Presidente da Associação dos Administradores Hospitalares defende que SNS tem de reorganizar os seus recursos e médicos devem dedicar-se às tarefas exclusivas.
Presidente da Associação dos Administradores Hospitalares defende que SNS tem de reorganizar os seus recursos e médicos devem dedicar-se às tarefas exclusivas.Global Imagens

Mais de 30% das reformas no SNS são de médicos e a situação “vai agravar-se mais”

Nos últimos cinco anos, houve 10 008 profissionais que se reformaram no SNS. Destes, 3226 são médicos. E o presidente da Associação dos Administradores Hospitalares diz que o pico das reformas está para chegar. A discussão sobre a reorganização dos cuidados é "urgente", porque “é solução para a escassez de médicos”.
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Margarida Agostinho começou a trabalhar no Serviço Nacional de Saúde (SNS) em 1981, altura em que iniciou o então Internato Geral, que era de dois anos, agora Ano Comum e só de 12 meses. Em janeiro do ano passado, deixou a prática clínica para gozar “o descanso” merecido da reforma. Foi uma dos 816 médicos que se aposentaram. E, no caso dela, diz “foi um corte com o SNS”. 


Voltando a 1981, e aos dois anos de Internato Geral, que considera terem sido “muito importantes na aquisição de experiência”, explica que foi aqui que saiu de Lisboa, cidade Natal onde se formou, para o Algarve, onde depois fez a especialidade de Medicina Geral e Familiar, terminada em 1985, e toda a vida clínica, em exclusividade no SNS e por acreditar que este “é uma mais valia para o cidadão e para o país”. Embora confesse que, nos últimos anos, “tudo se complicou”. É claro que houve coisas positivas e algumas melhorias, em termos tecnológicos no apoio à prática clínica, mas ficámos cada vez mais limitados no tempo dedicado ao doente”, diz, assumindo mesmo que “em termos de reposta, o SNS degradou-se muito”. 

Talvez por isso, e quando lhe perguntamos se não tem saudades de deixar 40 anos de prática clínica, Margarida Agostinho comece por enumerar tudo o que considera estar a prejudicar os cuidados aos doentes, desde a falta de recursos humanos e materiais ao aumento da burocracia, à falta de diálogo por parte das chefias com quem está no terreno para se encontrarem soluções.

“Era coordenadora de uma unidade e só comunicava por email com as chefias”, desabafa, explicando: “A estrutura do SNS, desde o ministério às regiões, funciona hoje de uma forma em que parece que as pessoas não interessam. Não é que quiséssemos um reconhecimento emocional, mas quem está anos e anos no terreno, na linha de frente a dar tudo, merece reconhecimento, ou, pelo menos, ser ouvido”. Porque, senão, “às tantas, começamos a pensar: ‘Se só me dificultam a vida é porque não me querem aqui. É porque o meu lugar não é este’”.

E, à medida que a idade avança, a ideia de reforma aos 66 anos começa a fazer sentido. Talvez por isso diga que a sua reforma “é um corte com o SNS”:  “Nunca coloquei a hipótese de manter a minha atividade no SNS ou de voltar a exercer”.


Quando lhe perguntamos se tal não pode mudar, afirma primeiro que “não”, depois “não sei” e, por fim, “acho que não”. Por outro lado, afinal, diz: “Tenho saudades sim, dos doentes e da equipa, estávamos juntos há muito tempo, acho que funcionávamos muito bem e éramos como uma família. Os colegas mais novos que chegavam então eram mesmo como uns filhos”. Mas volta ao mesmo: “A situação no SNS está muito complicada e quem tem a hipótese da reforma ainda aguenta, mas quem está longe fica frustrado e o burnout chega mais cedo”.


Margarida Agostinho vive há um ano a fase do “descanso”, aquela em que tem “mais tempo para a família” e “maior leveza”. “Deixei de ter a angústia de domingo. Era horrível, começava logo a pensar: ‘O que me irá acontecer esta semana’. Agora, não tenho nada disso”, desabafa. É uma dos mais de 800 médicos que se reformaram em 2023, o pior ano desde 2019, mas que o presidente da Associação Portuguesa dos Administradores Hospitalares (APAH), Xavier Barreto, diz que “ainda não é o ano do pico das aposentações de médicos”. “A situação vai agravar-se mais”, sublinha ao DN.

Margarida Agostinho começou a exercer em 1981, em 1985 tornou-se médica de Medicina Geral e Familiar, em 2023 reformou-se.

Pico das reformas pode acontecer a partir de 2026


As previsões apontam para que este pico chegue de 2026 a 2028 ou mais tarde. O certo é que chegará quando o boom da geração de médicos que se formou nos anos imediatamente a seguir ao 25 Abril, final dos anos de 1970 e início da década de 1980, atingirem a idade da reforma.

Xavier Barreto explica: “Há vários estudos recentes, um deles do professor Pita Barros, da Universidade Nova de Lisboa, que demonstram que o pico de aposentações dos médicos no SNS deverá acontecer, se não estou em erro, a partir de 2026, mas como alguns continuam a trabalhar após os 66 anos isto pode enviesar as previsões”.

O pior é que logo a seguir a esta geração vem a dos anos de 1990, aquela em que se limitou o acesso à faculdade pelos numerus clausus. Ou seja, há menos médicos com idade para ir para a reforma, mas a verdade é que muitos destes são os que estão a desistir do SNS.

