Manuel Magalhães e Silva: "Justiça está pior do que nos anos 80. Há pura e simplesmente uma degradação"
Advogado muito experiente, há quem lhe chama um tubarão do Direito em Portugal. E aos 78 anos continua a defender algum dos casos mais mediáticos em Portugal. Durante uma década foi assessor do presidente Jorge Sampaio e é conhecido por não ter medo das palavras. Continua na ribalta agora que os caminhos da justiça e da política voltam a cruzar-se a propósito das buscas do Ministério Público a duas sedes e a 14 dirigentes e antigos funcionários do PSD, Rui Rio incluído.
Queria começar já pela sua passagem pelo Ministério Público, porque nos dá depois o mote para uma parte da nossa conversa. Decidiu deixar esse órgão, que razões o levaram a sair?
Foi simples, sabe. É público e notório que eu fui e sou, num determinado processo, advogado do Sr. Luís Felipe Vieira. Há um momento, quatro, cinco, seis dias, depois de se iniciar a divulgação pública do caso, que me pareceu que era indispensável defendê-lo publicamente, porque tendo em conta a função que ele desempenhava, estava de algum modo a ser alvo publicamente de acusações continuadas e, portanto, que se justificava fazer um esclarecimento público e uma defesa pública da posição dele. Pedi autorização ao Conselho Regional da Ordem dos Advogados, como é normal e adequado nestas situações e, nessas circunstâncias, durante vinte e cinco ou trinta minutos, num determinado órgão de televisão, dei uma entrevista explicando tudo o que estava em causa na acusação e quais eram as justificações e explicações que podiam ser dadas para isso. Isso teve uma reação corporativa, muito corporativa, de magistrados judiciais e de magistrados do Ministério Público. Que eu estava publicamente a criticar um Procurador da República e estava, sem nenhuma hesitação e com nome e tudo, não fiz cerimónia para efetivamente dizer o que é que se estava a passar. E, numa reunião do Conselho Superior do Ministério Público, a questão foi tratada e foi tratada em termos de se determinar em que medida é que um membro do Conselho Superior do Ministério Público podia criticar publicamente um magistrado do Ministério Público. E a posição que eu tinha, e tenho e mantenho, é de que, desde que se trate de assuntos do Conselho Superior do Ministério Público, eu não tinha a sombra de uma dúvida de que não podia fazer nenhuma intervenção pública sem a autorização prévia da procuradora-geral da República, isso para mim era qualquer coisa de político, não estava em causa ter que pedir qualquer autorização, quando, por exigência do exercício da minha profissão de advogado e autorizado pelo órgão competente para o efeito, viesse a público dizer aquilo que entendesse razoável na defesa de um constituinte. E aí fui, efetivamente, muito crítico de um procurador da República, mas entendi exatamente que, naquela circunstância, valia a pena, porque isso se estava a passar, de algum modo, recorrentemente, pôr os nomes às coisas de uma maneira inteiramente clara. O grosso do Conselho Superior do Ministério Público entendeu que esta intervenção não merecia qualquer espécie de censura e, depois disto ter sido deliberado assim, a Sra. procuradora-geral da República propôs uma deliberação em que se recomendasse aos membros do Conselho Superior do Ministério Público maior cuidado e discrição em comunicações públicas. E quando isto foi colocado assim, eu disse: Esta proposta da Sra. procuradora-geral da República representa uma crítica indireta e, nesta formulação, à minha atividade, aquilo que aparece com este caráter genérico, no fundo, dirige-se a uma pessoa que, neste momento, está no foco e, portanto, se esta deliberação for aprovada, apresentarei de imediato o meu pedido de renúncia ao Sr. presidente da Assembleia da República. E foi assim.
O senhor acha que foi censurado pela PGR? Ainda que indiretamente?
Indiretamente. A deliberação que foi aprovada no Conselho Superior do Ministério Público, aprovando a proposta da Sra. procuradora-geral da República, era, claramente, uma censura indireta e, previamente à votação, dei nota de que se fosse favoravelmente votada apresentaria o meu pedido de renúncia ao Sr. presidente da Assembleia da República e apresentei.
Esse tique de autoridade, e a expressão agora é a minha, revela, de alguma forma, o conceito que o Conselho Superior do Ministério Público, ou o próprio Ministério Público, tem de si próprio?
