Mensagem é "do mais nobre e justo que há", diz Câmara. Foi retirada para "não se estragar"

Câmara diz que só tirou cartaz porque não tinha contacto dos promotores, mas troca de mails com município desmente essa versão. Estrutura que Câmara diz ser ilegal estava desde 2014 no local. Amnistia Internacional estranha "pressa" na remoção e diz que lei não foi cumprida; Isaltino fala de "episódio lamentável" que "mancha a causa".
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"Aquela mensagem não paga nada, tem direito a ser colocada no espaço público sem pagar. Só tinha de ser comunicada nos termos da lei."

Um dia depois de a Polícia Municipal de Oeiras ter retirado de Algés o cartaz ostentando o número de vítimas de abuso sexual estimado pela Comissão Independente nomeada pela Igreja Católica portuguesa, o vice-presidente da autarquia, Francisco Rocha Gonçalves, certifica ao DN que afinal o cartaz, cuja mensagem diz ser "nobre e justa, importantíssima, do mais importante que pode haver", podia ter sido colocado sem qualquer pagamento - como vai acontecer agora, a expensas da CMO. O problema, lamenta, foi não ter havido qualquer contacto dos promotores da iniciativa com os serviços camarários.

"Perguntámos aos serviços se havia algum pedido e disseram que não", garante Rocha Gonçalves, que assume ter dado a ordem de remoção, mas só depois de saber que não houvera contacto dos promotores com a Câmara Municipal de Oeiras (CMO).

Sucede que houve - o DN teve acesso aos contactos, por escrito, que foram efetuados com a autarquia, e que se iniciaram a 31 de julho com um pedido de esclarecimento aos serviços municipais sobre os passos para a colocação do cartaz, tendo aqueles, ironicamente, enviado uma resposta a pedir as dimensões da tela a 2 de agosto às 15.04, quando esta tela já removida pela polícia.

Perante esta informação que lhe é comunicada pelo jornal, o vice-presidente espanta-se: "Não sabia que havia um pedido, mas se enviaram o email de madrugada por exemplo não houve tempo para responder. Só tinha de ser comunicado tempestivamente e nos termos da lei."

Nos termos da lei, porém, como sublinha ao DN Inês Subtil, da Amnistia Internacional, que enviou um pedido de esclarecimento à CMO para perceber melhor aquilo que vê como um possível atentado à liberdade de expressão, "a Câmara teria, antes de remover a tela, de ouvir primeiro os interessados. Agora a CMO está a falar com o grupo para recolocar o cartaz, mas por que não o fez antes?"

Uma pergunta que o DN colocou ao vice-presidente. Este responde que não sabia quem eram os promotores. Mas não só houvera pedido de colocação do cartaz naquele local como o contacto do grupo - o website onossomemorial.pt - estava na tela. Francisco Rocha Gonçalves não sabe explicar por que motivo não se usou esse contacto, mas assegura que o problema nunca foi o cartaz: "Aquele suporte é ilegal. A empresa que o colocou, que nem sabemos qual é - não tem o nome no suporte - nem sequer está licenciada. Retirámos a lona [o cartaz] para que não se estragasse quando os nossos serviços fossem desmontar a estrutura."

Se a mensagem é considerada pela autarquia como tão importante, porém, e a CMO declara que nem tinha de pagar nada para estar no espaço público - por, depreende-se, não se tratar de publicidade mas entrar na categoria de propaganda política, que é livre - qual o sentido de correr a retirá-la, e logo num dia em que Lisboa recebia a visita do papa? Não anteciparam que tal iria ser visto como um ato de censura?

O edil aflige-se com a ideia de que a CMO possa ser considerada censora: "A liberdade de expressão não pode estar em causa, temos o maior respeito pela liberdade de expressão. Aliás quer pessoal, através da minha coluna no jornal Nascer do Sol, quer institucionalmente, por meio de uma exposição que organizámos, a CMO já criticou a Igreja Católica por causa dos abusos sexuais." Mas, prossegue este autarca com formação jurídica, "a lei não é derrogada por a causa ser nobre e justa. A mensagem não deve ser conspurcada por uma violação da lei - por uma empresa que age de modo pirata, que comete uma burla ao receber dinheiro para colocar um cartaz."

