Tinha de ser um dia raro aquele que assinala o Dia Mundial das Doenças Raras, o 29 de fevereiro. Mas tal não significa que a data seja assinalada só de quatro em quatro anos. Não. É assinalada todos os anos, mas no último dia de fevereiro.. É assim desde 2008, quando a Organização Europeia para as Doenças Raras decretou a data em parceria com mais 65 associações internacionais representantes de doentes. Mas, hoje, o dia já é assinalado em mais de 80 países, nomeadamente em Portugal. .No mundo inteiro estima-se que haja entre cinco a oito mil doenças raras identificadas, e a justificação para existência de uma só data que alerte para todas é simples. “Como são raras, a prevalência de cada uma é de uma pessoa para 100 000. Ou seja, cada doença pode afetar menos de 100 doentes no nosso país, por exemplo, mas o peso social para os doentes e para as famílias é elevado. Se estivermos unidos os resultados em busca de mudanças serão melhores”, explicaram ao DN. .O mote para o dia em 2024 é, precisamente, “Uni-vos pela mudança! Uni-vos pela equidade!”. E é isso que se está a tentar fazer em Portugal, no Grupo de Trabalho para as Doenças Raras, nomeado no ano passado pelo atual Governo, com a missão de construir um Plano Nacional, de que especialistas e doentes dizem ser “urgente a sua aprovação e implementação”. Por agora, e segundo explicou ao DN a coordenadora do grupo, “temos um projeto de plano assente em quatro pilares, mas vamos precisar de mais tempo para o finalizar”. .Maria do Céu Machado, médica, ex-diretora do Hospital Santa Maria e ex-presidente do Infarmed, explicou que o grupo foi nomeado em maio, que ela foi convidada para a coordenação em agosto, mas só a meio de setembro é que a sua constituição - que integra representantes de várias áreas ministeriais, desde Saúde, Educação, Segurança Social e outras, bem como associações de doentes - ficou completa, começando a trabalhar em outubro. “Começámos por fazer pequenas reuniões com instituições, centros de referência hospitalares onde estas pessoas são tratadas e com associações de doentes para perceber como se está a funcionar e o que é preciso mudar. No dia 29 de janeiro, tivemos uma reunião alargada, na Faculdade de Medicina de Lisboa, de dia inteiro, com todos os que participam no grupo e com a senhora secretária de Estado para a Promoção da Saúde, e foram definidos quatro painéis que devem ser os pilares do novo plano nacional”, referiu a médica ao DN. .A questão é que mesmo que este plano nacional ficasse pronto agora já não poderia ser aprovado por um Governo em gestão. “O grupo continua a trabalhar, mas vivemos uma situação muito especial, porque temos representantes de vários ministérios nomeados pelo atual Governo. Quando vier um novo governo, todos os elementos terão de colocar os lugares à disposição e o novo governo terá de decidir se nomeia outro grupo ou se este continua o que está fazer”, explica ainda. .De qualquer forma, Maria do Céu Machado acredita que poderá haver substituições pontuais, mas que este grupo “irá continuar a trabalhar, porque a área das doenças raras é tão complexa e importante para a sociedade que é urgente um plano nacional”. .Do registo da doença à integração dos cuidados.O despacho de maio de 2023 definia um prazo de 60 dias para a apresentação do projeto para um Plano Nacional para as Doenças Raras e mais 150 dias para a sua finalização e aprovação, o que quer dizer que “estaríamos a terminar agora o prazo para a discussão e aprovação do plano. Só que o grupo também foi constituído mais tarde e, obviamente, precisamos de mais tempo para finalizar o plano, mas temos definido os pilares e acreditamos que dentro de meses as doenças raras terão o seu plano aprovado”..De acordo com o trabalho efetuado por este grupo, o plano para estas doenças deve assentar em quatro pilares, integrando recomendações específicas para cada um deles. .Os pilares são: 1) Registo - a doença rara deve passar a ser registada no sistema informático clínico, o que ainda não existe; 2) Reorganização dos Centros de Referência - segundo explicou ao DN Maria do Céu Machado, hoje em dia há centros de referência que integram redes europeias e outros que não, “é preciso sabermos