Médicos aceitam concursos feitos por hospitais, mas querem "regras claras e transparentes"
O ministro da Saúde anunciou que a forma de contratar médicos vai deixar de ser por concursos nacionais para voltar a ser por "concursos institucionais" - cada hospital poderá contratar os profissionais que necessita com base no seu orçamento. Ao DN, o bastonário da classe e os dois sindicatos disseram aceitar esta mudança, mas desde que os concursos mantenham "caráter nacional" e "regras muito claras", cumprindo as das carreiras.
A equipa que assumiu em setembro a pasta da Saúde completou quatro meses de mandato. E, ao fim deste tempo, o ministro Manuel Pizarro disse aos jornalistas acreditar que é possível o Serviço Nacional de Saúde (SNS) dar melhores respostas e fazer melhor. Num encontro, durante a manhã de ontem, o governante admitiu: "Não desvalorizo nenhum dos problemas do SNS, porque os tem e temos de os reconhecer, mas também nunca menorizo o trabalho imenso que os profissionais no quadro da instituição fazem para atender todos os portugueses, todos os dias e em todos os pontos do país", concluindo: "Isto tem de ser valorizado e não tenho qualquer dúvida de que vamos conseguir melhorar o SNS, fazendo com que responda melhor num futuro próximo".
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Mas para alcançar este resultado, Manuel Pizarro assumiu que vai ser preciso que toda a sua equipa vá ao terreno para dar início a uma iniciativa que chamou de "Saúde Aberta". O objetivo é, precisamente, trabalhar com base num "contacto mais próximo das unidades e dos profissionais do SNS" para identificar "oportunidades de melhoria e promover boas práticas". "Tanto eu como os senhores secretários de Estado iremos passar um dia numa região para ouvir quem lá trabalha o que pensa e que soluções têm também para os problemas. Isto é muito importante", explicou.
Manuel Pizarro deu mesmo o exemplo da visita que tinha feito no dia anterior à região do Alto Alentejo em que lhe foi proposto a criação de Unidades de Saúde Familiar envolvendo vários municípios para melhorar o acesso da população aos cuidados e mitigar a escassez de profissionais. "Uma uma solução na qual não tinha pensado e onde vejo grandes vantagens".
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Em jeito de balanço, disse também que se há mudança introduzida na tutela da saúde nestes quatro meses é o estilo dos protagonistas. "Cada protagonista tem o seu estilo, mas o essencial das medidas que temos vindo a executar são de continuidade, como a implementação da Direção Executiva (DE) do SNS que já vinha da aprovação do Estatuto do SNS, da mesma forma que a negociação dos enfermeiros, que foi um dossier que herdei praticamente na fase final. Mas no SNS é assim mesmo, os processos são de continuidade, ao longo de gerações e quanto menos ruturas, mais seguros estaremos".
Hospitais vão poder lançar concursos para contratar médicos
Mas um dos anúncios feitos ontem é a rutura na forma de contratação dos médicos. Manuel Pizarro foi claro ao dizer que o concurso lançado esta semana para contratar 254 médicos especialistas, 196 para a área da Medicina Geral e Familiar, 24 para a Saúde Pública e 34 para a área hospitalar, "foi o último a nível nacional. A partir daqui, será o regresso ao modelo de concursos institucionais que permitirá aos hospitais e às unidades locais de saúde abrirem concursos à dimensão das suas necessidades e à dimensão da disponibilidade dos médicos, conforme vão acabando a sua formação na especialidade".
Segundo sublinhou Manuel Pizarro, este modelo vigorou durante décadas e foi muito positivo para o SNS. "É um modelo que aproxima os profissionais das unidades de saúde e que se revelou muito mais capaz na fixação de profissionais do que um modelo a nível nacional", embora não rejeite que este modelo também tenha os seus méritos. Ao DN, o bastonário dos médicos e os dirigentes dos dois sindicatos assumem que nada têm a opor a mudança de concursos nacionais para concursos institucionais, mas estes têm de ter na mesma "caráter nacional, para que qualquer médico da especialidade se possa candidatar"e que "as regras têm de ser muito claras", cumprindo as das carreiras.
Ao DN, o bastonário dos médicos defendeu que "os concursos institucionais podem ser importantes, mas não vêm resolver o problema do capital humano que existe no SNS", sublinhando: "O que resolve o problema do capital humano é dar melhores condições de trabalho aos médicos, valorizar e reconhecer o seu trabalho". Portanto, "o Sr. ministro que não pense que é uma mudança no recrutamento dos médicos que vai fazer com que os médicos fiquem no SNS. O Sr. ministro vai ter de mexer nos salários dos médicos. Se não o fizer vai defraudar completamente as expectativas dos médicos e dos sindicatos que estão a negociar com ele várias áreas das carreiras médicas, como as grelhas salariais".
