Coube ao primeiro-ministro Luís Montenegro apresentar o Plano de Emergência e de Transformação para a Saúde.
Coube ao primeiro-ministro Luís Montenegro apresentar o Plano de Emergência e de Transformação para a Saúde.FILIPE AMORIM/LUSA

Medidas do Governo “deixam dúvidas” e “receios”. “Com que médicos vão fazer isto?”

Um Plano de Emergência e de Transformação para a Saúde com cinco eixos, mais de 50 medidas, que envolvem linhas de financiamento, reforço de serviços e criação de novos, requalificação de instalações e uma comissão independente para acompanhar a execução.
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O primeiro-ministro Luís Montenegro começou esta quarta-feira a apresentação da nova estratégia para mudar o Serviço Nacional de Saúde (SNS) com um ponto da situação: “O ponto de partida é muito problemático.” Para logo de seguida a ministra dar o contexto desta afirmação com números, que vão desde 1,7 milhões de utentes sem médicos de família, mais de 266 mil à espera de uma cirurgia, mais de 74 mil já fora do tempo adequado, sendo que destes nove mil são doentes oncológicos, e quase 900 mil à espera de uma primeira consulta. Os números levaram Luís Montenegro a dizer que “o SNS precisa de outra gestão”, porque a prioridade das prioridades são “os cidadãos”. E enquanto uns o usam “como bandeira política, para nós (governo), é um instrumento para dar resposta aos cidadãos”. A ministra Ana Paula Martins foi mais longe, referindo que a prioridade das prioridades são “as pessoas” e os “profissionais”, porque sem estes “não há cuidados, não há SNS nem plano de transformação da Saúde”.

Um Plano de Emergência e de Transformação para a Saúde (PETS) que assenta em “cinco eixos estratégicos”, 16 programas e 54 medidas, cujos resultados têm de ser obtidos em três meses, até ao final de 2024 ou até daqui a dois anos, 2026. O objetivo é que a resposta assente na capacidade do setor público. “É esgotar a capacidade do SNS”, sublinhou o primeiro-ministro, na resposta aos seus problemas, mas com os setores privado e social a funcionarem em complementaridade. As medidas visam a recuperação das listas de espera, uma nova organização de atendimento para os serviços de obstetrícia, com um novo modelo de referenciação para grávidas e reforço da Linha SNS24, novo funcionamento dos serviços de urgência e dos cuidados primários e reforço dos cuidados na área da Saúde Mental, sendo uma das primeiras medidas nesta área a contratação de mais 100 psicólogos para se conseguir dar resposta às necessidades de consulta da população, já que, e como contextualizou Ana Paula Martins, a média de pessoas com depressão em Portugal é de 12,2%, quando a média europeia é de 7,2%. Para este PETS avançar vão ter de ser aprovados vários diplomas e a ministra anunciou também que a sua execução vai ser acompanhada por uma comissão independente que será nomeada em breve. 

Mas para quem está no terreno, e sobretudo na área médica, a primeira questão que surge é: “Com que médicos vão fazer isto tudo?”. E, do lado dos sindicatos, as críticas não se fizeram, das associações que representam as especialidades previstas neste plano também não, mas há quem nele veja pontos “positivos”. O bastonário dos médicos, Carlos Cortes, por exemplo, elogiou o plano considerando que o Governo definiu o “SNS como prioridade”. O secretário-geral do Sindicato Independente dos Médicos enumerou pontos positivos e negativos e a Federação Nacional dos Médicos (Fnam) assumiu que esta nova estratégia “é uma mão cheia de nada”, que incentiva apenas “ao trabalho extraordinário e precário”.

O presidente da Associação Portuguesa de Medicina Geral e Familiar diz que ainda “temos muitas dúvidas e receios”. Do lado político, o PS e o PCP foram os primeiros a mostrar “profunda desilusão”, como referiu Pedro Nuno Santos, ou, no caso dos comunistas, ou a acusar o Governo de “querer degradar ainda mais o SNS”.

