Quando o restaurante Marlene, da chef Marlene Vieira, foi anunciado como uma das novas casas portuguesas com estrela Michelin na gala realizada na noite da última terça-feira (dia 25), no Porto, foi difícil para o público presente não se emocionar. “Não é fácil, acreditem”, disse uma igualmente comovida Marlene Vieira, que recebeu a distinção justamente na cidade que cresceu - nasceu na Maia, em 1980.“Às vezes nós damos voltas e voltas e queremos muitas coisas que não acontecem naquele momento, que acontecem mais tarde e é nesse mais tarde que nós percebemos que era para ser ali. A sensação que eu tive na gala foi que estava guardado para mim na minha terra. Por tudo que ela me deu, acho que é um privilégio podermos agradecer e estarmos na nossa terra a ganhar uma coisa tão importante, isso marca a nossa trajetória. É especial, sem dúvida”, reflete Marlene Vieira em entrevista ao DN. Com uma carreira na gastronomia iniciada aos 12 anos, quando começou a trabalhar num restaurante da sua cidade, Marlene Vieira dedicou uma vida à cozinha, mas não só. O discurso emocionante na Gala Michelin, a segunda realizada exclusivamente com restaurantes portugueses, destacou-se pelo tom empoderado, alertando para as dificuldades das mulheres no meio da gastronomia. Este ano, diga-se, também foi distinguido o restaurante Blind, no Porto, com uma estrela Michelin. A casa conta com outra chef mulher, Rita Magro, que participa do projeto ao lado do head chef Vítor Matos. No ano passado, Rita Magro já havia sido distinguida com o “Prémio Jovem Chef”. Para Marlene Vieira, juntar-se à luta ao lado das mulheres na cozinha é algo mais recente se comparado com os tempos em que dava os primeiros passos no mundo gastronómico. “Numa fase inicial da minha carreira, isso não era algo que me fizesse perder tempo a pensar. O meu foco era efetivamente o trabalho, desenvolver e aperfeiçoar a minha técnica. Ao longo do tempo é que me fui debatendo com alguns obstáculos e apercebendo que o caminho não era feito da mesma maneira entre homens e mulheres, que o nosso esforço nem sempre era reconhecido: a sociedade via aquele lugar como se só pertencesse aos homens. No meu discurso quis falar sobre a dificuldade das mulheres e sobre a força e a coragem que é preciso ter”, sublinha.Um dos momentos altos de seu discurso foi quando homenageou Marcela Fernandes, subchefe do Marlene, que foi mãe no ano passado. “Ao lado desta parte da maternidade há um elo muito grande de mãe para filho, mas que ao mesmo tempo é um momento que traz muita culpa e é um bocadinho solitário. Já vi muitos percursos de sucesso serem interrompidos por terem sido mães e eu não quero que isso aconteça. Se eu puder dar essa força, eu vou fazê-lo. Porque é uma pena nós perdemos talentos pelo caminho”, conta a chef, que tem uma filha de nove anos.Com mais de 30 anos de profissão, Marlene Vieira iniciou oficialmente o seu percurso gastronómico aos 16 anos, quando começou os estudos na Escola de Hotelaria de Santa Maria da Feira, pouco antes de, ainda adolescente, mudar-se para Nova Iorque, onde trabalhou no restaurante português Alfama. Após passar por diferentes cozinhas da alta gastronomia no seu retorno a Portugal, abriu o seu primeiro restaurante, o Avenue, em Lisboa, em 2012, cidade onde também teve empreendimentos no Mercado Time Out, o Zumzum Gastrobar e o estrelado Marlene. Mesmo com percurso tão longo - e de tanto sucesso - a chef conta ao DN que aquela jovem adolescente que entrou na Escola de Hotelaria segue dentro de si. “Eu gosto de estar sempre muito perto da Marlene de 16 anos porque há sonhos, há vontade de aprender, e isso faz-nos viver com muito mais energia. Quando estava a subir ao palco da gala e a tentar absorver tudo aquilo, eu estava a ver a minha vida toda atrás. E isso estava a fazer mesmo uma retrospetiva de todo o meu trajeto e quão feliz eu estava a manter-me fiel àquilo que eu era, e àquilo que eu continuo a ser: acredito nos valores da amizade, da lealdade, e da família. Não abdiquei e ainda assim chegamos à excelência”, reflete. A gala realizada no Centro de Congressos da Alfândega do Porto é mais uma página escrita na história das mulheres chefs em Portugal. Antes de Marlene Vieira e Rita Magro, apenas Maria Alice Marto havia conseguido uma estrela Michelin. De 1993 até 1996, foi através das suas mãos que o seu Ti’ Alice, em Fátima, alcançou o galardão. Na tarde da última terça-feira, quase 30 anos depois, a sensação no Porto era de que o feito poderia ser repetido em 2025. “Havia um zum-zum”, brinca a chef, fazendo referência a outro dos seus restaurantes, o Zumzum Gastrobar, em Lisboa. “Havia muitos sinais à minha volta que eram diferentes do ano passado e que me faziam acreditar ligeiramente que poderia ser. Claro que estava naquela do ver para crer, mas tinha já expectativa ao longo do dia que essa estrela podia chegar”, sublinha. Mãe, empresária, jurada e chef, Marlene Vieira consolidou-se com esta estrela Michelin como um dos grandes nomes da alta gastronomia portuguesa três anos após a inauguração do seu Marlene. O caminho foi sinuoso, mas o otimismo da chef nunca esmoreceu. “Toda a gente tem um caminho com obstáculos, mas gosto de olhar para o que aconteceu de bom. Tendo a olhar mais para isso do que para as coisas que foram menos boas, porque é mesmo assim que me foi transmitida desde miúda o que tinha que ser. Gosto mesmo de olhar para o copo meio cheio e acho que foi isso que me salvou muitas vezes. Essa é a minha forma de estar”, concluiu a chef. nuno.tibirica@dn.pt