Milhares de doentes à espera de um atestado multiúsos
Milhares de doentes (sobretudo oncológicos) encheram-se de esperança com a publicação do relatório da provedora de Justiça, esta semana, contendo várias recomendações sobre o sistema de emissão de atestados médicos de incapacidade multiúsos (AMIM). Maria Lúcia Amaral terá recebido mais de 1500 queixas nos últimos cinco anos e decidiu enviar diversas sugestões à tutela. Uma delas prende-se com os doentes oncológicos, esclarecendo, “em termos inequívocos, que o regime especial de emissão de AMIM (Atestado Médico de Incapacidade Multiúsos) aos doentes oncológicos - e a outros casos particulares normativamente previstos - é também aplicável fora do SNS, estabelecendo-se procedimento em conformidade”.
Jochen Faget é um dos muitos casos que aguardam pelo atestado. O jornalista alemão mora em Portugal há mais de 30 anos (é correspondente de um canal de televisão) e nos últimos tempos pôde conhecer de perto os atrasos e as dificuldades em torno dos AMIM. Faz um ano em maio que lhe foi diagnosticado um adenocarcinoma do pulmão, tumor maligno que o obrigou a tratamentos vários. Mas aquela já não era a primeira vez que Jochen percorria os corredores do IPO, em Coimbra. Em 2019 já removera um outro tumor maligno da boca. E o que, à partida, seria um fator a contribuir para mais depressa obter o atestado multiúsos, revelou-se um problema aos olhos do sistema. Foi nessa altura que pensou denunciar o caso. “Não necessariamente por causa de mim, mas de muitas pessoas que nem sempre sabem reclamar nos sítios certos”. O jornalista começou por dirigir-se aos serviços do IPO, e foi lá que soube “do atraso de anos, que vem desde a pandemia”. E o atraso começa na realização das juntas médicas, que vão aferir do grau de incapacidade do doente e emitir o atestado multiúsos.
Em janeiro, depois de esbarrar nos entraves do sistema, enviou um email ao IPO: “Depois de tentar entregar no meu Centro de Saúde o documento emitido pelo IPO, fui informado que devia ser o IPO emitir o atestado e não uma junta médica. O cancro foi diagnosticado em 30.05.2023 e conforme a lei 1/2024, Artigo 2.º compete ao IPO emitir o atestado. Mais me informaram que há um atraso de 4 anos nas juntas médicas. Peço então mais uma vez a emissão do atestado ou uma explicação porque o IPO recusa de fazê-lo”.
A resposta chegou no dia seguinte: “Informamos que os Atestados Médicos Incapacidade Multiuso (AMIM) emitidos no Instituto Português de Oncologia de Coimbra (IPOC) estão restringidos ao enquadramento da lei 14/21 de 06 abril, que determina ser a emissão um regime transitório apenas abrangendo doentes recém diagnosticados, tendo a circular n.º 13/21 da ACSS de 07/10/2021 especificado que apenas são elegíveis doentes diagnosticados a partir de 2020”. E acrescentava que “o IPOC não pode por falta de enquadramento legal emitir o Atestado Médico Incapacidade Multiuso(AMIM). O diagnóstico oncológico no caso em apreço foi efetuado em data anterior e situações decorrentes do mesmo não são assumidas clinicamente como novos diagnósticos, mas sim como intercorrências do diagnóstico inicial”.
Os casos que chegam à Liga contra o Cancro
Casos como o de Jochen Faget chegam todos os dias aos serviços de apoio jurídico da Liga Portuguesa contra o Cancro (LPCC). A jurista Carla Barbosa já perdeu a conta aos que lhe passaram pelas mãos. E explica ao DN que “com a pandemia as coisas até se tornaram mais simples, porque foi publicada legislação específica para os doentes oncológicos, permitindo que o primeiro certificado seja emitido pelo hospital de diagnóstico, o que facilita imenso a vida às pessoas”. Porém, persiste a constituição das juntas médicas, que determinará a emissão do AMIM.