Fnam crítica, SIM cético mas com pontos positivos

Ao DN, a presidente da Fnam, Joana Bordalo e Sá, assumiu que, a partir daqui, a estrutura sindical que dirige vai exigir na mesa de negociação que sejam contempladas as propostas que apresentou no sentido da valorização das grelhas salariais e das condições de trabalho, porque, sublinha, “há dinheiro e linhas de financiamento para mais trabalho, mais incentivos e mais precariedade no trabalho, mas não há para melhorar a valorização do base dos médicos. E é este ciclo que tem de se inverter”. Para a médica as medidas apresentadas “são temporárias e têm por base acudir a um SNS que está em rutura, mas baseiam-se, acima de tudo, em incentivos aos profissionais, que são incertos e baratos, agravando ainda mais as condições de trabalho e as desigualdades nas equipas”. A dirigente sindical chama a atenção para o facto de o governo estar a querer estimular até o “trabalho precário”, com a possibilidade de os médicos do quadro de uma instituição poderem passar recibos verdes”. Deste ponto de vista, “com que médicos é que vão fazer este plano?”

A mesma questão é colocada pelo secretário-geral do SIM, Nuno Rodrigues, assumindo, no entanto, que nada tem a opor se tal for feito de forma voluntária. “Se as medidas forem voluntárias, nada temos a opor que um médico queira aumentar as suas consultas ou cirurgias ou a sua carteira de doentes voluntariamente. Até estamos a favor, porque isso vai permitir mais acesso dos utentes a cuidados”. Mas, sublinha também, “isto não pode ser feito sem haver uma valorização do ponto de vista da grelha salarial e da avaliação do desempenho, como temos vindo a reivindicar”.

No meio das mais de 50 medidas, Nuno Rodrigues admite estar cético em relação a alguns pontos, mas enumera, pelo menos, dois que considera positivos, um deles a criação dos centros de avaliação médica psicológica, que, diz, “vêm retirar imensa carga burocrática aos médicos de família, deixando-lhes mais tempo para fazer mais medicina”. Ou seja, ao passar estas tarefas para estes centros que vão estar a funcionar nos setores social e privado “o utente deixa de ir ao médico de família para pedir um atestado médico para uma carta de condução, para uma carta de caçador, para uma junta médica, etc”. O outro ponto positivo “são as convenções na área da obstetrícia com o setor social e privado para atender as grávidas”. O ponto negativo tem a ver com a criação dos centros de atendimento clínico, os quais, segundo o governo, servirão para dar resposta aos utentes sem médico de família, permitindo-lhes uma consulta, mas o secretário-geral do SIM considera que “é só mais estrutura e não sabemos com que médicos vai funcionar”, criticando também o financiamento para reforço das teleconsultas, “nem tudo se resolve desta maneira”.

Médicos de família com muitas “dúvidas”

Um dos eixos estratégicos deste PETS são os cuidados primários e a medicina de proximidade, tendo a própria ministra assumindo que uma das medidas mais difíceis será a de dar um médico de família a cada utente. No entanto, sublinhou que tudo será feito para dar resposta a estes utentes. “Não damos médico, mas damos consultas”, afirmou até o primeiro-ministro. Mas a primeira pergunta do presidente da Associação Portuguesa de Medicina Geral e Familiar (APGF), Nuno Jacinto, é também: “Com que médicos vão fazer este plano?”. “A perspetiva que nos foi dada é que a aposta vai no sentido de esgotar ao máximo a capacidade do SNS, mas o grande problema é que na maioria das unidades do SNS essa capacidade já está esgotada. Portanto, aqui, só há um caminho: aumentar o número de médicos e de profissionais no SNS através de condições de trabalho e salariais mais atrativas”.

O médico critica mesmo o facto de se falar na priorização do “atendimento aos utentes sem médicos e dos grupos vulneráveis”. “Vamos ser sinceros, se essa capacidade existisse esses doentes já estavam a ser vistos e acompanhados. Portanto, fala-se de que capacidade? Isto é colocar os médicos a fazer mais”. No que toca à criação dos centros de atendimento clínico, Nuno Jacinto sublinhou que a questão é a mesma: “A capacidade do SNS”. “Com que profissionais vamos fazer isto? Não só médico, mas também enfermeiros e secretários clínicos. Vamos buscar mais profissionais a outros setores ou vamos retirar carga horária a quem lá está, diminuindo as suas funções na atividade programada?”

