Mudança de culturas por falta de água não muda hábitos alimentares dos portugueses

Eficiência na agricultura tem de melhorar devido à escassez de água. Um problema que faz que produtores e cientistas estejam de acordo num ponto: vamos ter de regressar às culturas de sequeiro. Durante esta semana o DN publica trabalhos sobre a seca que o país atravessa e o seu impacte
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Cientistas e agricultores estão de acordo: é possível a agricultura ser mais eficiente no consumo de água, apostando no regresso às culturas de sequeiro, mesmo nos terrenos onde o regadio já tem histórico, sem que esse passo represente mudanças de hábitos alimentares entre os portugueses ou subidas de preços de produtos que tenham de ser importados. É uma consequência do mercado global.

"Mesmo que se deixe de cultivar alguns produtos, o mercado mundial vai funcionar, fazendo sempre chegar cá os produtos a que estamos habituados", admite o hidrogeólogo António Chambel, dando o exemplo da manga: "Não a produzimos, mas está cá sempre e muita boa."

Também os agricultores asseguram que o milho, uma das culturas que gasta mais água - à ordem de 8 mil metros cúbicos por hectare durante o ano, tal como o girassol -, vai ter o seu lugar no mercado. Até porque tanto nas margens de Alqueva, onde não há limitações ao consumo de água, como no Ribatejo, a produção deve garantir tanto as elevadas quantidades necessárias à silagem para alimentar vacarias de leite, como a percentagem quase sem expressão que permita abastecer o país da célebre broa de milho.

"Se um dia não houvesse resposta em Portugal, o milho poderia vir de Espanha, porque fará sempre falta", diz ao DN o agricultor José Palha, apesar de, nesta fase, a produção desta cultura ser pouco interessante para os produtores do Alentejo, confrontados com barragens à míngua de água, tendo alguns produtores trocado o regadio pelos cereais de sequeiro, como trigo duro, trigo mole, cevada e aveia.

Álvaro Silvestre, produtor na bacia do Sado, confirma que perante a falta de chuva "o sequeiro passou a dar um maior rendimento e com mais garantias de sucesso", tendo optado por abandonar o girassol, dedicando-se ao trigo duro e, lá mais para a frente, à cevada. "Com mil metros cúbicos de água por hectare estou assegurado e com o girassol precisava de 7 mil a 9 mil metros cúbicos. O rendimento não teria grande diferença", sublinha.

E, sim, os terrenos estão preparados para o regresso às culturas tradicionais de sequeiro, garantindo Mário Carvalho, docente da disciplina de Agricultura da Universidade de Évora, que a rega das produções de outono/inverno iria dar um contributo de peso para o aumento de produção, permitindo mesmo, em anos de maior precipitação, multiplicar por cinco as chamadas "pastagens pobres" que equivalem a 87% do milhão e 300 mil hectares de sequeiro no Alentejo.

"Valeria a penar investir na fertilização destes solos, porque passaríamos a ter grandes produções de pastagens para armazenar e dar como suplemento aos animais em anos de seca extrema", explica, admitindo que já há exemplos de sucesso desta prática em algumas explorações de gado, enquanto noutras "há animais a morrer à fome", enquanto lamenta as más opções de quem apostou na produção de nozes e amêndoas, que gastam mais de 7 mil metros cúbicos na rega.

Explica o docente que quem optou pela plantação de frutos secos - aproveitando o facto de a Califórnia (EUA) ter sido afetada durante dez anos pela seca que levou à subida de preços - agora vai ser prejudicado porque a seca naquela zona acabou e haverá uma elevada produção destes frutos secos, o que fará que o preço baixe. "Vai deixar de ser uma cultura interessante em Portugal. Mas, entretanto, já se gastaram muitos recursos com amendoeiras e nogueiras. Isto tem de ser bem pensado", frisa.

Já o especialista em alterações climáticas, Filipe Duarte Santos, vislumbra oportunidades agrícolas com a menor precipitação, secas mais frequentes e temperaturas cada vez mais elevadas que irão provocar maior evaporação. "Isto requer uma política de adaptação e há estudos nesse sentido", diz, colocando-se ao lado da rega gota a gota como a que garante maior eficiência mesmo numa região árida como o Alentejo.

E dá o exemplo espanhol da região, na bacia do rio Segura, junto a Alicante, em que milhares de hectares de terrenos quase desérticos conquistaram o epíteto de horta de Europa. "Foram buscar água junto à nascente do Tejo através de transvase, conduzindo-a ao longo de 300 quilómetros para regar os campos de estufas onde cresce as hortícolas todo o ano", explica.

O hidrogeólogo António Chambel corrobora das vantagens das hortícolas com rega "gota a gota enterrada", admitindo que a solução está longe dos campos portugueses, apesar do "grande sucesso em Israel com produções semelhantes às nossas". Isto numa altura em que, diz, é comum ver, em pleno Alentejo, pivôs regarem com 40 graus de temperatura, em que "mais de 50% da água se evapora para a atmosfera sem tocar no solo". Por isso sugere que, pelo menos no pico do verão, "a rega podia ser noturna".

Já o presidente da Sociedade Portuguesa da Ciência do Solo, Carlos Alexandre, defende a importância de "represar água" para ter abundância nos anos sem chuva, aconselhando a diversificação de culturas. Assume que a escolha da sementeira terá de ser uma questão sempre analisada do ponto de vista económico, enquanto se mostra preocupado com a recente confirmação do governo que aponta à ampliação da área irrigada por Alqueva em mais 50 mil hectares, passando de 120 mil para 170 mil.

"Podemos chegar a um ponto em que isso vai originar um choque, tentando levar ao limite sem saber onde é o limite", avisa, exemplificando que em caso de seca extrema há o risco de as chamadas culturas permanentes - vinhas, oliveiras ou pomares - não terem água suficiente para todo o ano e ficarem condenadas à morte, pelo que recomenda um equilíbrio entre culturas perenes e culturas anuais, permitindo uma "maior flexibilidade e capacidade em nos adaptarmos".

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