"Metade dos prédios que existem em Lisboa não resistem a um sismo"

Com a destruição provocada por um terramoto em Marrocos ainda por apurar na totalidade, este especialista em reabilitação estrutural deixa alertas sobre o que pode acontecer em Portugal. José Paulo Costa lembra que se deve prevenir em vez de ficar só à espera de ver a tragédia acontecer.
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Este sismo em Marrocos causou mais de 2800 mortos e continua, infelizmente, a contagem. Num lugar como aquele, com casas feitas de adobe, era expectável uma tragédia desta dimensão?
Sim, sim. O sismo é uma oscilação do solo e quando as casas não conseguem suportar esse tipo de oscilações, colapsam. Marrocos, Algarve, Alentejo, metade das casas que existem em Lisboa têm aquelas características. Muitos prédios em Lisboa, metade deles, de acordo com o último Censo, são em alvenaria de pedra e são suscetíveis, como os prédios em Marrocos, a ter este tipo de desfecho.

Portanto, este sismo não só não está geograficamente longe de Lisboa, como o tipo de construção que temos é, de alguma forma, muito semelhante. É isso que está a dizer?
É similar. Basicamente, em Portugal existem construções edificadas antes dos anos 80, todas elas muito vulneráveis a sismos. As construções depois dos anos 80, pela regulamentação, são resistentes ao sismo, mas podem não ter sido construídas de acordo com as melhores práticas, porque não há fiscalização nessa área. Mas a grande maioria das nossas casas no sul do país, mais do que metade, talvez, são sensíveis ao sismo.

Os militares espanhóis que estão em Marrocos admitem que é difícil encontrar sobreviventes naquelas condições, precisamente pelo tipo de construção que desmoronou. Essa dificuldade tem a ver, realmente, com o tipo de destroços que ali são encontrados, que aumentam a dificuldade de emissão. Será assim?
É. Basicamente, atualmente, quando dizemos que uma casa é resistente ao sismo, significa que em caso de sismo não mata as pessoas, não colapsa. Pode ficar toda rachada, toda cheia de fendas e deformações, mas não colapsa. As casas que não resistem ao sismo, pura e simplesmente, colapsam. E se as pessoas estiverem lá dentro, morrem. O sismo nas pessoas não faz grande efeito, é como uma travagem de metro, é uma aceleração que sentimos em função da nossa massa, do nosso peso. Com os edifícios é a mesma coisa. Só que como os edifícios não conseguem suportar as acelerações, os edifícios tradicionais colapsam. E ao colapsarem, se forem de pedra, imagine que há uma avalanche de pedras que caem em cima de si, isso é fatal. Portanto, no fundo, é todo o adobe que vai desmoronando e fica em cima das pessoas.

Quando são casas de betão, formam-se os chamados buracos de vida, acho que é assim que se chamam tecnicamente. Neste caso, as casas desfazem-se como um castelo de areia, como estava a dizer, mas pode ainda haver esperança, no caso de Marrocos, tendo em conta aquelas características e a sua experiência no terreno?
É difícil, porque o que acontece normalmente é que a própria ajuda é dificultada devido às acessibilidades. Se houvesse um sismo aqui em Lisboa, por exemplo, a segunda circular ficava inacessível, agora imagine uma estrada em Marrocos, em que com o sismo as pedras da montanha caíram. É difícil, é muito difícil. Os especialistas dizem que temos 72 horas para atuar depois de um sismo, mas eu digo que temos 10 anos antes de um sismo. Temos é de começar já. O sismo é uma viagem: se formos preparados as coisas correm bem, ou menos mal, mas se não formos preparados às vezes pode ser fatal.

Há pouco dizia também, estávamos ainda em off, que no caso de Lisboa há hospitais que também estão em riscos por estas características.
À exceção do Hospital da Luz, que está preparado para o sismo com a melhor tecnologia que existe, o Hospital de São José colapsa, o Hospital de Curry Cabral cai, o Hospital de Santa Maria fica inoperacional. É uma carência brutal de estruturas vitais que vai acontecer logo após o sismo. Não podemos utilizar essas estruturas.

