Morreu o último sobrevivente da fuga  de Peniche e líder da luta armada do PCP

Militante do PCP desde os 14 anos, preso pela primeira vez aos 15, Jaime Serra foi protagonista de algumas das mais espetaculares ações de combate à ditadura salazarista. Morreu ontem, com 101 anos.
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Não há história do combate à ditadura de Salazar que possa ser feita sem se passar por Jaime Serra, o histórico dirigente comunista que ontem morreu em Lisboa, aos 101 anos. Nalguns dos mais espetaculares sucessos dessa história, foi uma figura de enorme destaque, sempre ao serviço do PCP, partido no qual se filiou quando tinha apenas 14 anos.

Homem de ação, foi ainda capaz de gestos que o individualizaram perante o seu partido e perante a sua geração de camaradas. Foi por exemplo o único histórico comunista que assumiu abertamente a colaboração com o historiador José Pacheco Pereira na sua monumental biografia de Álvaro Cunhal (quatro volumes já publicados, o quinto a ser escrito). Assumiu-o indo ao lançamento de um dos volumes.

Pacheco Pereira conta ao DN: "As conversas eram às vezes quase surreais [porque Serra queria revelar alguma coisa mas não queria revelar tudo]. Mas ele foi capaz de romper a omertà [lei do silêncio] que o PCP tinha decretado. Tenho por ele muita estima e consideração. Foi um dirigente do PCP muito importante nos anos 1950, 60 e 70. Era um homem corajoso, duro, sempre com grande vontade de ação, mas não se gabava. O PCP sempre respeitou muito esta geração de militantes mas [depois do 25 de Abril] eles às vezes sentiam-se um pouco marginalizados. Julgo que era o sentimento de que o seu tempo tinha passado."

Com Jaime Serra morre também o último sobrevivente da histórica fuga de Peniche (3 de janeiro de 1960), que o levou à liberdade e a outros nove dirigentes do PCP (entre eles Álvaro Cunhal). A fuga representou uma humilhação para Salazar e determinaria, dentro do PCP, em março de 1961, a confirmação de Álvaro Cunhal como líder de facto (secretário-geral) do partido. Dos dez dirigentes que fugiram de Peniche nessa noite de janeiro de 1960, pelo menos dois já tinham experiência de o fazer: o próprio Jaime Serra e Francisco Miguel.

Serra tinha, de resto, várias fugas no currículo. Numa delas, em 1954, de Caxias, limitou-se a sair... pela porta. Fez um molde da chave com sabão, depois produziu-a... e saiu. Foram acontecimentos que relatou em "12 Fugas das Prisões de Salazar" (edições Avante!), um dos quatro livros de memórias que assinou.

Sendo acima de tudo um operacional, foi um dos responsáveis pela criação e direção do braço armado do PCP, a ARA (Ação Revolucionária Armada), que funcionou de 1970 a 1973. O primeiro atentado, em outubro de 1970, foi inoperacionalizar com três bombas um navio atracado na doca de Alcântara, o Cunene, que estava ao serviço do esforço logístico da guerra colonial (transporte de armamento). A operação foi bem-sucedida, o navio ficou alagado e imobilizado.

Sempre com o cuidado de não provocar mortes para não suscitar censura popular, a ARA realizaria várias outras operações. A mais espetacular terá sido, em março de 1971, a destruição de dezenas de aviões e helicópteros militares na Base Aérea de Tancos. Meses depois, em junho, a organização conseguiu interromper totalmente as comunicações, durante seis horas, numa reunião ministerial da NATO que decorria em Lisboa. A ARA deixou de atuar em maio de 1973 mas Serra revelaria há uns anos que foi ponderado no PCP reativar a organização durante a vaga de atentados da extrema-direita no PREC.

Sendo acima de tudo um operacional, deixou no entanto rasto político na ação do PCP durante a ditadura. Com o pseudónimo de "Freitas", foi o autor, em setembro de 1957, da exposição no V Congresso do partido (realizado clandestinamente numa vivenda no Estoril) que levou o PCP a reconhecer o direito à autodeterminação dos povos das colónias.

Jaime Serra nasceu em 22 de janeiro de 1921 em Alcântara. Foi preso pela primeira vez com 15 anos. Operário naval, passou à clandestinidade em setembro de 1947, situação da qual só sairia com o 25 de Abril.

Depois da revolução, seria deputado, de 1975 a 1983, ocupando vários cargos de direção no PCP. O partido definiu-o ontem como um "exemplo de revolucionário comunista" e de "inquebrantável combatividade e firmeza na luta política".

O funeral será no sábado, dia 12, no cemitério do Alto de São João, pelas 11h30.

[Notícia retificada às 19.20 de 10 de fevereiro de 2022: José Pacheco Pereira não publicou três volumes da sua monumental biografia de Álvaro Cunhal mas sim quatro, estando a escrever o quinto.]

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