colegas, organizo a vida e o trabalho à minha maneira”, explica. “E as minhas patroas são super minhas amigas”, conclui. Trabalha de segunda a sexta, com um  salário fixo e descontos para a Segurança Social feitos pelo casal da vivenda onde passa as manhãs. No resto, trabalha à hora, 7 euros por cada uma.

Em Lisboa, há ainda muitos casos de trabalhadoras domésticas cuja vida se confunde com as dos patrões. Albertina Martins, 61 anos, é um deles. Trabalha há 30 anos para a mesma família, viu nascer e morrer alguns dos seus membros. Há três décadas, regressara de Macau e “precisava de trabalhar”. “O meu ex-marido estava desempregado, eu estava grávida do meu filho mais velho, e soube de uma família que andava a construir uma quinta, em Colares (Sintra), e precisava de uma empregada doméstica. Fui e fiquei, até hoje”, conta ao DN. “Comecei por fazer umas horas. Naquele tempo eles tinham até uma empregada interna. O certo é que fui ficando, vi nascer os netos, vi o meu patrão morrer, e hoje continuo a trabalhar para a senhora”, atualmente num apartamento em Miraflores. “Ao fim destes anos todos já não me sinto empregada, mas sim como se fosse da família”, conta Albertina, numa altura em que também ela já é avó. Trabalha todos os dias, das 09.30 às 17.00. “Toda a família me estima. Faço de tudo um pouco”, relata, enquanto recorda que, se for preciso, fica lá em casa, como já aconteceu.

Trabalhar “ao negro”

O reverso desta medalha é, porém, muito pouco brilhante. Rosane Vieira faz parte dele. E como ela, muitas amigas brasileiras. Quando chegou a Portugal, há cerca de um ano, e se instalou com a família (o marido e dois filhos pequenos, de 5 e 7 anos) nos arredores de Coimbra, ainda tentou trabalhar num restaurante. Em São Paulo, onde morava, era cozinheira. Mas rapidamente percebeu que os horários não lhe permitiam acompanhar os filhos, tão pouco “ir buscá-los à escola”. “Na minha família sempre houve faxineiras, eu sabia fazer de tudo, pensei em trabalhar nessa área”. “Sabia que na cidade a maioria das pessoas que fazem trabalho doméstico ganhavam 9 euros à hora. A maneira que encontrei para ter trabalho rapidamente foi baixar esse preço. Trabalhar por 6 euros. E resultou”, conta Rosane. Atualmente trabalha em quatro casas, tem os dias todos ocupados, de segunda a sexta. Um dos patrões dispôs-se a pagar-lhe os descontos para a Segurança Social. “Os outros é ‘ao negro’ [trabalho não declarado], como falam aqui”, explica ao DN. Ainda assim, prefere a situação que escolheu, ao invés de trabalhar para uma empresa auferindo o salário mínimo. “Quando faço muitas horas consigo ganhar 1000 euros por mês, ou mais”, adianta. “E entre uma e outra coisa posso ir buscar os meus filhos à escola. Se trabalhasse para uma empresa, como algumas amigas minhas, não só tinha pior horário como ganhava menos”.

Na verdade, é esse o retrato do trabalho doméstico em Portugal: mulheres, precárias, com baixos salários. Pelo menos é a principal conclusão do estudo “Serviço Doméstico Digno”, apresentado em março deste ano, e coordenado pelo sociólogo Paulo Pedroso, no âmbito do do EEA Grants, um mecanismo financeiro plurianual através do qual a Islândia, o Liechtenstein e a Noruega “apoiam financeiramente os Estados membros da União Europeia com maiores desvios da média europeia do produto interno bruto (PIB) per capita, onde se inclui Portugal. 
A iniciativa partiu do Sindicato dos Trabalhadores de Serviços de Portaria, Vigilância, Limpeza, Domésticas e Actividades Diversas (STAD) e visa conhecer mais detalhadamente a realidade económica e social dos trabalhadores e trabalhadoras do Serviço Doméstico nas suas variadas dimensões: atividade económica e emprego, quadro legal e legislação laboral, acesso à proteção social e mobilização e organização de trabalhadores.

O que a lei obriga

Vivalda Silva, dirigente do STAD, destacou na altura a importância da entrada em vigor da lei que obriga a que os empregadores declarem à Segurança Social as trabalhadoras domésticas no prazo de seis meses após o início do contrato. E isso explica, afinal, o aumento exponencial dos números declarados. Os últimos dados disponibilizados pelo Ministério do Trabalho Solidariedade e Segurança Social (MTSSS) remontam precisamente há um ano, no âmbito do Dia Mundial do Trabalhador Doméstico, e apontavam para uma entrada de mais de 11 mil novos trabalhadores nos cadernos da Segurança Social, só no primeiro semestre de 2023. “Registaram-se 11 257 novos trabalhadores, o que representa o acréscimo de 71% em relação ao mesmo período de 2022”, explicava o Ministério. Segundo a mesma nota, o número era significativamente superior ao de qualquer dos semestres homólogos desde 2010, cujos totais variaram entre o máximo de 9049 registados naquele mesmo ano e o mínimo de 4549 em 2014.