Não esteve em causa, se bem percebo a autoridade, porque autoridade há pouca. Aí esteve em causa, sobretudo, a defesa de um seu. Isto é, um membro laico, por assim dizer, do Conselho Superior do Ministério Público tinha criticado publicamente um magistrado do Ministério Público, porque haver essa abordagem de poder, por parte quer da procuradora-geral da República, quer do Conselho Superior do Ministério Público, mas, sobretudo, da procuradora-geral da República, não tem existido. Não tem existido e, do meu ponto de vista, isso é responsável por uma parte significativa das distorções que têm ocorrido. Estou a lembrar-me que em determinada altura, que a terra lhe seja leve, o Dr. Pinto Monteiro disse que o procurador-geral da República era como a Rainha de Inglaterra. A expressão colou, era uma expressão impressiva para se dizer a falta de poderes que teria o procurador-geral da República, mas o que acontece é que isso é rigorosamente falso. Isso é rigorosamente falso. O procurador-geral da República tem um imenso poder, se o quiser usar, através de diretivas e instruções obrigatórias para todos os magistrados do Ministério Público. O que acontece é que os senhores procuradores-gerais da República raramente se atravessam com a pena, como costumo dizer. E, portanto, para não se atravessarem com a pena, alega-se que não têm poderes suficientemente significativos para que exerçam uma magistratura com a autoridade que lhes é própria. Autoridade não é autoritarismo. Dou-vos um exemplo e percebe-se logo o que é que isso significa: quantas vezes é que o Estado português já não foi condenado no Tribunal Europeu dos Direitos Humanos nas questões relativas à violação do segredo de justiça em relação com a liberdade de informação? Aquilo que tem sido divulgado pela classe, a propósito, também não é verdade, porque não há nenhuma jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos que diga que a liberdade de informação passa sempre à frente do segredo de justiça. Isso não é verdade. Passa quando não esteja em causa a lesão da presunção de inocência ou quando não esteja em causa a lesão da integridade da investigação. Se isso não estiver em causa, a violação formal do segredo de justiça deve ceder perante a liberdade de informação. E se houver estas duas coisas, já não. Ora bem, Portugal tem sido condenado várias vezes exatamente em todos aqueles casos em que não se verifica nem a lesão da presunção de inocência, nem da integridade da investigação. Era impossível uma diretiva do procurador-geral da República a dizer que nos casos de crime de violação do segredo de justiça na sua relação com a liberdade de informar, sempre que não haja factos suscetíveis de lesar a presunção de inocência e/ou a integridade da investigação, o processo é arquivado. Ponto. Sempre que o processo deva prosseguir porque existem, os factos têm de ser obrigatoriamente invocados na acusação para que possam fazer parte da decisão final e não continue o Estado português, à boleia de todas estas omissões, a pagar centenas de milhares de euros em condenações do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos só porque não é feita a administração da justiça com os cuidados que se exigiam. Tão simples como isto.
Vamos agora ao tema direto que está na agenda desta semana, que tem que ver com a operação no PSD. Como é que olhou essa operação no Ministério Público a semana passada com 14 buscas a casa de dirigentes e funcionários do PSD e pelo menos a duas sedes do partido? Enquanto isso não for explicado, continuarei com o escândalo que tem sido manifestado quase numa voz por toda a gente. A começar no Presidente da República e a acabar no empregado da padaria da esquina, toda a gente efetivamente critica. Critica a própria investigação, também critica, às vezes sem saber o que está a criticar, mas isso é outra questão, mas critica sobretudo a dimensão e o modo como a operação se estruturou.
Concorda que houve desproporcionalidade?
Repare, já nem é uma questão de se concordar ou discordar, é de tal maneira patente que gostaria de ouvir alguém, aí de uma maneira substantiva e circunstanciada, explicar porque é que não houve grave violação do princípio da proporcionalidade em todo aquele espetáculo que foi montado. E sobretudo tendo em conta o que é que estava a ser averiguado. Gostava de saber qual era e qual é o programa investigatório daquele inquérito. Quando se concebe aquele conjunto de operações, tratava-se na execução, se é que havia, de um programa de investigação com que elementos. E aqui estamos na questão que estávamos a falar antes de começarmos este programa, sobre a necessidade de haver outras formas de comunicação entre a administração da justiça e a comunicação social, que é: passou este tempo todo e nós continuamos sem nenhuma explicação por parte da Procuradoria-Geral da República, relativamente a esta situação, como se o Ministério Público, perante esta situação de grave alarme social que se criou à volta desta situação, não tivesse a obrigação estrita de explicar o que é que se passa. E até por isto é que, em face do alarme de tudo isto, em face do conhecimento que existe relativamente a esta situação, é muito difícil sustentar que ainda há aqui algum segredo de justiça a preservar. Está tudo na praça pública, o que é verdade e o que não é.
