Mais próximos do futuro. Oito avanços na ciência em 2023
Não goza do palato apurado de um gourmand, apreciador de boa cozinha, tão pouco aspira à categoria de crítico gastronómico. O Foodly, um robô que debutou numa mostra de tecnologia nipónica em 2022, após anos em desenvolvimento, não eleva a grandes patamares a sua experiência culinária. A máquina desenvolvida pela japonesa RT Corporation recorre a tecnologia de reconhecimento de imagens para identificar comida e socorre-se de "mãos" em forma de pegas para servir alimentos. Há perto de um ano, o Foodly, com o seu metro e meio de altura, foi apresentado como uma solução de baixo custo para responder à escassez de mão de obra no setor da restauração. As "garras" robóticas do aprendiz de cozinheiro japonês estão a anos-luz do avanço que o Instituto Federal Suíço de Tecnologia (ETHZ), sediado em Zurique e a startup norte-americana Inkbit, apresentaram este mês de novembro. Do laboratório da empresa do ramo da engenharia e tecnologia, saiu uma impressão 3D que abre novos caminhos na produção de estruturas robóticas leves. Um desenvolvimento que contraria a rigidez de movimentos dos robôs que, diferentemente da fluidez dos movimentos humanos, é cativa de juntas artificiais fabricadas a partir de materiais rígidos como fibra de carbono e metal.
Um vídeo publicado online pela referida instituição (pesquise-se "Printed robots with bones") dá-nos mostra de uma mão robótica provida de ossos, ligamentos e tendões fabricada a partir de diferentes polímeros com recurso a uma nova tecnologia de varredura a laser. A gama de materiais que podem ser utilizados na impressão 3D, inclui plásticos de secagem mais lenta, com a vantagem de possuírem melhores propriedades elásticas, assim como se apresentarem mais duráveis e robustos. Esta nova tecnologia de "robótica suave" também facilita a combinação de materiais macios, elásticos e rígidos. Sobre a nova mão robótica, cuja produção foi esmiuçada na revista Nature (a 15 de novembro) e disponível para leitura online, adianta Thomas Buchner, investigador no Instituto Federal Suíço de Tecnologia: "Embora esta mão ainda não possa ser colocada num ser humano e usada adequadamente, é um primeiro passo neste processo de impressão".
Do campo da robótica com potencial aplicação médica para a ciência da genómica, o mês de fevereiro de 2023 trouxe notícias a partir do National Institute of Health, nos Estados Unidos. Investigadores daquela instituição apresentaram uma ferramenta de software capaz de montar sequências genómicas completas, ou seja, sem intervalos, de uma variedade de espécies. O software Verkko ("rede" em finlandês) foi desenvolvido em 2022 a partir da primeira sequência efetivamente completa do genoma humano. O desenvolvimento é detalhado na revista Nature Biotechnology, no artigo "Telomere-to-telomere assembly of diploid cromossomos with Verkko". Com o novo software os investigadores podem avaliar melhor a diversidade genómica humana, assim como de espécies comumente usadas em pesquisas, como o rato, a mosca-da-fruta e o peixe-zebra. Acresce que a geração de sequências genómicas sem intervalos de uma variedade de plantas, animais e outros organismos trará suporte à genómica comparativa.
Já em maio, os cientistas do Consórcio de Referência do Pangenoma Humano, constituído por investigadores dos Estados Unidos, Reino Unido, França, Alemanha, Japão e China, anunciaram a publicação do rascunho do "pangenoma humano", que contém, até à data, a gama mais completa dos genes da espécie humana.
Recorde-se que o primeiro genoma humano sequenciado no início do século XXI (na época, 92% do genoma humano) permitiu identificar genes responsáveis por doenças específicas, iniciar pesquisas sobre medicina mais personalizada e trazer uma nova luz sobre o mecanismo da evolução humana. Agora, a versão preliminar do "pangenoma humano", descrita na revista científica Nature, agrega os genomas (toda a informação genética) de 47 pessoas com origem em África, nas Américas, na Ásia e na Europa. A Oceânia não está representada.
