Miguel Coelho. "A habitação é o problema mais grave que teremos no país"
Foi uma das primeiras vozes a chamar a atenção para o problema da habitação que se desenhava em Lisboa. Presidente da junta de Santa Maria Maior pede coragem ao Governo e defende que deve ser o Estado a comparticipar rendas, desde que "técnicas" e não especulativas. Sobre o incêndio de sábado na Mouraria fala num problema de "grande dimensão" e num "barril de pólvora".
Desde que é presidente da junta de freguesia de Santa Maria Maior, em 2013, consegue identificar o nível de perda de habitantes na freguesia, que foi uma das primeiras a ser afetada pelos problemas de habitação em Lisboa?
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Sim, com alguma precisão: perdemos cerca de 25% dos residentes. Alguns por processo natural, por falecimento, mas sobretudo porque temos aqui um problema grave na habitação, que detetámos a partir de 2014/2015, que se foi agravando, e que é responsável pelo êxodo forçado de muitas pessoas. Como sempre, isto começou por atingir as classes mais desfavorecidas, mas depois foi alastrando como uma mancha de óleo, em termos geográficos e em termos sociais. Mesmo as classes médias... a certa altura o aumento dos preços das rendas e a pressão obrigou-as também a ir embora.
E continua, atualmente?
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Sim. Não tão aceleradamente, mas continua.
Na sua perspetiva, como é que se resolve o problema da habitação que, entretanto, se transformou num problema de toda a cidade?
Acho que é um problema de todo o país, embora com maior pressão sobre as cidades. É mesmo o problema mais grave, social, de coesão social, que teremos no país dentro de meia dúzia de anos, se é que não o é já. Ou por preguiça - e contra o meu partido falo, como contra todos os outros -, ou porque estamos todos ainda muito agarrados aos clichês do século passado sobre como se encara este problema, ou também porque é um terreno que eleitoralmente não é agradável, o poder político foi tentando arrumar esta questão a um canto, com velhas respostas: temos que construir casas. Mas o problema não é só construir casas, nem sequer é o mais importante, embora seja necessário. Tenho vindo a alertar para esta dificuldade e há anos que defendo que é necessário criar o ministério da habitação. Não só, mas também para as pessoas perceberem que os governos dão uma importância decisiva a esta questão.
Para além de construir casas, o que é que se deve fazer?
O facto de haver carência de casas e muitas pessoas sem habitação é resultado da conjugação de vários fatores e não de apenas um único. Por isso, também não há uma resposta única, nem uma varinha mágica que resolva o problema. Não pode ser o Estado a resolvê-lo sozinho, até porque não teria recursos financeiros para mais nada, não podem ser só os privados, nem só o setor cooperativo. Tem que haver uma aliança estratégica de todos, naturalmente com o Estado como coordenador, para que comecem a surgir boas perspetivas. Quando se dá a velha e tradicional resposta: vamos construir casas para dar às pessoas... na melhor das hipóteses essas casas estão prontas daqui a seis anos. O Estado tem que lançar projetos, fazer concursos, depois há as litigâncias... E eu pergunto: e agora? Quem precisa de casa agora como é que vai viver? Embora faça parte da solução, esta não é a solução. Claro que é preciso construir casas para lançar no mercado de arrendamento, temos aqui um mercado distorcido, temos que criar um mercado de arrendamento forte e consistente. Não tenhamos dúvidas: se nada se fizer as famílias, desesperadas, mesmo de classe média, vão ocupar casas. É preciso começar a tomar medidas, com muita coragem.
Que medidas são essas?
Em primeiro lugar é preciso olhar para o mercado de arrendamento privado. É preciso reconhecer a importância dos proprietários e incentivá-los a deixarem o arrendamento de curta duração. A primeira proposta que eu faria seria isentar totalmente de IRS e de IMI os proprietários que arrendem casas por mais de 20 anos. E depois adotar um sistema gradual: de dez a 20 anos, por exemplo, 50%. Acho que é uma medida decisiva. E é preciso que seja possível, quando comprovadamente se verifique que as pessoas têm recursos para pagar a renda e não a pagam, que este processo seja concluído num período máximo de quatro meses. O principal problema dos senhorios é a confiança: "eu meto uma pessoa na casa e ela nunca mais sai de lá". É preciso conseguir resolver isso em quatro meses. Mas depois também temos que ir ao contrário: é preciso proibir despejos a pessoas com mais de 65 anos.