Ou seja, fica tudo em causa do ponto de vista do plano de emergência, sendo que lá dentro estão os médicos e os enfermeiros.
Sim.

Mas é possível fazer alguma coisa com esses edifícios? Reabilitá-los de algum modo? Ou teria de se construir do zero? Para quem nos lê e que não entende destes assuntos, o que era possível fazer?
É possível reabilitar, é possível fazer o retrofit sísmico das construções existentes. Existe um programa de investigação com o Técnico, que se chama Rehab Toolbox, para testar técnicas para reabilitar construções antigas de alvenaria. E há uma série de técnicas para, por exemplo, substituir o reboco do edifício por um reboco armado com rede de carbono que confina a alvenaria e o edifício deixa de colapsar. Não sei se repararam nas imagens que têm ocorrido na comunicação social, mas há muitas pedras por todo o lado. Vocês imaginem que antes das pedras caírem, havia umas redes muito robustas que seguravam as pedras. Se assim fosse, elas não só não caíam, não matavam as pessoas, como a construção ainda lá continuava.

Então, estamos a falar de umas redes parecidas com as que vemos nas autoestradas em alguns locais, que no fundo seguram?
Exatamente. Dentro do reboco, ligadas nas duas faces da alvenaria, passa a ficar a alvenaria confinada e não colapsa. Já se fizeram várias obras no ano passado, fizeram-se três obras que conheço no Algarve, com essa técnica.

Quer dar algum exemplo?
Fizemos, por exemplo, a Junta de Freguesia de Portimão. Era uma construção em taipa, em terra, exatamente como as de Marrocos, feita eventualmente por um árabe, porque o Algarve tem essa influência. Esse edifício, antigo, passou a ser agora a Junta de Freguesia de Portimão e foi feito um retrofit sísmico, por confinamento, com rede de carbono, sem afetar o património. Ou seja, mantém-se lá a construção original, só que é resistente ao sismo. Fizemos uma galeria de arte em Loulé, chama-se Pink Building, que também era um edifício antigo. A partir de agora é obrigatório, sempre que se intervém em obras em que a reabilitação é total ou bastante intrusiva, verificar-se o retrofit sísmico. Então fomos contratados e fizemos esse reforço ao sismo.

Em Portugal isso não está na lei, ou está?
Está, desde janeiro de 2019. Sempre que se faz uma intervenção de reabilitação de uma construção tem de se verificar se ela resiste ao sismo. Depois, existem critérios, enfim, se a intervenção for em mais de 25% da construção, tem de reforçar [a resistência ao] sismo obrigatoriamente.

Portanto, em teoria, temos legislação que previne e prepara as nossas construções. Na prática não sabemos se ela está a ser aplicada, é isso?
Sim, temos. A legislação portuguesa é ótima. Entrou em vigor também agora, salvo erro, em 2021, o Eurocódigo 8, que é a norma mais evoluída em termos mundiais para proteger as construções do sismo, e aí existe essa obrigatoriedade, digamos assim, de olhar ao sismo. Portanto, em termos de legislação, estamos ótimos. Agora temos é de alterar a nossa cultura, a perceção, valorizar isso. Por exemplo, você vai para um hospital ser operado, mas há um sismo e morre. Isso pode evitar-se.

Na sua opinião porque é que não há esse investimento? É muito mais dispendioso fazer esse tipo de edifício ou fazer essa reabilitação porque não tem havido, pelo que vamos sabendo e vendo, essa vontade, não é?
É uma questão cultural, porque nem sequer é muito dispendioso. Numa obra de reabilitação profunda, a parte do reforço do sismo custaria mais 15%, ou seja não é proibitivo. É mais uma questão cultural. Compramos uma casa velha ao preço de uma casa nova, achamos que o sismo não vai acontecer. E pode nunca acontecer, não estou a dizer que vai haver um sismo. Mas vocês vejam, ele parece que vem aí, não é? Vem da Turquia, agora está em Marrocos, e da Turquia a Marrocos é mais longe do que Marrocos a Lisboa. Então porque é que ele não vem para aqui?