E a reação do PSD, que admite chamar a Procuradora-Geral da República ao Parlamento, parece-lhe uma resposta proporcional para tudo o que aconteceu?
Tenho sempre dúvidas relativamente a situações que não estão expressamente contempladas e que podem representar uma ofensa à autonomia do Ministério Público. Isto é, não teria nenhuma objeção a que houvesse disposição expressa, e se fosse para um regime desse tipo, de formas de controle do funcionamento do Ministério Público, por parte da Assembleia da República, com circunstâncias cautelosas, para não fazermos da Procuradoria-Geral da República um momento de combate político ou partidário. Mas agora, assim, tenho alguma dúvida de que faça sentido a Procuradora-Geral da República ir ao Parlamento e perguntando-se para fazer o quê?
Para dar as tais explicações?
Não, para dar essas explicações ao país, não precisa de ir à Assembleia da República. Tudo o que seja e tenha a possibilidade de esclarecimento e comunicação direta com a generalidade da população, não tem de ir à Assembleia da República.
Mas não toma como bom que os deputados são representantes do país todo?
São representantes do país todo, mas quando se torna necessário dar uma explicação pública por parte de um órgão com a autonomia da Procuradoria-Geral da República e do Ministério Público, o que faz sentido é que, efetivamente, isso seja feito diretamente ao país, independentemente da representatividade que necessariamente os deputados têm.
Então ir ao Parlamento poderia fragilizar? Seria uma espécie de puxão de orelhas perante a Casa da Democracia?
Seria interpretado como tal, como é óbvio. E aí, tudo o que sirva para fortalecer o Ministério Público parece-me absolutamente mais necessário. E, repare, toda esta atuação mais musculada de que estava a falar, do Ministério Público pela atuação do procurador-geral, isso só fortalece o Ministério Público, inequivocamente. Este tipo de situação já me parece que enfraquece e aí vale a pena termos uma ideia muito clara e aí também me parece criticável, mas é o meu ponto de vista, a posição do PSD. É que não há Estado de Direito que aguente como tal sem um Ministério Público forte e autónomo. E aquilo que aparece ou tem aparecido na posição do Dr. Rui Rio, não estou convencido que seja necessariamente a posição do PSD, mas que apareceu na posição do Rui Rio, quer enquanto foi líder do PSD, quer em alguns laivos de intervenção tida recentemente, é o modelo francês do Ministério Público e o controlo do Ministério Público pelo Ministro da Justiça e estou completamente em desacordo.
Considera que as reações dos vários agentes políticos foram quase unânimes, mas como é que as leu? É como um condicionamento, uma tentativa de condicionamento da independência e da separação de poderes ou só, neste caso, por uma exigência de explicações?
Interpreto claramente como uma exigência de explicações e coloco-me na posição de magistrado do Ministério Público. Se eu tivesse atuado deste modo e estivesse a haver todo este processo, não tomaria essa exigência de explicações como uma pressão sobre mim, continuaria a fazer o meu trabalho. Era o cumprimento do dever, por parte do Ministério Público, de esclarecer publicamente uma situação que estava, efetivamente, a causar escândalo, uma situação em que acaba por haver um desconhecimento razoável por grande parte de quem discute esta matéria, desta mesma matéria. Fiquei surpreendido, por exemplo, quando da sua intervenção o Presidente da República, que fez um doutoramento sobre matéria de partidos políticos, ter-nos dito que estava em causa a lei de financiamento dos grupos parlamentares. Não há nenhuma lei de financiamento dos grupos parlamentares, isso não existe. Há uma lei de financiamento dos partidos políticos e a própria epígrafe do artigo que trata desta matéria também fala, de novo, em partidos políticos. Depois há um número que fala nos grupos parlamentares. Portanto, não há nenhuma lei, mas só a circunstância de se falar numa coisa que não existe, a lei de financiamento dos grupos parlamentares introduz imediatamente, uma confusão.
