Maria Antónia Escoval: “Envelhecimento e forte emigração dos mais novos estão a condicionar dádivas de sangue”
Pode não parecer, mas a globalização, os fluxos migratórios, bem como as alterações climáticas são fatores que têm vindo a alterar o perfil da dádiva de sangue em Portugal. A presidente do Instituto Português do Sangue e da Transplantação (IPST), Maria Antónia Escoval, confirma-o ao DN, dizendo que, por isso mesmo, este ano a celebração tem como mote “A importância da diversidade na dádiva de sangue”. Segundo explica nesta entrevista, a população está cada vez mais envelhecida, os mais jovens emigram e os novos residentes já são mais de um milhão. Portanto, a demografia em Portugal mudou e conseguir mais dadores de sangue e fidelizá-los é um dos grandes desafios para o futuro.
Qual a importância de haver um dia nacional dedicado ao Dador de Sangue?
Em primeiro lugar, é importante para se poder agradecer a quem dá voluntariamente. Há cerca de 300 mil dádivas por ano, que são realizadas por cerca de 250 mil dadores, mas há cerca de 370 mil pessoas que se inscrevem para a dádiva de sangue. Este é um aspeto positivo. Normalmente, o foco nunca está na homenagem e no agradecimento a quem se disponibiliza para dar sangue. Portanto, o nosso primeiro objetivo neste Dia Nacional é agradecer e realçar o contributo dos que dão para um bem da comunidade. Em segundo lugar, porque é o dia em que se alerta para a necessidade da dádiva regular.
Tem havido menos dadores?
Ainda não temos os dados de 2024, que só estarão prontos em junho, mas nos últimos dois anos até tivemos mais dadores. A questão é que tivemos menos dádivas. Ou seja, em 2023, mantivemos a tendência de aumento no número de inscrições para a dádiva e no número de dadores que realizaram dádivas, apesar do número de dádivas registadas ter sido sobreponível a 2022. Um facto que pode ser explicado pela diminuição do número de dádivas por dador e, entre outras causas, pela suspensão temporária de dadores que deixaram de o ser por se encontrarem a viajar ou por terem alterado o seu local geográfico. O número de dádivas por dador tem vindo a diminuir de ano para ano, particularmente entre os mais jovens, que, além de emigrarem, também têm múltiplas outras preocupações, com o clima, o planeta, a sustentabilidade. Portanto, além de se sensibilizar para a dádiva é necessário fidelizar os dadores. E este é um dos objetivos deste Dia Nacional de 2025.
O que está a mudar na dádiva de sangue?
O panorama da dádiva de sangue tem sofrido alterações consideráveis na última década, devido ao envelhecimento da população residente em Portugal, já que somos o segundo país mais envelhecido da União Europeia, a seguir à Itália, e devido à forte emigração dos mais novos. A dádiva de sangue realiza-se preferencialmente dos 18 aos 65 anos (embora provavelmente esta idade possa vir a ser aumentada, de acordo com os novos critérios do Conselho Europeu), e 24% da população por- tuguesa tem mais de 65 anos. Logo isto é um problema. Por outro lado, a forte emigração por parte dos mais jovens e o crescimento exponencial do ensino e do trabalho remoto também estão a condicionar a afluência de dadores aos locais de colheita, o que penaliza a atividade. Ou seja, agregar um grande número de pessoas num local de colheita, apesar do esforço de todas as partes, é agora manifestamente mais difícil do que antes da pandemia. Mas associadas a estas questões temos outras.
Quais?
Por exemplo, o forte impacto das alterações climáticas que está a condicionar a dádiva à sazonalidade, como o calor e o frio extremo. O IPST tem três centros, Lisboa, Porto e Coimbra, mas a grande maioria das colheitas são feitas através das nossas unidades móveis, e quando temos situações de muito frio ou de muito calor as pessoas não se deslocam. Para além disto, no verão, temos assistido a um aumento de doenças emergentes, que levam a períodos de suspensão de dádivas e de alguns dadores, e antigamente estas doenças eram raras na Europa. Mas para para obviar estas situações, o instituto vai iniciar o rastreio analítico para WNV (Vírus do Nilo) e Dengue já em 2025.
Quer dizer que a globalização e o clima são um problema para a dádiva de sangue?
São, porque continuamos a registar uma elevada suspensão de dadores associada ao risco geográfico, que também está relacionado com a globalização - quer pela realização de viagens, quer pela mudança do local de origem ou de residência dos potenciais dadores. Há muitas alterações nas características dos residentes em Portugal. Veja, a população estrangeira residente em Portugal aumentou 33,6% em 2023, comparativamente ao ano anterior, totalizando 1.044.606 os cidadãos com Autorização de Residência no nosso país, segundo os dados oficiais. Este facto tem forte impacto na mudança da população de dadores, mas também na prestação de cuidados transfusionais. Necessitamos de nos adaptar a uma população multiétnica. Por isso, este ano, o tema para assinalar este dia é “A importância da diversidade na dádiva de sangue”. É preciso que se perceba que a promoção da dádiva de sangue é um esforço de todos e um trabalho continuado, que envolve aumentar-se a literacia em saúde e a consciencialização sobre a importância da dádiva de sangue, visando ultrapassar alguns mitos e medos sobre este gesto voluntário, altruísta e não-remunerado.
Nos últimos tempos a Comunicação Social tem vindo a veicular notícias sobre as reservas terem atingido mínimos, lançando apelos. Está a haver mais carência de sangue?
A situação de carência de sangue e componentes sanguíneos é uma situação sazonal que ocorre nos meses de janeiro/fevereiro, devido ao aumento das infeções respiratórias associada ao aumento da atividade assistencial neste período, e durante os meses de julho/agosto, devido à deslocação para férias dos dadores regulares (embora se agendem locais de colheita junto a praias e outros locais de veraneio). Nestes períodos, a situação de carência regista-se a nível nacional, mas mais agudizada na região de Lisboa e Vale do Tejo, devido ao maior número de instituições hospitalares. Mas o número de apelos que são da responsabilidade do IPST não têm aumentado ao longo dos anos, man temos o caráter sazonal.
O que é preciso para que não se chegue a situações de rutura?
Nunca chegamos a situações de rutura, porque o IPST monitoriza diariamente a reserva estratégica de sangue e componentes sanguíneos. Aliás, no que se refere à reserva estratégica de sangue e componentes sanguíneos, ao longo do último ano, foi possível obter o contributo de todas as entidades (públicas e privadas) que colhem e transfundem componentes sanguíneos. Iniciámos também a publicação semanal das reservas estratégicas de sangue e componentes sanguíneos a nível do IPST, a nível nacional e pela primeira vez a nível regional, assim é possível consultar esta informação publicada no nosso site todas as segundas-feiras, e fica disponível durante o resto da semana em www.dador.pt.
Há alertas que se dirigem mais a determinados tipos de sangue. Quais os que faltam mais?
Os grupos mais prevalentes na população portuguesa são o tipo A positivo e negativo e o O positivo e negativo, mas o ideal é que haja uma reserva estratégica para sete dias em todos os grupos sanguíneos.
Que mensagem deixaria à população em geral neste dia?
Que a dádiva de sangue é um ato de cidadania e uma forma de oferecer solidariedade aos outros. O dar sangue, une-nos, faz-nos pessoas melhores e faz do mundo um local certamente melhor.