Ainda na questão do património, não devia ser o Estado a dar o exemplo e a mandar fazer reconstrução nos seus próprios edifícios, nomeadamente nos essenciais, como hospitais, maternidades, centros de saúde, edifícios governamentais até, para prevenir e proteger de um sismo que mais tarde ou mais cedo vai acontecer?
Acho que sim. E hoje, por exemplo, com essa frase pode estar a salvar pessoas. Porque imagine, por exemplo, o Hospital de São José ou o Hospital Curry Cabral - são estruturas vitais. Ou seja, a vida depende dessas estruturas. O Hospital de Santa Maria é outra estrutura vital. Ou as acessibilidades. Tudo isso é possível fazer. Já fiz vários reforços ao sismo de viadutos e de pontes. É possível, fácil e há tempo. Quando chegarmos à contagem das 72 horas depois do sismo é que vamos ter dificuldade em fazer qualquer coisa que seja útil. Mas podemos ter 72 horas, mais um ano ou mais dois anos. Então, se decidirmos começar a contar o tempo hoje já não é aquele drama de termos 72 horas. Não, temos 10 anos mais 72 horas. Não se esqueçam das 72 horas, porque de facto é importante, mas o tempo não é 72 horas. 72 horas é quando acabou a contagem do nosso tempo.

Tinha dito há pouco que já fez várias obras dessas. E se bem estou informada, está neste momento a reforçar a Ponte 25 de Abril. Também já fez o reforço do viaduto do Fonte Nova, aqui bem perto, em Benfica, para o tornar mais seguro. Estas obras, sendo públicas, aconteceram apenas no limite do fio da navalha? Houve aqui uma cultura diferente?
A Ponte 25 de Abril não tem nada a ver com o sismo. É uma obra de manutenção que era necessária, é uma reabilitação - a substituição de uma série de elementos que estavam desgastados. E felizmente, porque todas as estruturas vão envelhecendo. E à medida que envelhecem vão perdendo resistência, robustez, portanto, sempre que se fizer uma reabilitação de uma estrutura com a Ponte 25 de Abril, está-se a salvar muitas vidas, de certeza. O viaduto do Fonte Nova é diferente. O viaduto do Fonte Nova, se houvesse um sismo, colapsava, caía. Agora, se houver um sismo nem sequer é afetado, porque se fez o isolamento de base, significa que cortaram-se os pilares e isolou-se o viaduto da terra. Ou seja, se houver um sismo, ele continua a ser funcional. Foi uma iniciativa da Câmara de Lisboa, e ótima, há cinco anos. Se replicassem isso nos outros viadutos, imagino, podia-se chegar, por exemplo, do aeroporto até ao Hospital da Luz. O Hospital da Luz está a funcionar perfeitamente, mas ninguém lá vai chegar, porque os acessos ao Hospital da Luz vão ser destruídos pelo sismo.

Enquanto especialista, julga que os governantes, os atuais, os anteriores, os que hão de vir, têm noção disso que está a dizer, ou comportam-se como os cidadãos normais portugueses, que é, "está bem, mas não vai haver sismo".
Não sei, acho que é mais isso. Os governantes são pessoas, pelo menos os que conheço, comuns e têm a mesma perceção das outras pessoas. O sismo cá em Portugal é traiçoeiro. Ou seja, o último sismo importante que houve foi em 1969, os meus amigos não tinham nascido nessa altura, vocês não se lembram de um sismo. Eu, por acaso, já tinha nascido e lembro-me que aquilo foi um bocado violento. Agora, nunca mais houve sismos. Então, ok, isso um dia há de aparecer, mas a gente até lá vai se safar, mas o problema é que não é assim que as coisas funcionam. No dia em que acontecer temos de estar preparados, se não estivermos é fatal. Até já pensei em inventar uma cama à prova de sismo, que era uma cama de dossel, daquelas tradicionais, só que feita em aço. Se houver um sismo, ficamos dentro de uma bolha e por dois mil euros não se morre. Já pensei em fazer isso, porque a quantidade de prédios que vão colapsar em Lisboa é assustadora. Assustadora do tipo metade dos prédios que existem em Lisboa não resistem seguramente a um sismo.