Em relação aos concursos para o recrutamento de médicos, o dirigente da Ordem explicou que a sua opinião é a de que "estes devem ser plurianuais, até podem ser institucionais, mas têm de ter caráter nacional para que, por exemplo, um médico urologista formado em Bragança também possa concorrer a uma vaga lançada pelo Hospital Santa Maria, em Lisboa. O importante é que haja concursos, porque senão está-se a violar as carreiras médicas".
Os dois sindicatos da classe também aceitam que os concursos possam passar a ser institucionais. Ou seja, que cada unidade possa contratar os profissionais de que necessita. A presidente da Federação Nacional dos Médicos (FNAM), Joana Bordalo e Sá, disse ao DN que "os concursos podem ser institucionais, mas têm de ter caráter nacional e não podem obedecer a um perfil. A médica destacou mesmo que "a questão do perfil é extremamente complexa", explicando: "Não aceitamos que uma vaga tenha um perfil, porque este pode ser feito especificamente para a pessoa A, B ou C, o que é injusto e viola as regras da democracia". Ou seja, "os concursos podem ser institucionais, mas de âmbito nacional e devem ter regras muito claras, seguindo as que estão definidas nas carreiras médicas".
Um dos critérios da proposta avançada pelo Ministério da Saúde é, precisamente, o de vagas com perfil. Na documentação dada ontem aos jornalistas pode ler-se: "As vagas destinadas às especialidades hospitalares correspondem a vagas de perfil - posse de condições técnico-profissionais específicas, adquiridas em contexto no internato médico e que respondem a necessidades expressas das unidades hospitalares". O tema, e como o referiu o ministro, não está a ser discutido com os sindicatos, mas a aceitação da medida pode não ser assim tão pacífica, porque estes vão exigir caráter nacional e que não haja vagas com perfil.
A presidente da FNAM assinalou também ao DN, e à semelhança do que fez o bastonário, que "não é uma mudança nos concursos de recrutamento que vai ajudar a fixar médicos no SNS. Isso só pode ser conseguido através da criação de condições dignas de trabalho e salariais. Porque as vagas, até podem ficar desertas. O SNS tem de ser atrativo pelas condições de trabalho, organização de serviços e uma gestão competente, transparente e democrática".
O secretário-geral do Sindicato Independente dos Médicos (SIM) disse mesmo ao DN esperar que o anuncio que "o Sr. ministro fez aos jornalistas seja negociado com os sindicatos e que não esteja a querer esconder com este anúncio o vil ataque às carreiras médicas permitindo que os hospitais estejam a contratar sem concursos. Os concursos têm de ser públicos e com júris médicos que devem ser escrutináveis", argumentou.
Jorge Paulo Roque da Cunha disse estar "totalmente de acordo que os concursos sejam institucionais, feitos pelos hospitais, mas têm de ser por prova pública e com caráter nacional, de forma a que vários concorrentes possam aceder a essa vaga. O processo tem de ser transparente ao invés de dar azo a que questões familiares e de amiguinhos possam levar à contratação de médicos. O nosso ponto é o mérito e a qualidade acima de tudo. De outra forma não temos nada contra os concursos".
Regras têm de ser iguais para maternidades públicas e privadas
No encontro com jornalistas, e a propósito dos constrangimentos na área da obstetrícia-ginecologia. O ministro da Saúde reforçou que a solução encontrada para a área de Lisboa e Vale do Tejo, que assenta na abertura em alternância dos serviços de urgência com mais carência de pessoal se vai manter, pelo menos, até ao final do primeiro trimestre de 2023. O ministro sublinhou que o prolongamento deste modelo de funcionamento, pensado inicialmente para fazer face às necessidades durante o Natal e Ano Novo, foi aceite já esta semana pelos 12 diretores de serviço presentes numa reunião com a DE do SNS. Manuel Pizarro relembrou que nestes dois fins de semana nasceram "849 bebés, 483 no Ano Novo e 366 no Natal nos hospitais do SNS. O plano funcionou bem. As urgências funcionaram de forma ininterrupta e sem intercorrências".