Essa proteção já existe na lei...
Existe, graças às alterações que eu e a Helena Roseta conseguimos incluir na legislação, mas não é universal. É para pessoas com mais de 65 anos que vivam numa casa há mais de 15 anos, etc. Também é preciso proibir despejos a famílias com crianças em idade escolar. Não há nada pior para as futuras gerações do que as crianças terem que interromper o seu percurso escolar porque perderam a casa e tiveram de ir para outro sítio. Como é que isto se pode contrabalançar? O Estado tem que recompensar o senhorio da diferença que essa pessoa teria que pagar, com o cálculo feito numa base de renda técnica, não especulativa. Não há pior que possa acontecer que a destabilização das famílias, a implosão das famílias, que é o que isto tudo pode provocar.
Ou seja, o Estado deve comparticipar as rendas?
É preciso compensar os proprietários que prestam serviço social, mesmo não querendo. Exemplo: tenho uma família que paga 500 euros de renda e a lei dá-me o direito de aumentar para 700. Essa família não tem rendimentos para pagar os 700, excede os 30% de taxa de esforço, o Estado deve pagar diretamente a esse proprietário a diferença. Porque esse proprietário está a fazer um serviço social. Uma outra medida muito importante: é preciso terminar com os vistos gold em absoluto. Os números são muito elucidativos: de 2012 a 2022, uma percentagem de 90% do investimento em vistos gold foi no imobiliário. De 2021 para 2022 aumentou 37%. Aqui está a explicação de porque é que o preço do metro quadrado é incomportável em Lisboa. É um fator destabilizador, distorce o mercado.
E os regimes de benefícios fiscais a cidadãos estrangeiros, nomeadamente o mais recente, dirigido aos nómadas digitais?
Ainda não me debrucei sobre essa questão a fundo, mas a minha posição de princípio é que todos os regimes fiscais que possam distorcer o mercado, na perspetiva de o tornar mais caro, em prejuízo das pessoas que já cá estão ou precisam de casa, é negativo, não deve ser implementado. O problema é muito grande, é gigantesco. E há outras medidas que é preciso tomar. Temos de terminar de vez com a justificação das obras profundas, que foi um esquema usado pelos proprietários para expulsar muitas pessoas das casas. Isso já foi em grande parte corrigido, mas ainda há uma janela de oportunidade e é preciso terminar com isso: nenhuma obra de remodelação profunda deve poder justificar o cancelamento do contrato de arrendamento. Como também é preciso proibir a rescisão de contratos por ruína dos imóveis quando se prove que o proprietário não fez as obras que devia ter feito. Depois, há medidas a médio prazo. O Estado tem que protocolar com as autarquias a recuperação do seu património que possa ser convertido em habitação, para lançar no mercado de aluguer.
Já há um programa para isso, que até agora não mostrou resultados.
As freguesias não têm acesso a esse programa e deviam ter. E houve muita publicidade à volta disso, mas há pouca informação sobre cada edifício em concreto, é isso que tem de se fazer e não está a ser feito. É preciso também - esta proposta fez parte do meu programa - que pelo menos a Câmara Municipal de Lisboa, onde está concentrada a maior parte do problema, lance programas de regresso das pessoas aos bairros. Pessoas que tiveram de sair por influência da lei Cristas, por pressão imobiliária, por bulliyng imobiliário, que foram despejadas, devem ter a oportunidade de regressar, usando-se para isso o património disperso da câmara. E é preciso também que as câmaras, a começar pela de Lisboa, adotem uma norma urbanística para que novos licenciamentos tenham de ter uma percentagem de fogos alocados a renda acessível. Não digo uma percentagem fixa, mas terá que se encontrar uma forma justa. Tem que haver este princípio: não há empreendimentos novos em Lisboa em que não haja uma contrapartida de "X" por cento para habitação em renda acessível. É preciso também ter coragem e tomar posse administrativa de toda a habitação privada que está desocupada há mais de 15 anos e lançá-la no mercado de renda acessível.
Vê o Governo a adotar essas medidas?
Achei um passo positivo a criação do ministério da Habitação. Haverá muitas contas a fazer, mas o custo social e o perigo de desintegração social é tão grande que acho que vale a pena. Há muita gente que ainda não reparou que este é o principal problema que temos, anda entretida a discutir palcos.
Carlos Moedas não está a prestar atenção à habitação?