Esta conversa alerta certamente muitas consciências para este tema do sismo. No caso de Marrocos, que já aceitou a ajuda de quatro países para enviar equipas de busca e salvamento - Espanha, Reino Unido, Qatar e Emirados Árabes Unidos -, nestas situações, no seu entender e tendo em conta o seu conhecimento, onde é que os parceiros internacionais podem ser mais úteis? Onde é que podem ajudar melhor, mais rápido, perante uma situação destas?
Depois do sismo não há nada a fazer, mentalizem-se, em lado nenhum. Depois do sismo é uma sorte. Imagine, o sismo de 1755 aconteceu no dia 1 de novembro de 1755, de manhã, e as pessoas estavam na missa, então morreram dentro das igrejas. No sismo de Marrocos, o que é que aconteceu? Foi às onze da noite, as pessoas estavam a dormir. Morreram, coitados, nem sequer se aperceberam. Passaram uns segundos, caiu-lhes uma pedra em cima da cabeça e morreram. O que é que se vai fazer? Tudo bem, mandam-se os cães, e tudo certo com isso, mas deveria ter sido feito antes de eles morrerem. Ter estratégias é o que deviam ter feito, em Marrocos ou em qualquer sítio do mundo. Não sei se cá em Portugal existem estratégias, conheço algumas, mas assim sérias, não estamos a ver serem gastos milhões com isso. Portanto, temos recursos, temos dinheiro para salvaguardar a vida humana. Pelo menos acho que existem recursos. Era aplicar isso com tempo, antes do sismo, muito antes do sismo.

Por isso é que lhe perguntei se acha que os nossos governantes estão conscientes da gravidade da questão e já agora se estão conscientes de que hoje, com tecnologia, é possível antecipar essa catástrofe de que está aqui a falar?
Não lhe sei dizer. Nunca aceitaria ser governante, porque isso é uma coisa difícil, complicada. Eles são sempre alvos de muita crítica, muita coisa. Não sei se eles estão conscientes. Não sei se há alguém que diz "deixa os indivíduos morrer" ou se há quem diga "temos mais um ano". Não sei. O que sei, e estou atento a isso porque sou engenheiro civil e faço muitas obras de retrofit sísmico, é que há muito poucas estratégias.

E ao nível da prevenção, havia certos exercícios nas escolas para nos darem alguns ensinamentos de como lidar com isso. Estará a proteção civil também a atuar pedagogicamente nesta altura ou perdeu-se um pouco essa escola, essa pedagogia nos últimos anos?
Acho que ainda fazem. Pelo menos, tenho filhas miúdas e elas contam que na escola fazem, mas se calhar não é suficiente. Agora se houver um sismo aqui, provavelmente não vai saber dizer o que tem de fazer, não é? Isso é uma conversa de sobrevivência que era importante. As pessoas saberem para onde é que vão, o que é que têm com elas, o que é que deviam ter, pronto, há muita coisa que podia ser melhorada, com certeza.

E para quem nos lê, quer deixar aqui dois ou três conselhos do que é que deveriam ter ou para onde é que devem ir? Debaixo da ombreira da porta ainda faz sentido?
A ombreira da porta, nessas construções de que falámos cai tudo, mas a última coisa a cair é a ombreira da porta. Portanto faz sentido ainda. Há muitas construções antigas, mas cada pessoa devia saber na sua casa o que é que devia ter. Eu, por exemplo, tenho no meu carro uma mochila para me defender do sismo, com um rádio a pilhas e um apito. Por exemplo, em 1995 houve um grande sismo em Kobe, no Japão, e depois fizeram um inquérito aos sobreviventes e perguntaram o que é que gostariam de ter consigo no próximo sismo e grande parte das pessoas responderam que queriam um apito para poderem ser sinalizadas. Ou seja, para apitar simplesmente e serem encontradas. Não custa muito andar com um apito. Pronto, às vezes ando com o meu apito e acham que sou maluquinho, mas é por uma razão séria.