Quanto à possibilidade de se poder encerrar maternidades públicas ou privadas no país, o ministro diz preferir não ter de o fazer, justificando que no caso da região de Lisboa e Vale do Tejo as hipóteses sinalizadas, nomeadamente os serviços dos hospitais de Vila Franca de Xira e do Barreiro, não deverão ser encerrados já que estes se encontram a formar especialistas.
Em relação às maternidades do setor privado, a situação pode ser diferente, pode dar-se o caso de ter de algumas terem de encerrar, já que as regras de qualidade e de segurança têm de ser cumpridas por todas "as maternidades, independentemente de serem públicas ou privadas. Se isto conduz ou não ao encerramento de maternidades privadas, e é provável que conduza, é manifestamente por uma boa causa, que é a proteção das grávidas e dos seus filhos".
O processo de definição de regras para as maternidades é processo que deverá "ficar fechado durante o primeiro trimestre deste ano, porque é um processo que está a ser feito em diálogo com todos os promotores privados", reiterando que "não há nenhuma hostilidade em relação ao setor privado da saúde. Há apenas a necessidade de aplicarmos regras uniformes, que, repito, dizem respeito à qualidade e segurança".
Lisboa e Vale do Tejo vai ter plano específico para os cuidados primários
A região de Lisboa e Vale do Tejo é a que mais tem utentes sem médico de família. Dos mais de 1,2 milhões de utentes nesta situação, cerca de 800 mil residem nesta área. A situação preocupa a tutela e é por aí que as mudanças vão começar nos cuidados primários. O ministro Manuel Pizarro anunciou que nas próximas semanas será apresentado um plano que tem como objetivo "melhorar o acesso aos cuidados de saúde familiar", aumentando o número de utentes com equipa de saúde familiar e ao mesmo tempo "criar mecanismos de acesso para os utentes que ainda não têm médico e que necessitam de cuidados".
Objetivos que, segundo justificou, visam ultrapassar os constrangimentos que se têm vivido nos últimos meses quer nos centros de saúde, com utentes a terem de ir de madrugada para a porta do centro de saúde para arranjar senha e ter uma consulta, que constrangimentos nos serviços de urgência hospitalares. "O nosso objetivo é criar unidades de saúde familiar públicas para todos os portugueses na região de Lisboa e Vale do Tejo e enquanto este objetivo não é possível temos de ter modelos alternativos que permitam às pessoas ter cuidados, não só porque necessitam deles mas também por elas próprias e pela promoção da sua saúde. Isto permitirá um outro aspeto, muito relevante, que é aliviar os serviços de urgência dos hospitais. E para que isto aconteça, as pessoas têm de ter alternativas", rematando que acredita que "somos capazes de fazer melhor".
O ministro assumiu que as Unidades de Saúde Familiar Modelo C podem vir a ser uma das soluções alternativas, podendo estas ser criadas por cooperativas de médicos ou por unidades do setores social e privado, mas que estas ainda estão a ser estudadas do ponto de vista técnico, sendo necessário também perceber qual a abertura de adesão por parte do mercado a esta medida. "Precisamos de saber é exequível, porque é seguramente inútil criar medidas que depois não contribuam de facto para um melhor acesso aos cuidados".
Manuel Pizarro destacou ainda algumas medidas que já estão a funcionar nalguns centros de saúde e que gostaria de ver "replicáveis noutros centros de saúde, como a Via Verde do Seixal, na margem sul, e o projeto da Bata Branca, nalguns concelhos da Margem Sul e em Cascais", reforçando: "Temos de generalizar esses modelos alternativos para que as pessoas não estejam sujeitas a situações indignas".
Apesar de já ter sido anunciado, o titular da pasta da Saúde lembrou que a transição de 28 Unidades de Saúde Familiar Modelo A para Modelo B já permitiu atribuir médico de família a 30 mil utentes e que até ao final do ano haverá um número mais elevado de USF a funcionar em modelo B, sendo que este é o modelo que melhor paga e que mais tem agradado aos profissionais. Mas, até ao final do ano, o ministro também diz que irá avançar com um processo de revisão do modelo de pagamento pelo desempenho em vigor nestas unidades, visando "ajustar o modelo à melhoria contínua da prestação de cuidados aos utentes".
Os números disponibilizados aos jornalistas revelam que das 604 USF do SNS, 290 funcionam como modelo A e de 314 como modelo B, o que representa já uma cobertura de cuidados com este tipo de modelo a 65% da população e o objetivo até final da legislatura é que atinja os 80%.
anamafaldainacio@dn.pt
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