O valor referente às novas inscrições no período de janeiro a junho de 2023 aproximava-se do total anual de 2022, que foi de 11 607 novos trabalhadores, e é já era superior aos totais de 2021 (11 031) e 2020 (11 165).

Trabalhadoras domésticas portuguesas estiveram esta semana em Bruxelas, a convite do BE, e apresentaram manifesto. (João Baah)

Para já, a nova equipa do Ministério tutelado por Maria do Rosário Ramalho ainda não libertou os dados de 2024. Questionado pelo DN, o gabinete adiantou que “não há qualquer informação de que possa haver alterações no regime de trabalho das trabalhadoras domésticas”, num futuro próximo.

Em 2022, a esmagadora maioria das pessoas que faziam trabalho doméstico (90%) recebia menos 610 euros mensais e 74% recebia menos de 460 euros, apurou o estudo, destacando ainda que um terço das trabalhadoras domésticas faz menos de 20 horas semanais e um outro terço entre 40 a 44 horas, conjugando este trabalho com outros para pagar as contas.

Verifica-se uma “pobreza generalizada ao longo da vida ativa das pessoas trabalhadoras domésticas” referiu o investigador Amílcar Ramos.

O deputado José Soeiro, do Bloco de Esquerda, há muito que acompanha de perto esse universo. “Chegámos a apresentar uma proposta para integrar o serviço doméstico no código do trabalho, mas foi chumbada”, afirmou ao DN. Ainda assim, essa é uma das propostas que consta do livro branco (consequência do estudo), a publicar em breve. O deputado participou esta semana numa iniciativa da eurodeputada Anabela Rodrigues, alusiva ao tema, em Bruxelas. Um grupo de trabalhadoras domésticas portuguesas apresentou um manifesto com várias reivindicações, uma ação que deverá replicar-se em breve na Assembleia da República.

Paulo Pedroso: “Além das pessoas terem hoje remunerações baixas vão ter pensões muito, muito baixas”

O sociólogo e antigo ministro socialista coordenou estudo para o Serviço Doméstico Digno, apresentado em março, e encontrou “problemas estruturais”.

Qual é o retrato que podemos traçar hoje em Portugal do trabalho doméstico?
O trabalho doméstico está em profunda transformação, mas tem problemas estruturais. Desde logo há uma evolução, em que nós verificamos que se há uma proteção que funciona para quem trabalha em serviço doméstico a tempo inteiro, as pessoas que trabalham a horas têm uma situação bastante precária. Ou seja, a precariedade aumenta quando as pessoas trabalham para mais do que uma família ao mesmo tempo. Há ainda uma insuficiente realização dos direitos - e verificámos isso do ponto de vista das relações reais que as pessoas têm, quando comparadas com aquilo que a legislação obriga. Há uma distância muito grande entre o que é a proteção jurídica do trabalho no serviço doméstico e o que é a realidade das pessoas que trabalham nesse serviço, e que obriga a pensar em mecanismos mais eficazes de inspeção nesta área.

E em matéria de proteção social, o regime protege menos...
Sim, porque parte de uma remuneração convencional que é muito abaixo das remunerações reais e muito abaixo do salário mínimo. Está indexada a apoios sociais muito abaixo do salário mínimo, e isto implica que além das pessoas terem hoje remunerações baixas vão ter pensões muito, muito baixas. Isto em relação àquilo que são os seus salários. Além disso verificámos que é uma área onde há muito pouca participação sindical.

E também não há regulamentação coletiva de trabalho?
Também não há. Porque não havendo representação das entidades patronais, não pode haver essa negociação. Mas pode haver uma portaria de condições de trabalho que ajude a desenvolver certos aspetos, e que Portugal deve adotar, nomeadamente horário de trabalho e remunerações, que complementem a legislação.

Os últimos números apontavam para um aumento considerável de trabalhadores inscritos na Segurança Social. O que explica este facto?
A Agenda do Trabalho Digno acabou por ter um efeito lateral muito positivo, porque a obrigação das entidades patronais declararem os trabalhadores, sob pena de sanção penal, teve um efeito enorme. Isso mostrou que havia em Portugal muito serviço doméstico que não passava pela regulação legal. E muito menos pela proteção social. As estimativas do setor são bastante sub-avaliadas no que respeita ao seu peso real no emprego, até porque uma boa parte das pessoas que trabalham no serviço doméstico trabalham também noutras atividades, em particular nas limpezas industriais. Ou seja, usam o serviço doméstico como uma forma de complemento salarial, porque têm salários baixos nas outras profissões. Mas essa duplicação do trabalho doméstico declarado em Portugal é uma boa aproximação ao nível da desproteção que as pessoas tinham.

Depois do estudo, está para editar um livro branco do Trabalho Doméstico Digno. Para quando?
Já está em fase de impressão. Até final do mês deve estar na rua. E tem um conjunto de recomendações que resultam de todo esse trabalho que fizemos.

Artigos Relacionados

No stories found.
Diário de Notícias
www.dn.pt