O que é que tem mais a sua mochila, além do rádio a pilhas e do apito?
As coisas essenciais para a sobrevivência das pessoas, por exemplo, um kit de primeiros socorros, uma muda de roupa. Se houver um sismo em Lisboa, sabe o que é que acontece? Por exemplo, durante duas semanas não vai haver água nem luz. Imagine que está na sua casa e a sua casa não colapsa. Tem água em casa para duas semanas? Pode guardar lá a água. São coisas básicas que as pessoas podiam adotar. Imagine que fica debaixo dos escombros: se tiver água, dura 72 horas ou mais, mas se não tiver água, morre de sede. Pode nem ser do sismo, é da sede. Há muitas coisas. Basta-nos visualizar ou imaginar o que é um sismo.

A questão é que parece-me que a sociedade não está sensibilizada, os políticos não estão sensibilizados e a qualquer altura podemos ter um sismo. Tem alguma previsão, uma vez que pensa nisso e estuda essas matérias?
​​​​​​​É muito difícil. A intensidade do sismo de 1755 foi mil vezes superior ao sismo da Turquia, não sei se tem a noção do que é mil vezes. Eu não consigo perceber bem, mas é muito. E o sismo da Turquia, vocês viram os estragos. E aquilo não avisa, porque o sismo é como se fosse uma mola, um dia salta. O sismo de 1755, que é o sismo regulamentar em Portugal, foi considerado o fenómeno mais violento da história da humanidade. Houve uns americanos que andaram a ver e conseguiram estabelecer isso, se não é o fenómeno mais violento, é dos mais violentos. Ou seja, é mesmo muito mau. Não estamos nada preparados para isto, é como andar ao sol sem protetor. Por exemplo, quando era miúdo não usava protetor solar, não se usava, mas atualmente já ponho. Agora sabemos que temos de nos proteger antes do cancro da pele, não é depois. Então, antes de morrer de um sismo, tem de se proteger. Os governantes acho que eram as pessoas indicadas para saber isto, porque eles podem decidir se as pessoas valem ou não valem a pena salvar. Por exemplo, se gastarem três mil milhões de euros, e vocês sabem onde é que se gastou ultimamente três mil milhões de euros, mas se gastarem três mil milhões de euros, se calhar Lisboa fica preparada para um sismo, se não gastarem, podem morrer 200, 300 mil pessoas tranquilamente.

E quais são as regiões mais vulneráveis em Portugal?
Lisboa e Vale do Tejo é muito vulnerável. Há dois sismos em Portugal, de referência, um tem o epicentro a 200 quilómetros a sul de Sagres. Esse, quando chega a Lisboa, já vem cansado, porque destrói primeiro o Algarve e o Alentejo. O sismo de 1755 teve o epicentro a 500 quilómetros de Lisboa, mas o sismo agora de Marraquexe teve o epicentro a 70 quilómetros da cidade e vejam lá o estrago. O sismo de Lisboa teve o epicentro a 500 quilómetros de Lisboa, mesmo assim, destruiu a cidade. O outro sismo regulamentar chama-se o sismo de Benavente, foi o tal de 1969. Teve o epicentro, mais ou menos a 40 ou 50 quilómetros. Qualquer um deles é mau, porque o de Benavente tem uma magnitude menor, mas é mais perto e mais superficial. O do Algarve, embora tenha o epicentro mais profundo e mais longe, é brutalmente mais violento. São as placas, digamos que é a fronteira entre as placas africana e europeia, que são grandes massas de terra que andam a conflituar, sabem que os continentes se movimentam e isso tudo provoca estes atritos, estas libertações de energia. Portanto, nós em Lisboa, não conheço a regulamentação de todos os países, mas de todos os que conheço, o sismo a considerar em Lisboa é dos mais violentos que existe no mundo. A nossa sismicidade é a mais violenta com uma periodicidade baixa, portanto, é uma armadilha.