como estão a funcionar e os que são mesmo essenciais”; 3) Integração de Cuidados - este pilar tem como objetivo a articulação de cuidados entre as várias unidades de saúde, desde as de cuidados primários às hospitalares e às dos continuados, como entre as unidades de todas as outras áreas em que estes doentes também necessitam de respostas e de acompanhamento; 4) Informação e Investigação - profissionais, doentes, famílias, cuidadores e comunidades devem estar cada vez mais consciencializados para as doenças raras e para que todos possam ter acesso às melhores terapêuticas e à investigação que está a ser feita, como ensaios clínicos. .Cada ponto tem uma explicação, mas a prioridade das prioridades, tanto para a coordenadora do grupo como para o representante dos doentes, é mesmo o registo da doença no sistema informático clínico. Maria do Céu Machado explica: "As doenças raras têm hoje uma codificação que é genérica. A Europa usa o “Code Orpha” (Código Órfã), mas em Portugal muitos centros ainda não usam este código e não conseguimos saber ao certo quantas pessoas existem portadoras de doenças raras no país. Se houver um registo para a doença rara no sistema informático clínico, sempre que um doente se dirigir a uma unidade o médico que o observar tem acesso à informação e sabe que ele é portador de uma doença rara. Isto é importantíssimo para o acompanhamento dos doentes”..O registo será igualmente importante para se combater as assimetrias a nível de cuidados que ainda existem no país, aumentando a equidade de forma a que todos os doentes possam ter acesso aos mesmos tratamentos..Doentes querem comissão para execução do plano.Do lado dos doentes, há algumas exigências, porque, reconhecem, há vontade de fazer coisas boas, mas é preciso mais do que isso: “É preciso um compromisso.” Paulo Gonçalves, presidente da União das Associações de Doenças Raras, que também integra este grupo de trabalho, é perentório quando reforça que “é preciso um plano nacional, mas é preciso também que este seja concretizado”..E assume: “Há muita vontade de fazer coisas boas, e isso nós reconhecemos, mas depois há muita ineficiência, nomeadamente quando esbarramos nos cilindros de cada instituição. Além de um plano nacional, é preciso que haja um compromisso com metas, com datas, avaliação de resultados e com uma comissão de acompanhamento para a execução do plano que reporte diretamente à presidência de Conselho de Ministros”. .Do lado dos doentes, as expectativas para este ano eram muitas. Paulo Gonçalves chegou a afirmar que 2024 seria “um bom ano para as doenças raras”. Ao DN, diz que continua a acreditar nisto e, por isso mesmo, a exigência de “um compromisso”. “A razão tem a ver com o facto de este grupo de trabalho incluir vários ministérios e muitas instituições e, em caso de não entendimento, é necessário alguém que reporte diretamente à Presidência de Conselho de Ministros para tomar uma decisão. Este plano nacional é demasiado importante para o país”, conclui. .O representante das associações de doenças raras recorda mesmo que, em 2008, existiu um plano nacional para as doenças raras e que, em 2015, foi definida uma estratégia, mas nenhum avançou. Portanto, “se queremos resultados tem de haver um compromisso de que haverá uma comissão a acompanhar a execução do plano e o reporte a alguém que tome decisões, em caso de discordâncias”, reforça. .Para os doentes é essencial também que exista uma “maior transparência entre os vários participantes, incluindo as farmacêuticas, para que todos juntos pensemos num modelo, como já existe noutros países e noutras áreas, para fazer chegar o mais rapidamente possível aos doentes os novos medicamentos. Por exemplo, se for feito um ensaio clínico em Portugal com determinado medicamento isto tem de trazer vantagens para o país e para os nossos doentes”. .Paulo Gonçalves sublinha mesmo que aquilo que os doentes querem, no fundo, é mais celeridade e mais equidade nos tratamentos e nos cuidados de que necessitam. A existência de um plano nacional certamente que ajudará a atingir este objetivo, por isso, reforça, é preciso que este seja definido e posto em prática, esperando que haja resultados, pelo menos, dentro de meses.