Ainda no campo da genética, em agosto deste ano, um consórcio de mais de cem cientistas mapeou o cromossoma Y (associado ao sexo masculino) na sua totalidade. A investigação revelou as estruturas das famílias dos genes reguladores dos espermatozoides e descobriu 41 genes adicionais no cromossoma Y.
Os cientistas desvendaram ainda as estruturas dos genes que se pensa poderem desempenhar um papel importante no desenvolvimento e funcionamento do sistema reprodutivo masculino. Por fim, o estudo demonstra que os genes no cromossoma Y contribuem para o risco e a severidade do cancro. "Agora que temos a sequência completa do cromossoma Y podemos identificar e explorar numerosas variações genéticas que podem ter impacto nas características humanas e nas doenças de uma forma que não podíamos fazer antes", adiantou o geneticista Dylan Taylor, da Universidade norte-americana Johns Hopkins, então citado em comunicado da instituição. O cromossoma Y tem sido particularmente difícil de descodificar devido aos seus padrões moleculares repetitivos. Os conhecimentos obtidos estão a ser incluídos em estudos sobre primatas para aprofundar a investigação sobre a evolução do cromossoma Y e analisar os genes que possam ser clinicamente relevantes para um tratamento personalizado para o cancro e outras doenças com origem genética, informava o comunicado da Universidade Johns Hopkins.
Das estruturas basilares da vida para as distâncias medidas em anos-luz do universo, o telescópio espacial James Webb, em órbita desde 2021, a mais de milhão e meio de Km da Terra, ofereceu em 2023 mais um contributo para os objetivos da sua missão: observar a formação das primeiras galáxias e estrelas, estudar a evolução das galáxias e ver os processos de formação das estrelas e dos planetas.
Os astrónomos recorreram a observações recentes feitas com o telescópio James Webb para estudar a atmosfera do exoplaneta WASP-107b, descoberto em 2017 na constelação Virgem, a 212 anos-luz da Terra. Este é conhecido como um "planeta fofo", um gigante gasoso de dimensões análogas a Júpiter, mas com menos de um décimo da massa do planeta hercúleo do sistema solar. O WASP-107b encontra-se oito vezes mais próximo da sua estrela do que Mercúrio está do Sol e orbita-a a cada 5,7 dias. A temperatura à superfície aproxima-se dos 500 ºC.
Em setembro deste ano, ao observar a atmosfera do WASP-107b, uma equipa de astrónomos europeus, encimada por investigadores do Institute of Astronomy, KU Leuven, descobriu não apenas vapor de água e dióxido de enxofre, mas também nuvens de areia de silicato. De acordo com a hipótese avançada pelos astrónomos, citados no site da referida instituição, a areia provavelmente age como a água na Terra, caindo como chuva em direção ao interior mais quente do planeta e depois evaporando novamente para formar nuvens. Em teoria, os astrónomos sabiam que as nuvens poderiam formar-se a partir de substâncias como sal, metal ou rochas. Esta pode ser uma descoberta pioneira de nuvens com aparências sobrenaturais, constituídas por metal líquido, e precipitação sob a forma de rubis e safiras. A descoberta é pormenorizada sob o título do artigo "James Webb Space Telescope detects water vapour, sulfur dioxide and sand clouds in the atmosphere of a nearby exoplanet".
Da grande escala para os meandros do cérebro, em março deste ano, investigadores da Universidade de Cambridge, no Reino Unido, e da Universidade Johns Hopkins, nos Estados Unidos, anunciaram um feito que envolveu 12 anos de investigação: um mapa de 3016 neurónios e 548.000 sinapses mapeava por completo o cérebro de uma larva da mosca-da-fruta (Drosophila melanogaster). O anúncio da investigação chegou com pompa e frases como uma "conquista histórica para a neurociência", por aproximar os cientistas da "verdadeira compreensão" do mecanismo do pensamento. O artigo que detalha o maior conectoma (mapa detalhado de conexões neurais no cérebro) pode ser lido online nas páginas da revista Science de 10 de março de 2023. "Sem conhecer a estrutura de um cérebro, estamos a adivinhar como os cálculos são implementados, mas, agora, podemos começar a entender mecanicamente como o cérebro funciona", referiu Joshua T. Vogelstein, engenheiro biomédico da Johns Hopkins.