Telma Tavares, uma das promotoras da iniciativa, tem incredulidade na voz quando confrontada com as declarações de Rocha Gonçalves. "A empresa [que não quer identificar] tem aquela estrutura ali há anos - há imagens do Google Earth que mostram que está lá pelo menos desde 2014 - e garante-nos que está legal. Vários partidos a usaram, tem lá ainda um cartaz das eleições de 2022, que estava por baixo do nosso. Além de que, se era a estrutura que estava supostamente ilegal, como se compreende que tenham ido a correr remover o cartaz e deixado a estrutura? Só ao fim da tarde desta quinta-feira a foram desmontar, estando a montar outra no mesmo sítio para pôr o nosso cartaz, depois de nos terem dito que o iam colocar noutro local. Isto é tudo muito confuso, e mais ainda porque supostamente a propaganda política não carece de licenciamento municipal - só efetuámos o pedido à CMO para estarmos mais seguros."

Também para a Amnistia Internacional, representada por Inês Subtil, todo o processo surge como bizarro, "desde logo pelo facto de no site da CMO não constarem os procedimentos necessários para que um grupo de cidadãos possa colocar um cartaz, fazendo uso da liberdade de expressão que lhe é garantida pela Constituição. Assim, foram obrigados a fazer um pedido de licenciamento para colocação de mensagem publicitária, o que não faz qualquer sentido no caso."

Demonstrar a dimensão do imbróglio terá sido precisamente o intento de Carla Castelo, vereadora independente da CMO eleita pela coligação Evoluir Oeiras (BE, Livre e Volt Portugal), ao apresentar esta quinta-feira um requerimento dirigido à presidência da autarquia. Pede a esta que clarifique, "com Parecer jurídico da CMO, a base legal para a remoção do cartaz 'This Is Our Memorial', poucas horas depois de ter sido afixado, dia 2 de agosto de 2023, na estrutura que está debaixo do viaduto em Algés, frente ao terminal de autocarros", e esclareça "porque é que a estrutura (...) não foi removida, bem como, clarificada a situação da referida estrutura, que está há vários anos naquele local, tendo sido usada, inclusive, para a divulgação de diferentes mensagens políticas, nomeadamente no âmbito de diferentes campanhas eleitorais."

Mas eis que a meio da noite desta quinta-feira, em estilo contra-ataque, o presidente da CMO, Isaltino Morais - que quando confrontado pelo DN, no dia anterior, com a remoção do cartaz, disse não saber de nada e não querer comentar -, exara um comunicado.

Reiterando o que o seu vice-presidente já afirmara - "O Município não foi contactado pela associação que mandou colocar aquela tela, tendo apenas tido conhecimento após a sua colocação. Caso tivéssemos sido contactados, teríamos disponibilizado um outdoor da rede municipal para o efeito. Fomos surpreendidos por interpretações enviesadas que alguns faziam, colocando a discussão em torno da mensagem, acusando o Município de ter tomado um ato de censura" - Isaltino Morais vira o caso ao contrário: "Este foi um episódio lamentável, que mancha uma causa justa e digna, a da defesa das vítimas da pedofilia. Da nossa parte, as vítimas estão acima de qualquer outra questão. Cumprida a Lei, associamo-nos de todo o coração à mensagem que a aquela lona pretende transmitir."

Recorde-se que esta quarta-feira Filipa Almeida, da associação Coração Silenciado, que reúne vítimas de abuso sexual na Igreja Católica nacional, exprimiu ao DN o seu choque e dor perante a atuação da CMO. "Não percebo. Aquele não era um cartaz que incitasse ao ódio, à violência. Não há nenhuma razão moral para tirar aquele cartaz, e se fosse por razões legais teriam tirado os outros dois [refere-se aos cartazes idênticos colocados em Loures e Lisboa]", disse esta mulher de 43 anos. "Tirar um cartaz que foi feito por um grupo de pessoas para nos homenagear, para homenagear quem foi abusado em criança, é dizer que continuamos a não valer nada. Como vítima magoa-me muito que tenham retirado o cartaz. É uma falta de respeito, sinto-me desrespeitada por esta decisão que a Câmara de Oeiras tomou."

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