Maria e Cristiana interromperam as compras no supermercado para salvar uma vida
Quando na tarde de 16 março, um sábado, Maria Justino e Cristiana Sanches decidiram ir às compras a um supermercado no Seixal, não imaginavam que se iriam reencontrar depois do curso de enfermagem na mesma escola, nem tão pouco que iriam estar sujeitas a muita adrenalina. Mas foi exatamente isso que aconteceu nas suas vidas e aquela tarde jamais será esquecida.
Tudo começou pouco depois de entrarem num dos supermercados doSeixal, quando escutaram um pedido de ajuda. “Havia uma senhora que transportava um senhor idoso numa cadeira de rodas e que se dirigia para a entrada a correr e a pedir ajuda”, contam-nos. E assim que ouviram “este chamamento” ambas agiram “intuitivamente”, dizem. Deixaram de lado o que estavam a fazer e dirigiram-se à entrada do supermercado para saberem se poderiam ajudar. “Foi muito intuitivo. Assim que ouvi alguém pedir ajuda nem pensei muito, só tinha de ir saber o que se estava a passar e se precisavam da minha ajuda”, conta Cristiana. Para Maria foi o mesmo. “Um pedido de ajuda é como um chamamento e tinha de saber se precisavam de mim”. Nesta corrida, a meio caminho, no corredor, perceberam ambas que alguém ao seu lado vai ao mesmo passo. “Quando dei por mim estava ao lado de outra pessoa que andava à mesma velocidade que eu, era a Cristiana. Senti-me mais tranquila no caso de ser preciso alguma ajuda”, relembra Maria Justino.
Chegadas à entrada, e depois de falarem com os seguranças, perceberam que não havia mais ninguém com formação na área e só se tinham uma outra. “O senhor estava inanimado, sem respirar e sem pulso e tínhamos de tomar as rédeas à situação. Pedimos ajuda para o deitar no chão e tivemos que iniciar o suporte básico de vida. O que vale é que o supermercado tinha desfibrilhador”, comenta ainda Maria. Cristiana sustenta que, embora seja enfermeira num serviço de cirurgia cardíaca, onde têm de lidar com paragens cardíacas, “é bem diferente estarmos num ambiente hospitalar ou estar na rua, onde não temos grandes coisas a que possamos recorrer para esta manobra”.
Havia receio e muita adrenalina, mas avançaram. E enquanto Cristiana desencadeava o procedimento de suporte base de vida, Maria falava com o INEM e explicava o que estava a ser feito. “Foram rápidos, mas quando chegaram já tínhamos conectado o desfibrilhador, que já tinha feito duas cardioversões e o senhor tinha começado a acordar e a responder. Medimos a tensão, contámos os ciclos respiratórios para termos a certeza de que estava vivo e quando os bombeiros e o INEM chegaram já estava em posição lateral, de segurança, e a responder a perguntas”.
Tudo isto em poucos minutos, “no máximo uns 15”, mas que “pareceram horas”, dizem-nos. No momento de agir, Cristiana confessa que teve de se focar e esquecer-se que estava a trabalhar à entrada de um supermercado. “Foi muita adrenalina. Só queria que tudo corresse bem, porque num hospital quando há uma paragem cardíaca temos uma equipa à nossa volta. Ali, era eu e a Maria, as pessoas do supermercado pouco ou nada podiam ajudar”. No final, “correu tudo bem”. E o paciente foi transportado pelo INEM para o hospital da área, o Garcia de Orta, “onde não acreditavam no que se tinha passado e tiveram necessidade de pedir o relatório do desfibrilhador para terem certezas”, explica-nos Maria.
Depois daquele momento, Maria e Cristiana tiveram de parar um pouco e respirar fundo para voltarem às tarefas, mas sempre a pensar se teriam magoado o homem. “Tinha esse receio, porque pode acontecer. Com as compressões há sempre o risco de se poder fraturar uma costela. E queria muito saber como é que ele tinha ficado”, desabafa Cristiana. Assim que voltaram ao trabalho na segunda-feira seguinte tentaram obter feedback sobre o estado do senhor e foi quando começaram a perceber que havia alguém da Ordem dos Enfermeiros que queria falar com elas. “Foi através desta pessoa que tivemos feedback. Disseram-nos que chegou ao hospital e não tinha mazelas do que se tinha passado, que a nossa abordagem tinha sido excelente e que era a ideal em todos os casos”, recorda Maria.
Mais tarde souberam que por este salvamento iriam receber um louvor da Ordem. “Não esperávamos, mas foi muito bom e significativo”, admite Maria. Aliás, “todas as pessoas que podem passar por situações destas deveriam ser reconhecidas. Não é todos os dias que se salva uma vida na rua e quem o consegue deve ter esse reconhecimento”. E deixam uma mensagem: “É preciso haver Desfibrilhadores Externos Automáticos (DEA) em espaços públicos, mas é preciso investir-se em formação (de suporte base de vida) para a população em geral. A situação que vivemos pode acontecer em qualquer lugar, até em casa, em família ou na rua. E se cada um de nós puder ajudar a reverter a situação é o ideal, mesmo que não seja reversível pelo menos tentou-se”.
No supermercado havia desfibrilhador, mas se “não estivéssemos lá não poderia ser usado”, reforçam.
Maria tem 28 anos e é enfermeira no serviço de ortopedia do Hospital de Santa Maria, em Lisboa; Cristiana tem 29 e trabalha no serviço de cirurgia cardíaca no Hospital de Santa Marta, também na capital. Este salvamento colocou-as outra vez em contacto, depois de terem feito o curso na mesma altura, embora em turmas diferentes, na Escola de Enfermagem da Cruz Vermelha. E a atitude que ambas tiveram explica porque escolheram enfermagem: “Não somos indiferentes a um apelo de outra pessoa. Afinal, cuidar do outro é o que escolhemos fazer e ao que estamos a dedicar as nossas vidas”, afirma Maria, que exerce a profissão desde o dia seguinte a ter recebido o diploma em 2018. Aliás, reforça, “acho que, tanto eu como a Cristiana, viemos para esta profissão precisamente para ajudar a resolver as necessidades dos outros. Aquilo que fizemos não foi uma obrigação por sermos enfermeiras, foi voluntário”. E reforça: “Nestas situações, vou sempre, mesmo que possa fazer pouco, mas nunca me tinha acontecido estar assim na rua e num supermercado.”
Cristiana terminou o curso em plena pandemia e esteve um ano a fazer testes à covid-19, só depois foi para o hospital e para a cirurgia cardíaca. “Desde pequena que tenho uma certa paixão para cuidar dos outros. Tenho médicos na família e sabia que não era bem aquilo que queria fazer, mas quando descobri amigos da minha irmã mais velha que eram enfermeiros, e percebi o que faziam, soube também que era aquilo que queria fazer. Estar próxima dos doentes”.
Maria também descobriu cedo o que queria fazer, tendo encontrado “a forma de transpor para o lado profissional o que fazia na vida pessoal”. Gosto de lidar com pessoas e sentia que aquilo que pudesse fazer ou dar aos outros receberia de volta, mas quando falava em enfermagem perguntavam-me sempre porque não Medicina?”. A resposta era simples: “Cada área tem o seu papel, só que eu queria estar em permanência com o doente e a cuidar das suas necessidades”.
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