Então, é para financiar os grupos parlamentares e depois vai para os partidos, quando não é isso que está na lei...
Precisamente, Marcelo Rebelo de Sousa foi muito prudente na escolha das palavras, quando comentou publicamente esta intervenção, mas basicamente disse que era bom que não se pusesse em causa a chamada separação de poderes.
Na sua leitura, esta investida, chamemos-lhe assim, dos políticos quase em bloco sobre o Ministério Público põe em causa a separação de poderes de que falávamos há pouco?
Assim, nesses termos, entendo que não. Isto é, o Ministério Público tem de ser suficientemente forte para, perante uma investida dos atores políticos, por mais larga que seja, não sentir isso como uma forma de diminuição da sua autonomia e do seu poder.
Então, aproveito também para perguntar se estamos a assistir ou não a uma judicialização da política que pode levar, por sua vez, a uma politização da justiça?
Não sou capaz de dizer isso com essa generalização, mas já sou capaz de dizer, porque é a experiência das últimas décadas, que tem havido uma progressiva utilização da Administração da Justiça para o combate político-partidário. Depois, se representa a execução de uma agenda política ou partidária por parte de magistrados do Ministério Público ou de magistrados judiciais, não sou capaz de responder. Mas quando digo que não sou capaz de responder, não é uma resposta hipócrita, é que não sou mesmo capaz. Não sei. Posso desconfiar aqui e ali, mas as minhas desconfianças valem o mesmo que a confiança, porque não tenho provas de coisa nenhuma e, portanto, não. Há uma coisa relativamente à qual não tendo provas e é de tal maneira continuada que me faz sentido a tese que há três ou quatro anos, tanto quanto me recordo, o Dr. Adão e Silva, penso que no prefácio de um livro dele, ou no próprio texto do livro, agora não sou capaz de precisar, fazia da posição do Ministério Público: não consigo levar-te de inquérito a julgamento, mas na praça pública já ficas com a reputação destruída e condenada. Ora, a repetição de casos com estas características é de tal maneira frequente que interrogámo-nos, e temos direito de nos interrogar, se efetivamente não haverá aqui e ali - e não deve considerar-se um comportamento generalizado do Ministério Público, porque isso também seria injusto -, de aproveitar a difusão pública de casos para suprir as dificuldades de se chegar a uma investigação consequente em situações que sejam tidas como graves e, portanto, algo como "olha filho, isto aqui não irá para julgamento, mas já ficas com a tua reputação estragada". E isto tem acontecido e todos somos capazes de pensar nos exemplos que aconteceram e que revelam, efetivamente, gravidade. Estou a pensar em dois, e em dois que são gritantíssimos. O primeiro é Alcochete [ataque de elementos de uma claque do Sporting aos jogadores que estavam na Academia do clube]. Gostava de saber em que cabeça do Ministério Público e da Magistratura Judicial coube que Alcochete podia ser terrorismo? É não terem a menor ideia, mas a menor ideia do que é o crime de terrorismo. Só porque aparece a espetacularidade própria do que se vê de atos de terrorismo, isto é, quarenta ou cinquenta meninos em passo por Alcochete com bastões. E tudo isso impressiona, como é evidente, mas isso não é crime de terrorismo. E não é crime de terrorismo nem sequer é por não haver aqui uma intenção política em peneira fina de se poder ir por aí, mas nem é preciso tanto. O que é preciso saber-se, e faz-me a maior confusão, que haja magistrados do Ministério Público que embarcaram nisto e juízes de instrução que também embarcaram nisto, além de 12 acórdãos do Tribunal da Relação de Lisboa, na fase de inquérito e de instrução, que carimbaram que isto era terrorismo. Se fossem meus alunos dizia-lhes de imediato que fechassem o exame. E, portanto, estava reprovado por isso, simplesmente porque não tem a menor ideia do que é um crime de terrorismo, do que é a pedra de toque do crime de terrorismo. Tem de haver mais alguma coisa na intenção de quem faz, além dos atos que está a praticar. E isto explica-se a uma criança.
E falou em dois exemplos, qual é que seria o segundo?
