O trio de investigadores dos Estados Unidos, Margaret Livingstone, Nancy Kanwisher, Doris Tsao e o alemão Winrich Freiwald detiveram-se, com o seu trabalho na compreensão dos mecanismos neurais subjacentes ao reconhecimento facial, um aspeto fundamental da interação social e da cognição humana. Uma investigação que foi agora reconhecida em Portugal com a atribuição do Prémio António Champalimaud de Visão 2024, no valor de um milhão de euros..Esta quarta-feira, na cerimónia de entrega do prémio, no Centro Clínico Champalimaud, momento presidido pelo Presidente da República Marcelo Rebelo de Sousa, foi destacado o valor do trabalho coletivo do quarteto de cientistas. Um trabalho que resultou na compreensão de como os rostos são percebidos e reconhecidos, o que tem impacto nos campos da neurobiologia, neurociência cognitiva e processamento visual. .No âmbito do trabalho agora premiado a neurocientista Margaret Livingstone, professora de Neurobiologia na Harvard Medical School e com ampla pesquisa no campo da perceção visual, contribuiu para a compreensão dos mecanismos cerebrais subjacentes à visão. O seu trabalho demonstrou que as primeiras áreas do cérebro que processam o que vemos - as V1 (córtex visual primário) e V2 - estão organizadas em partes separadas, especializadas na cor, forma, movimento e profundidade. “Cada subdivisão maior do cérebro possui várias subdivisões. O meu trabalho deteve-se nestas subdivisões especializadas e descreveu novas subdivisões. O princípio de que as diferentes subdivisões estão seletivamente interconectadas tem sido importante para entender o processamento visual”, adiantou ainda nos EUA a neurocientista ao DN, agora presente em Portugal para receber o prémio..Um caminho para entender a dislexia.Esta descoberta forneceu a base para a compreensão de inúmeros fenómenos percetivos e propôs uma hipótese relevante para perceber a causa da dislexia. “Acreditamos que a subdivisão do cérebro que remapeia o que se vê sempre que movemos os olhos pro- cessa essas informações mais lentamente em disléxicos. Desta forma, na pessoa com dislexia a sua capacidade de mover os olhos rapidamente e absorver informações no texto fica ligeiramente comprometida”, fundamentou Margaret Livingstone, nascida no Estado da Virgínia e doutorada em 1981 na Universidade de Harvard..Atualmente, Livingstone está a desenvolver novos métodos de investigação para compreender os mecanismos neurais da perceção visual em áreas cerebrais de ordem superior, combinando fMRI (ressonância magnética funcional) com eletrofisiologia de célula única..“Presentemente, trabalhamos em várias frentes relacionadas com novos projetos. Uma é usar ultrassom focalizado para permitir a penetração de terapias contra o cancro no cérebro. Outra, é perguntar se áreas cerebrais superiores estão topograficamente interconectadas com áreas inferiores, com vista a testar a nossa hipótese de que a organização cerebral é universalmente baseada em mapas”, afirmou Livingstone. .Antes, a neurocientista explorou a forma como a biologia e as técnicas artísticas para produzir ilusões óticas influenciam a nossa perceção da arte. Neste contexto, a investigadora lançou em 2002 o livro Vision and Art: The Biology of Seeing, obra que cruza a neurociência e a arte, para explicar como o cérebro humano processa a perceção visual. No livro, a autora analisa o uso da cor, luz, sombra e perspetiva nas artes, para revelar como a biologia influência a experiência estética. .“Por exemplo, Leonardo da Vinci alcançou uma qualidade dinâmica em Mona Lisa ao conseguir desfocar a boca da visada na pintura. Desta forma, a boca é mais evidente na nossa visão periférica do que na nossa visão central. Na Mona Lisa, a expressão da retratada muda conforme movemos os olhos. É um feito com 500 anos encontrarmos qualidades dinâmicas numa imagem estática”, observa Livingstone, membro da Academia de Artes e Ciências e da Academia Nacional de Ciências..Ainda no âmbito do trabalho agora premiado, os investigadores Nancy Kanwisher (professora de Neurociência Cognitiva no Instituto McGovern no MIT), Doris Tsao (professora de Biologia na Universidade da Califórnia) e Winrich Freiwald (professor de Neurociências e Comportamento na Universidade Rockefeller), descobriram um sistema de áreas do cérebro que são fundamentais para reconhecer rostos..Esta investigação permitiu compreender como o cérebro processa as características faciais, desde o reconhecimento inicial até à identificação da pessoa, independentemente da sua pose. A mesma investigação permitiu identificar populações neurais específicas, responsáveis por codificar várias características faciais, decifrando-se a estrutura que o cérebro usa para reconhecer rostos individuais..O prémio é atribuído anualmente, alternando o seu âmbito. Em anos pares, reconhece avanços na investigação na área da visão e/ou recuperação da visão. Em anos ímpares, o galardão distingue organizações que se destacam na luta contra a cegueira e problemas de visão..Em 2023, o Prémio António Champalimaud de Visão reconheceu o trabalho do St. John of Jerusalem Eye Hospital Group (SJEHG). No ano anterior, os investigadores Gerrit Melles e Claes H. Dohlman viram premiado o trabalho que desenvolveram sobre doenças da córnea..O Prémio António Champalimaud de Visão, foi lançado em 2006 e conta com o apoio do programa 2020 - O direito à Visão da Organização Mundial da Saúde. .Compreender a forma como vemos a arte.As descobertas agora apresentadas pelo quarteto de investigadores não só permitiram melhorar o conhecimento sobre a função cerebral, como também podem ter implicações na compreensão e tratamento de distúrbios relacionados com a perceção facial. Hoje, sabe-se que a forma como vemos a arte está também intrinsecamente ligada à forma como o cérebro processa a visão..O modo como alguns grandes pintores com patologias oculares veem o mundo define a sua arte. Desta forma nascem obras de caráter singular porque os cérebros dos seus autores percebem a cor, a luz, a forma e o movimento de maneira diferente.