Carla Barbosa não acredita que a recomendação da Provedora de Justiça a este respeito (avaliação por um único médico em vez de três) traga grandes alterações. “Na realidade isso já acontece. Não é essa alteração que vai resolver o problema. Há uma questão de raiz que, se fosse alterada (mexendo na lei) poderia facilitar muito: o grau de incapacidade que resulta destas juntas médicas é aferido em função da tabela nacional de incapacidades. E essa foi criada para outras incapacidades que não as da doença oncológica, entre outras, e leva a que haja muitas injustiças. Por isso a solução só pode passar por aí, com uma tabela mais intuitiva criada a pensar nessas situações”. A jurista acredita que “isso iria permitir que não estivéssemos dependentes dos médicos de saúde pública e das juntas médicas, permitindo ao médico de família ou ao clínico assistente fazer a emissão desse atestado”.
Para que serve o atestado
Atualmente, o AMIM é um documento central no acesso a uma série de direitos atribuídos às pessoas com um determinado grau de incapacidade (em geral, igual ou superior a 60%), que decorrem do dever de o Estado promover e proteger os direitos fundamentais de quem está em situação de desvantagem física ou mental.
A apresentação do AMIM permite o acesso a vários serviços, nomeadamente a isenção de taxas moderadoras nos hospitais; benefícios em sede de imposto sobre o rendimento das pessoas singulares (IRS); isenção quer do imposto único de circulação (IUC), quer do imposto sobre veículos (ISV); cartão de estacionamento; atendimento presencial prioritário; prestação social de inclusão (PSI); atribuição gratuita de alguns produtos de apoio; desconto em transportes públicos; gratuitidade do transporte não urgente em ambulância no âmbito do Serviço Nacional de Saúde (SNS); bolsa de estudo no ensino superior; proteção nos contratos de arrendamento em matéria de denúncia e de valor das rendas ou assistência pessoal. Ora acontece que o atraso verificado desde a pandemia na realização das juntas médicas é que dita a emissão do referido atestado.
No relatório da Provedoria agora publicado, fica claro que a centralidade definida para o AMIM - dirigida a evitar que tivessem que ser requeridos tantos atestados quantos os benefícios a que se pretende aceder - “levou, principalmente a partir de 2012, a um substancial acréscimo de pedidos de atestado. A resposta das autoridades de saúde não acompanhou um tal acréscimo, pelo que os atrasos na realização das juntas médicas de avaliação das incapacidades das pessoas com deficiência (JMAI) foram aumentando, panorama que se agravou durante a pandemia de COVID-19 e que persistiu para além dela.”
Outra das recomendações da Provedora aponta para a possibilidade de avaliação médica singular (por um único médico) para estabelecer a incapacidade das pessoas com deficiência. No que toca ao sistema de avaliação, Maria Lúcia Amaral aponta para “garantir com urgência o regular funcionamento da comissão de normalização e acompanhamento das avaliações de incapacidade, e da base de dados centralizada de recolha e tratamento da informação relacionada com juntas médicas”.
“Não obstante os avanços registados, persistem vários problemas por resolver no sistema de avaliação de incapacidade das pessoas com deficiência, a par de consideráveis atrasos na emissão dos atestados”, refere um comunicado da Provedoria, divulgado na segunda-feira passada, aquando da publicação do relatório, cujo objetivo é “sistematizar as preocupações da Provedoria de Justiça, designadamente quanto à recuperação de pendências, aos benefícios fiscais, aos apoios sociais, ao modelo do AMIM e ainda quanto a algumas situações particulares especialmente carecidas de atenção”.
Já há cerca de um ano Maria Lúcia Amaral tinha alertado para a urgência de reforçar a validade dos AMIM. Perante o impasse, aponta agora para “reformular o modelo atualmente em vigor, utilizando linguagem simples e acessível”.
1500
O número de queixas que deu entrada na Provedoria de Justiça ultrapassou o milhar e meio nos últimos cinco anos, segundo Maria Lúcia Amaral.
O regime transitório de emissão do atestado médico de incapacidade multiúsos para doentes oncológicos e pessoas com deficiência, aprovado pela Assembleia da República, foi publicado em janeiro, em Diário da República. Na prática, este regime visava evitar que os doentes oncológicos e as pessoas com deficiência deixem de usufruir dos benefícios que os atestados multiúsos proporcionam (medidas sociais, económicas e fiscais), prorrogando a validade dos documentos até que seja feita a reavaliação. Porém, essa prorrogação só é válida para os cidadãos que requererem uma junta médica de reavaliação da sua situação.
paula.sofia.luz@ext.dn.pt