O segundo exemplo muito claro desta situação é o doutor Manuel Palos. O doutor Manuel Palos [antigo diretor do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras], que começou por ser subornado com duas garrafas de vinho tinto e que acabou por ter como contrapartida da corrupção pelo ministro Miguel Macedo [ministro da Administração Interna entre 2011 e 2014] continuar como diretor-geral, que é a forma mais perversa de construir uma acusação. É a forma mais perversa, porque o que é normal num diretor-geral é gostar de continuar a ser diretor-geral. Dizer que gostar de continuar a ser diretor-geral, quando não há nada que indique que venha a ser substituído ou que possa ser substituído como diretor-geral, é a forma mais perversa de encontrar uma contrapartida. Ora bem, o processo foi arquivado, mas, todavia, o doutor Manuel Palos, que foi ao longo dos anos, e tive experiência direta disso exatamente pelos tempos de Belém, um funcionário público absolutamente exemplar, ficou com a reputação destruída na praça pública, com a saúde gravemente prejudicada na praça pública e só muito recentemente acabou por ter alguma reabilitação, sendo nomeado para oficial de ligação de segurança na Embaixada em Madrid. Reparem, são dois casos muito claros.
Portanto, no seu entender, o Ministério Público continua a ter nota negativa, se for seu aluno?
Nestas situações, porque depois na generalidade, não haveria nada mais injusto do que dizer que o Ministério Público tem uma nota negativa.
Permita-me fazer uma pergunta, que alargo não só aos magistrados do Ministério Público, mas também aos magistrados judiciais, quando disse há pouco que qualquer criança percebe o que é um crime de terrorismo e, portanto, não faz sentido.
Não lhe parece, ou na sua experiência de barra, que muitas vezes os magistrados são ignorantes, ou seja, não têm um conhecimento profundo da realidade e, portanto, as acusações são um amontoado de palavras que muitas vezes não correspondem à realidade do que acontece?
Há de tudo. Encontrei várias vezes, ao longo de 50 anos de exercício de profissão, vários magistrados que sabiam muito pouco de Direito e alguns muito pouco da vida, como encontrei os melhores, dos melhores juristas que encontrei em toda a minha vida. Quer na primeira instância, quer nos tribunais de relação, quer no Supremo Tribunal de Justiça. Devo dizer que, em termos de formação jurídica e de qualidade como juristas, a quantidade de melhores juristas está entre magistrados judiciais do que entre advogados.
Há uma frase desta semana do antigo líder parlamentar do PSD que disse, e passo a citar, "que é a altura de os políticos levantarem as calças perante a Justiça". Está instalada uma guerra que o próprio Presidente da República diz que deveria ser evitada?
Evidentemente que sim. Lembro-me, quando fui candidato a bastonário em 2007, de ter tido uma reunião entre várias, e uma delas num determinado sítio do país, eram 40 ou 50 colegas, e o que estava em causa era a enorme crispação dos colegas relativamente aos magistrados judiciais. E o que é que queremos? Guerra? E demorámos umas quatro ou cinco horas até chegarmos a um entendimento, procurando evidenciar o quê? As guerras sabemos como começam, não sabemos como acabam; primeiro ponto. Segundo, se calhar aquilo que é razoável não é criar, ou fomentar, ou prosseguir numa guerra, com consequências imprevisíveis e porventura danosas, mas perceber porque é que se chegou aqui a este mau entendimento entre advogados e magistrados judiciais, e perceber porque é que isso aconteceu e procurar então atacar as causas. Porque a idade não tem só parte negativa, também tem parte positiva. Sou do tempo em que se chegava a um tribunal e batia-se à porta do Sr. corregedor para o cumprimentar, para estarmos a conversar um bocadinho e para depois irmos tranquilamente fazer o julgamento. Hoje, há uma quantidade de juízes relativamente aos quais os funcionários dizem que "o senhor juiz não fala com advogados". Ora bem, mas estas coisas que são efetivamente agressivas e que criam este mau ambiente têm razão de ser. E têm razões, sobretudo. Começa por ter sido o boom dos cursos de papel e lápis e, portanto, a multiplicação exponencial do número de advogados, a falta de critérios suficientemente rigorosos para a admissão à profissão e, portanto, se manter alguma qualidade. Por este boom, e em face do que é o universo português, a luta pelos clientes, sobretudo nos escalões médios e inferiores, essa ideia de que são as grandes sociedades que querem restringir o número de advogados é uma fantasia completamente falsa. E porquê? Porque as grandes sociedades só escolhem a nata. Cria-se o quê? Cria-se um quadro de má preparação, ponto número um, e depois pela exiguidade do mercado legal, falemos assim, começam a relaxar-se as regras deontológicas, a prestação de serviços é de menor qualidade e os juízes, que também apanharam todo o boom judicial, que foi o boom económico, dizem que isto é tudo uma data de ignorantes, e eles com este trabalho todo. Começa-se a criar um ambiente de desentendimento e de confrontação que tem estas razões, que então passam por onde? Passam pela regulamentação dos cursos de direito, por regras muito estritas de acesso à profissão, por estágios feitos com rigor e porventura com maior duração do que tinham na lei atual. E aqui agora, nem percebo porquê.