Tenho boa impressão da vereadora da habitação [Filipa Roseta]. Mas acho que, se for coerente com aquilo que diz e defende, vai ter sérios problemas no seu partido. Ela tem uma lógica, um discurso anti "o mercado resolve tudo" e não me parece que o PSD esteja bem nesta linha, pelo menos este PSD mais recente. Agora o que me parece é que este executivo municipal, e o seu presidente em concreto, é uma pessoa que tem uma grande capacidade de comunicação e de fazer um discurso a incutir confiança - e isso é bom - mas tem, por outro lado, um grande medo de criar adversários. Adversários sociais, nem falo da política, tem um grande medo de criar contestação: o caso das ciclovias foi paradigmático. Não antevejo boas respostas, por omissão calculada, de que mais vale não arranjar chatices.
O PS Lisboa tem defendido a caducidade das licenças de alojamento local. Concorda com essa ideia?
Essa ideia partiu de mim também. Faz todo o sentido. Se estas licenças não forem reversíveis, nem que seja daqui a dez anos, não há futuro. Não há onde construir mais. Não se pode, e não se deve, construir em altura. Portanto, não há futuro, teremos um território desertificado ou um território de plástico, cheio de turistas, que mudam de semana a semana. Uma coisa é um estrangeiro que vive cá, desde que não seja com vistos gold, outra coisa é esvaziarmos os territórios para ter alojamento local e turistas. Isso não faz sentido. É preciso que as pessoas percebam que isto não é um direito para toda a vida, direitos adquiridos só os laborais. O alojamento local é considerado como habitação: é preciso parar isto, o AL é uma atividade comercial.
Isso foi discutido na Assembleia da República, o PS votou contra.
Tenho muita pena. Sou do PS com muito orgulho, há mais de 40 anos, mas se alguma coisa aprendi no PS é que temos o dever de pensar pela nossa própria cabeça e de assumir discordâncias. Sem dramatismos. Em matéria de habitação tenho tido muitas discordâncias... que mais tarde deixam de o ser.
Mas acha que a medida da caducidade pode avançar?
Espero que sim. O ministério da Habitação tem que se chegar à frente. Se não chegar será uma grande desilusão.
Concorda com a proibição de venda de casas a não residentes, como propôs o Bloco de Esquerda?
Percebo que possa haver alguma bondade genuína na intenção da proposta, mas como está não concordo. Nós não podemos dizer que quem não é português não pode comprar uma casa em Portugal.
Diria que o objetivo será chegar aos fundos imobiliários...
Chegamos aos fundos imobiliários acabando com os vistos gold, implementando um regime de compensação de X por cento de casas para renda acessível. E chegamos lá adotando soluções de equilíbrio e não soluções soviéticas que não resultaram e estão fora de moda.
Casas sobrelotadas e não só: um "barril de pólvora"
O incêndio deste sábado, na Mouraria, veio "destapar" o problema da sobrelotação de casas, onde vivem dezenas de imigrantes. Isto está identificado? Qual é a dimensão deste problema? O que está a ser feito para o combater?
Tenho noção que é um problema de uma grande dimensão, ao nível daquele bairro. Sobre a resposta a dar isso não passa pelas juntas de freguesia, as juntas não fazem habitação social nem fazem esse tipo de apoio social, isso passa pela câmara municipal, que terá como "muleta" a Santa Casa da Misericórdia.
Mas também há aqui a questão da fiscalização.
Claro, isto são atividades económicas paralelas, isso compete à ASAE. Já algumas vezes pedi para haver uma fiscalização deste tipo de situações, dos alojamentos locais... as juntas não têm nenhuma competência para isso. A sobrelotação e a atividade clandestina de alojamento local são frequentes. Mas nem posso afirmar que esta situação em concreto era uma situação dessas, segunda-feira [hoje] deverá haver uma reunião, com a proteção civil, câmara, já solicitei a presença da junta de freguesia como observadora. Neste momento, não posso dizer que aquilo é um alojamento local clandestino, não tenho essa confirmação. Agora, que isto é um barril de pólvora, é. Como é na Baixa, com os restaurantes, com os exaustores que não são limpos como deviam, não são vistoriados por entidades independentes. Temos tido ali vários incêndios que começam nos exaustores dos restaurantes e, de facto, temos ali um barril de pólvora concentrado. Felizmente, temos um regimento de Sapadores Bombeiros dos melhores, acorreram ao local em quatro minutos e meio.
susete.francisco@dn.pt
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