Para o presidente da APMGF “este plano deixa-nos algumas dúvidas e receios. É certo que a ministra referiu querer valorizar os profissionais, tê-los satisfeitos e a trabalhar com qualidade, pode ser que ainda se venha a esclarecer mais alguma coisa nesse sentido”. Mas há um ponto positivo u refere, que vai para o lançamento de um concurso com mais 900 vagas para a especialidade.

Um Plano de Emergência e Transformação da Saúde era uma promessa eleitoral para cumprir em 60 dias, o Governo antecipou-a pelo menos em quatro dias e o primeiro-ministro assume que com ele não pretende “vender a ilusão de que as dificuldades se vão resolver rapidamente”, o que se pretende “é começar a dar respostas”. Agora, seguem-se as negociações com os sindicatos.

Do reforço de linhas à criação de novos centros de atendimento

Na sessão de apresentação do Plano de Emergência e Transformação da Saúde, a ministra Ana Paula Martins anunciou que para a sua realização foram consultadas 167 entidades. E no final foram definidos cinco eixos estratégicos e pensadas mais de 54 medidas consideradas urgentes (com resultados a 3 meses), prioritárias (com resultados até final de 2024) e estruturantes (com resultados nos próximos 2 anos). A apoiar estas medidas foram criados 16 programas transversais. E objetivos a atingir: regularizar e orquestrar o acesso aos cuidados, de forma a proporcionar melhores condições para o acompanhamento e tratamento do doente, no tempo clinicamente recomendado; criar um ambiente seguro para o nascimento e oferecer suporte consistente às mulheres durante a gravidez; reforçar a missão do Serviço de Urgência enquanto local para a observação e estabilização das situações clínicas realmente urgentes e emergentes ; solucionar os problemas de acesso aos cuidados de saúde primários, com foco nas populações sem médicos ou enfermeiros de família; assegurar o acesso a serviços habilitados a promover a sua saúde mental, prestar cuidados de qualidade e facilitar a reintegração e a recuperação das pessoas com doença mental. A grande questão é como que estas medidas vão ser implementadas.

1 - Resposta a tempo e horas e acabar com as listas de espera. A prioridade vai para os doentes oncológicos com a criação de um programa OncoStop2024 e com a aproximação do SNS ao cidadão através de um reforço da Linha SNS24.

2 - Bebés e Mães em Segurança. A prioridade é o reencaminhamento seguro de todas as grávidas para lhes dar “a tranquilidade necessária”. Para isto, vai ser criado um canal de atendimento direto para a grávida, através da linha SNS 24 (SNS GRÁVIDA). Vão ser atribuídos incentivos financeiros para aumentar a capacidade de realização de partos e reforçar as convenções com o setor social e privado.

3 - Cuidados urgentes e emergentes. A prioridade são as verdadeiras urgências e para isto o Governo aposta na requalificação das infraestruturas dos Serviços de Urgência, quer gerais quer na área da psiquiatria. E também na criação de Centros de Atendimento Clínico para situações agudas de menor complexidade e urgência clínica e implementação da consulta do dia seguinte nos Cuidados de Saúde Primários para situações agudas de menor complexidade e urgência (o que já se faz).

4 - Saúde próxima familiar. A prioridade é dar um médico a quem precisa, sabendo-se que existem 1,7 milhões de utentes sem médico de família. O objetivo é responder aos utentes em espera com a capacidade atual do setor público, mas ajudada com parcerias com o setor social e a criação de uma linha de atendimento para utentes que necessitem de acesso a médico no dia.

5 - Saúde Mental. A prioridade é melhorar o acesso aos cuidados nesta área através da criação de um programa estruturado de Saúde Mental para as forças de segurança (PSP e GNR). E a aposta na desinstitucionalização de situações crónicas em saúde mental (o que já está previsto na atual lei de saúde mental).

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