Então não está de acordo com a revisão dos estatutos da Ordem dos Advogados?
De todo. Um estágio de 12 meses, mas o legislador tem alguma ideia de qual é a função social da profissão de advogado? Não percebe que o modo como temos feito os estágios de advocacia em Portugal, na generalidade dos casos, é altamente deficiente, e que o que se tornava necessário é, primeiro, restringir o acesso pela qualidade e depois de restringido o acesso pela qualidade do estágio exigir uma duração de 24, 36 meses, 30 meses, o que quer que seja, e com escalonamento por notários, conservadores, tribunais, o escritório do patrono, tudo aquilo que é o mundo da administração legal para que o menino e a menina ficassem suficientemente adestrados e preparados para exercer uma função que tem uma função social. E, portanto, não pode passar-se na brincadeira 12 meses a fazer umas minutas num escritório e a receber um salário de 600 ou 700 euros.
Deixe-me colocar uma pergunta ainda a este propósito, porque outro dos temas que atravessa a atualidade tem a ver, precisamente, com este estatuto da Ordem dos Advogados e a sua bastonária disse aqui em estúdio, há pouco tempo comigo e com o Pedro Cruz, que os advogados como Mário Soares, Salgado Zenha, devem estar às voltas no túmulo com esta nova lei das ordens profissionais e que são um ataque ao Estado de Direito: Onde se coloca nesta fratura exposta entre os advogados e o governo? Como é que aprecia esta fratura? Onde é que se coloca o senhor advogado que está aqui à nossa frente? E perguntar-lhe também se o PS, como disse a bastonária, foi ou não foi longe demais?
Não tenho a sombra de uma dúvida. Está-se a confundir duas coisas. Em primeiro lugar, não supõe, a questão seria a inversa, um problema de concorrência relativamente aos advogados e à sua Ordem. E essa ideia de que se está por esta via de diminuição do estágio, condições de acesso e por aí fora, a permitir uma maior concorrência, o mercado legal pode existir, mas o maior cuidado com estas regras de concorrência, porque o que está aqui em causa é efetivamente garantir uma enorme qualidade na função social que se deve exercer; ponto número um. Ponto número dois: aquilo que, ou das situações que maior crispação tem gerado, e com razão, é efetivamente o conselho de supervisão e a forma como está gizada aquilo que seria um controle da profissão. Aqui também é preciso separar águas. Sei que a generalidade dos meus colegas não estará de acordo com isso, mas já estou em idade de me poder dar ao luxo de estar em desacordo com a generalidade dos colegas, se for o caso, paciência. E é o seguinte: há no Conselho Superior da Magistratura e no Conselho Superior do Ministério Público, uma enorme crispação quanto à pretensão do poder político de querer pôr o pé nesses conselhos. E há várias atitudes. A posição que tinha, por exemplo, o doutor Rui Rio, bem evidenciava que isso não era um delírio, quer do Conselho Superior do Ministério Público, por exemplo. Essa situação tem levado a uma enorme crispação por parte dos magistrados judiciais e do Ministério Público, mas depois, também muito legitimamente, os titulares de cargos políticos têm manifestado uma enorme incomodidade com os excessos de corporativismo do Conselho Superior do Ministério Público e do Conselho Superior da Magistratura, o que também é rigorosamente verdade. E, portanto, é preciso ultrapassar esta situação em que há esta legítima e mútua crispação e que é, obviamente, nociva para o funcionamento da Justiça. Depois vamos para os advogados. E nos advogados são também muito frequentes os tiques corporativos dos órgãos de gestão disciplinar na defesa da classe. Ora bem, tenho sustentado não esse tipo de solução, mas uma coisa diferente. Vamos ultrapassar estas perplexidades globais existentes, mantendo quer no Conselho Superior da Magistratura, quer no Ministério Público, quer no Conselho Superior da Ordem dos Advogados - advogados, no caso do Conselho Superior da Ordem dos Advogados - magistrados judiciais, na magistratura, magistrados do Ministério Público, no Conselho Superior do Ministério Público, e depois vamos fazer entrar a sociedade civil nesses conselhos, porque se trata de função social ao serviço da sociedade concebida como tal. E, portanto, concebamos, desde as universidades às misericórdias, tudo o que há de corpos existentes na sociedade civil e determine-se as formas de participação dessas entidades nestes conselhos através de designação, não por quaisquer outros órgãos, pelos órgãos próprios de cada uma dessas entidades. E, portanto, que entrem nestes órgãos e que, juntamente com os profissionais de cada um dos lados, façam a gestão disciplinar e deontológica destas profissões. Como está atualmente na regulamentação que foi aprovada na Assembleia da República, vai gerar legítima crispação por parte dos advogados, que também, se calhar, não aceitarão muito boamente esta que é a ideia, a minha ideia quanto à forma de funcionamento, mas que ao oporem-se a esta que agora foi aprovada, estão cheios de razão.