Sabemos que vai acontecer, sabemos que vai ser grande, não sabemos quando...
Não sabemos quando. Não sei quanto dinheiro é que vamos gastar depois do sismo, mas antes é muito menos. Imagina o que é reforçar uma estrutura e evitar que ela caia? Está-se mesmo a ver que é mais barato do que andar a apanhar os bocadinhos e fazer de novo. Em Marrocos o que é que eles vão fazer? Vão construir tudo de novo, aquilo não há hipótese ali de reabilitar nada. Reabilitar é se as coisas ainda ficarem em pé, não é? Eles vão ter de reconstruir aquelas vilas que foram completamente destruídas, mas em Marraquexe há muitos prédios que nem sequer foram afetados. Podem mostrar isso para servir de exemplo. Pode-se fazer muita coisa, porque em Marraquexe há muitos prédios que não tiveram absolutamente nada, ao lado de prédios que desapareceram. Dá para desconfiar, não é? Alguma coisa aconteceu ali. E nós sabemos o que é que aconteceu ali - os prédios que não caíram foram construídos de acordo com as regras que conhecemos atualmente.

No início, disse que a nossa legislação é mais completa e inovadora, mas que não há quem a fiscalize. Ou seja, quando um projeto entra numa câmara municipal ou quando são as próprias instituições públicas a fazerem obras, os hospitais, as escolas, o que seja, não há forma de saber se foi feita a construção ou a reconfiguração de acordo com os padrões?
Atualmente não há obrigação da fiscalização, pelo menos nas obras correntes. Se forem obras muito importantes, uma ponte ou assim, é normal que se faça a revisão de projeto e a fiscalização. As obras públicas, todas elas têm fiscalização, mas quando dizem isso é em relação às obras particulares onde basta o termo de responsabilidade do engenheiro que fez o cálculo para a coisa seguir. E pronto, agora é uma questão de acreditar ou não. Pode acontecer que resista ou pode acontecer que não resista.

Mas por sistema, acredita que nas obras novas ou nas reabilitações estamos a fazer as coisas bem, ou pelo contrário, estamos só a dizer que as fizemos sem as termos feito?
Trabalho mais nas obras públicas do que nas obras particulares. Nas obras públicas, em geral, cumpre-se a legislação. Nas obras particulares, aí existe a omissão, está a ver? Ninguém fiscaliza, de facto. Não quero desconfiar de ninguém, mas como não fiscalizam, não sabem se está bem ou se está mal.

Portanto, não pode pôr as mãos no fogo?
Não posso pôr as mãos no fogo, nem posso dizer que não está bem. Pode estar ou não.

Estes fenómenos extremos têm vindo a aumentar também com as alterações climáticas. Enfim, ainda no dia em que estamos a gravar, o Parlamento Europeu debateu toda a manhã o clima extremo e os seus efeitos. Na opinião de um técnico como o senhor engenheiro, que medidas, a nível europeu, é que poderiam também ser tomadas para prevenir efeitos das alterações climáticas que levam a desastres como este de Marrocos? O que é que a nível europeu poderia ser pensado?
Acho que no norte da Europa não há sismos, na Alemanha, em França. Existem duas realidades. Existe a realidade de Portugal, Espanha e Itália e o norte de África, onde o sismo é um fenómeno natural. E sabemos que um fenómeno natural provoca danos mortais. Portanto, acho que em termos de legislação, e não conheço a legislação europeia, mas quer dizer, acho que fazia sentido se houvesse uma atenção a prevenir esses fenómenos naturais. Quer seja chuva, quer seja ciclones, calor extremo, secas, o sismo é um fenómeno natural. Não há nada de não natural num sismo. O sismo é a coisa mais natural que há, nem sequer é afetado, se calhar, pela atividade humana. Isto é tudo uma questão de metodologia e de cultura, talvez. Temos de olhar para o sismo como uma viagem e temos de preparar a viagem. Aparecem não sei quantos especialistas, todos eles sabem muito do assunto, mas não põem isso em prática. Vocês imaginem que vamos preparar o Hospital de São José para um sismo. Sim senhor, ao fim de um ano pode haver o sismo que houver, mas pelo menos ninguém morre lá dentro. Ou a Segunda Circular, vamos preparar a segunda circular para o sismo. Nós reparámos o viaduto do Fonte Nova em seis meses. Agora quando começar a contar as 72 horas, se calhar até já estou morto. E pronto, aí já não posso ajudar.