Um estudo de 14 anos sobre uma lombriga, iniciado na década de 1970 pelo sul-africano nobelizado Sydney Brenner, revelou-se a primeira tentativa de mapear um cérebro. O estudo resultou num mapa parcial do cérebro do nemátodo. Dos anos de 1970 para o presente, foram desenvolvidos conectomas parciais de moscas, roedores, entre outras espécies. "Isto significa que a neurociência tem funcionado na sua maior parte sem mapas de circuitos", resumia aquando do anúncio da descoberta Marta Zlatic, da Universidade de Cambridge. Refira-se que a tecnologia atual ainda não permite mapear o conectoma de animais superiores, como os grandes mamíferos.
Em maio deste ano, a farmacêutica americana Eli Lilly fez notícia: um medicamento desenvolvido nos seus laboratórios, o donanemab, apresentava sinais de retardar o avanço da doença de Alzheimer entre quatro a sete meses. Os resultados de um ensaio clínico que envolveu 1700 doentes (com uma média de idades de 73 anos e 57% do sexo feminino) foram publicados a 17 de julho deste ano pela revista científica Journal of the American Medical Association e apresentados numa conferência da Associação Internacional de Alzheimer em Amesterdão, nos Países Baixos. De acordo com os resultados divulgados, entre os doentes a quem foi administrado o medicamento, 47% foram considerados estáveis um ano após o início do estudo, comparado com os 29% do outro grupo. O donanemab, administrado por via intravenosa, compõe-se de anticorpos produzidos em laboratório, dirigidos aos principais responsáveis pela doença de Alzheimer - os aglomerados de proteínas conhecidas como placas amilóides. O novo fármaco não se encontra destituído de efeitos colaterais. Três dos participantes do ensaio clínico padeceram de inchaço fatal do cérebro.
Este não é, porém, o primeiro medicamento a mostrar-se promissor contra a doença de Alzheimer: o lecanemab, desenvolvido pelas empresas Eisai e Biogen e já aprovado nos Estados Unidos, funciona de forma análoga ao donanemab
A cada dia, o equivalente ao carregamento de dois milhares de camiões de lixo lotados de plástico encontra o seu fim nos rios e oceanos. Reciclar mitiga o problema crescente dos resíduos de plástico. Os produtos são passíveis de serem triturados, derretidos e moldados em novos produtos. Em paralelo, a investigação científica apura novos métodos para lidar com estes resíduos. A 1 de novembro deste ano, a revista científica ACS Central Science divulgou uma descoberta assinada por investigadores da Universidade de Edimburgo. A equipa da Escola de Ciências Biológicas da referida instituição de ensino, desenvolveu uma bactéria que se alimenta de plástico, transformando-o em matéria-prima para produtos diversos.
A devoradora de plástico resulta da modificação da bactéria E.coli (Escherichia coli) e revela-se capaz de transformar de forma eficaz os resíduos de polietileno tereftalato (PET, patenteado em 1941), na composição das garrafas de plástico, em ácido adípico, utilizado para fabricar fibras têxteis, lubrificantes, plastificantes, adesivos, tintas e resinas, espumas flexíveis e rígidas, aplicações alimentares e de detergentes. Acresce que também serve a indústria alimentar, nomeadamente para tornar os sabores mais ácidos, surgindo em sumos de frutas ou em doces. Tem também aplicações em perfumaria, tintas e medicamentos. Stephen Wallace, professor de biotecnologia química na Universidade de Edimburgo e responsável pela pesquisa, salienta no referido artigo que "usamos uma técnica chamada biologia sintética, onde inserimos novos pedaços de DNA na E.coli que programam a célula para realizar novas reações químicas".
Os investigadores sublinham no artigo que publicam que o desenvolvimento de métodos sustentáveis de base biológica para a reciclagem de plástico é uma "abordagem elegante para a criação de uma economia circular de produtos químicos".
Antes desta descoberta o mesmo Stephen Wallace e a sua equipa já tinham desenvolvido uma estirpe da bactéria E.coli para transformar a principal componente das garrafas PET, o ácido tereftálico, em algo mais saboroso, e valioso, o sabor a baunilha do composto vanilina, uma substância usada para criar aromas artificiais.