Como disse a senhora Bastonária, haverá um plano do PS para desacreditar a classe diante dos portugueses?
Não, essas abordagens conspirativas é que já não embarco, desculpem a expressão. Não acredito que está agora o Governo a querer desprestigiar os advogados. Para quê? Há é insuficiente ponderação e reflexão no modo como isto funcionou e bem pouco me rala se isso vem de uma diretiva europeia. Vamos adaptá-la à nossa situação com as modificações que a situação interna exige, o que está, aliás, previsto na própria diretiva.
Fala-se muito da reforma da Justiça. Já houve algumas reformas ao longo dos anos, mas o que lhe pergunto é se era preciso uma reforma estrutural, digamos de alto a baixo, de princípio a fim, com o acordo de todos os agentes da justiça, que trouxesse a Justiça e o sistema judicial para o século XXI.
Sabe o acordo que aí se torna necessário? É que, como está em causa a orgânica judiciária e como estão em causa os procedimentos, que não sejam os juristas a fazer isso, porque ao longo de décadas já evidenciaram, sem nenhuma dúvida, que estão completamente incapazes de fazer isso. Sai sempre asneira. E, portanto, como estamos a considerar um sistema social extremamente complexo, vamos recorrer aos peritos em sistemas sociais e em procedimentos, com as profissões várias que esses especialistas têm, que recebam o input dos juristas e depois lhes apresentem o output para ver se há distorções que não sejam toleráveis, mas que não sejam os juristas a fazer a reforma da justiça.
Mas é preciso fazê-la?
Sobre isso não tenho a sombra de uma dúvida.
Apelando à sua longa carreira, que já aqui citou, como advogado, comparando, se quiser, os anos 80, depois da estabilização política do pós-PREC com este ano de 2023, hoje a administração da Justiça está melhor ou pior do que nos anos 80?
Isto está pior, porque nos anos 80 ainda não se tinha verificado aquilo a que se pode chamar o boom judiciário. E esse boom judiciário adulterou de um modo significativo a administração da Justiça e, portanto, hoje é, de um modo geral, de menor qualidade do que era nos anos 80. E sobre isso não tenho a sombra de uma dúvida.
Mas é só menor qualidade ou o sistema está a passar por uma transformação, se quiser, do analógico para o digital?
Se fosse isso, quem me dera. Se fosse passar do analógico para o digital, estaria aqui a sonhar, a aplaudir, e a aplaudir calorosamente. Não. O que há é pura e simplesmente uma degradação. Ponto.
E isso leva a que os portugueses tenham menos confiança na Justiça? A Justiça é, sistematicamente, por ser lenta sobretudo, um dos setores sociais em que os portugueses menos acreditam.
Não sou capaz de responder pelos portugueses, como é evidente, mas temos a resposta que as sondagens nos vão dando. E as sondagens, a resposta que nos dão, com a credibilidade que acabam por merecer também, é de que efetivamente há um enorme desencanto por parte de uma percentagem muito significativa, claramente maioritária dos portugueses relativamente ao funcionamento do seu sistema de Justiça.