Do ponto de vista dos edifícios e da sua reabilitação, que é uma área que conhece bem, as ondas de calor, as chuvas torrenciais, os incêndios, tudo isto imagino que seja um desafio para as infraestruturas. E isto tem de ver também com a preocupação do Parlamento Europeu de começar a discutir o clima extremo. Que principais dificuldades é que antevê também do ponto de vista dos edifícios, tendo em conta estes outros fenómenos naturais?
Em geral, as obras causam transtorno. Quando fazemos obras em casa temos muito pó, é uma chatice e faz barulho. Isso tudo são fatores que afastam as pessoas. Às vezes as pessoas adiam ir ao médico porque têm medo de saber se estão doentes ou têm medo de ser anestesiadas. A natureza humana é mesmo assim, mas nesta questão é pensarmos que tem de ser.

Acha que os autarcas deixam de fazer estas obras porque não são medidas populares?
Não sei. Você imagine um autarca que diga "as escolas do meu concelho não matam" e punham placas nas escolas a dizer "esta escola não mata". Agora veja se não era, politicamente falando, um autarca desses apanhar a ideia podendo fazer os cartazes?

É possível converter uma obra destas em algo popular e bem aceite pelas populações, é isso que está a dizer?
Não acha que é? Alguém que diga que salvou 50 mil vidas, fica bem. A Lista de Schindler mostra isso, não ficou conhecido por ser alto, baixo, magro ou gordo, mas sim porque salvou muitas pessoas. Se algum político decidisse salvar pessoas desta maneira, imagino que depois a seguir vinha o sismo e toda a gente se ia lembrar do senhor X que salvou não sei quantos hospitais de cair.

Que conselho daria a Carlos Moedas, neste caso o presidente da Câmara de Lisboa?
Carlos Moedas é um notável engenheiro civil, portanto, não lhe dou conselho nenhum. Ele só não faz se não quiser, ele é formado nisto.

Sim, mas está há muitos anos na política.
Mas ele é inteligentíssimo. Mesmo na política não deve ter perdido o que lhe ensinaram lá no Técnico. Ele foi aluno do Técnico, um bocadinho mais novo do que eu, e sabe muito bem o que estou a dizer. Pode ter impedimentos que não conheço, não quero dar conselhos aos políticos, Deus me livre, nem gosto de os dar às minhas filhas. Mas isto é importante para as pessoas, o saberem que alguém pode fazer alguma coisa por elas, e essas pessoas são os políticos, pois estão lá para isso, penso eu. Não sei qual é o rácio entre arranjar uma ponte e salvar uma vida, mas vamos dizer que se salva uma vida por cada ponte ou por cada escola. Não sei quanto é que vale uma vida. Devem ter lá uma tabela, não é? E depois começam a ver quantas vidas é que vale a pena salvar, começando já. Se não começarem já, se calhar não salvam ninguém. Portanto, se tivesse de deixar uma mensagem, seria começar já e preparar Lisboa para um sismo. Fazem greves por tudo e manifestações, mas nunca vi ninguém fazer uma manifestação a dizer "quero o direito à vida após um sismo". Porque é que não fazem isso?

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