“Estamos a colher os frutos das decisões que não tomámos há mais de dez anos, quando já se avizinhava esta realidade. E o que estamos a fazer agora, a aumentar o número de vagas na formação médica, não será suficiente para reverter a situação no imediato. Um médico leva, no mínimo, seis a 12 anos a formar-se, o que fará com que tenhamos mais uma década pela frente até termos mais médicos. E os doentes precisam de respostas imediatas”.


De acordo com os dados disponibilizados esta semana ao DN, pela Administração Central dos Sistemas de Saúde (ACSS), nos últimos cinco anos reformaram 10 008 profissionais do SNS, sendo que 3226 eram médicos, o que demonstra que entre as dez categorias profissionais existentes no serviço público mais de 30% das reformas ocorreram numa só classe (ver tabela). Do total de reformas, fazem parte 997 de enfermeiros.

As restantes distribuem-se por farmacêuticos, assistentes operacionais, técnicos de diagnóstico, técnicos de saúde, etc. Os números mostram ainda que, de 2019 a 2023, as contratações de médicos não conseguiram sequer colmatar as saídas por reformas e por rescisões.

Basta olhar para 2023, em que, e segundo os dados da ACSS, o SNS entrou no mês de janeiro com 32 705 médicos e terminou com 31 307, menos 1418 profissionais (816 reformaram-se e 602 saíram por rescisão).

Em relação aos enfermeiros, o balanço é positivo - o ano começou com 50 718 profissionais e terminou com 50 852 -, embora o dirigente da APAH afirme que “sobretudo na região de Lisboa e Vale do Tejo há cada vez mais dificuldade em contratar enfermeiros”.


Na semana passada, o DN publicou dados da ACSS relativos às rescisões definitivas no SNS no mesmo período (2019 a 2023). Ao todo, foram 19 598, e deste total 5043 eram médicos e 5134 enfermeiros. No final, se tivermos em conta os dados oficiais das saídas por rescisões de contrato e por reformas, o SNS perdeu 29 606 profissionais.

Embora a ACSS, na resposta ao DN destaque que dos 3226 médicos que se reformaram nestes cinco anos, 363 voltaram ao SNS ao abrigo do regime especial de contratação de aposentados. No caso dos enfermeiros, nestes cinco anos, e do total das 997 reformas, só um voltou, o que é significativo. “Temos ótimos enfermeiros que ganham o dobro ou o triplo do salário noutros países e que preferem emigrar”, afirma. 


A ACSS sublinha ainda o aumento de médicos e de enfermeiros entre 2015 e 2023, verificando-se um aumento de 23,7% nos primeiros e de 31,5% nos segundos. 


Reformas podem aumentar utentes sem médico de família


Mas estes números da ACSS levam a um alerta de quem dirige unidades de saúde: “Até podemos ter mais profissionais e o SNS até pode estar a produzir mais, a grande questão é que isto não é suficiente para dar resposta à procura”. Xavier Barreto especifica que “os cuidados primários ainda não atingiram a atividade pré-pandemia, e sabemos que parte importante destas reformas estão a acontecer na Medicina Geral e Familiar”. Ora, desta forma, “o problema do acesso aos cuidados vai agravar-se”.

“O número de 1,7 milhões sem médico de família pode aumentar, limitando assim a capacidade de os doentes chegarem aos hospitais. E de nada vale termos hospitais mais capacitados, com mais profissionais, maior capacidade de reposta e mais atividade se depois os doentes não conseguem ter um médico de família que os referencie”.


Não é a primeira vez que a APAH alerta para o circuito assistencial de um doente no SNS e para a reorganização da prestação dos cuidados, mas o presidente dos administradores insiste que a solução para escassez de recursos passa por alterações nestas áreas. Aliás, diz mesmo: “Eram estas questões que deveriam estar a ser discutidas nesta fase que antecipa as eleições ou nos debates entre líderes, e não outras. Como poderemos tirar partido dos recursos do SNS é a questão”.


Para o dirigente, esta discussão tem de “ser feita agora e é urgente. Não há alternativas e pode ser a solução para colmatar a escassez de médicos e a forma de se dar resposta aos doentes nos próximos anos”, reforça. Xavier Barreto sabe que “será uma discussão difícil”, mas na qual “todos devemos ser chamados a participar”, salientando que “qualquer mudança ser feita com acordo das classes profissionais”. 


Mas a que se refere quando fala de reorganização de cuidados? “Refiro-me a concentrarmos os médicos nas tarefas que são exclusivamente suas e onde acrescentam mais valor, como primeiras consultas, diagnósticos e na definição de planos de tratamento”, responde. Por outro lado, “chamava outros profissionais, como os enfermeiros, para outras tarefas, como acompanhamento de doentes crónicos. Com isto não quer dizer que vamos retirar funções a uns para dar a outros, não. São tarefas que os enfermeiros já têm na prática e espero que as pessoas percebam isto”. “Não estou a falar de nada novo. Há imensos países no mundo, Nova Zelândia, Canadá, Reino Unido e outros, onde isto já acontece”, acrescenta.


Enfermeiros podem assumir mais tarefas


A valorização das competências é uma reivindicação de há muito da enfermagem. O bastonário, Luís Filipe Barreira, diz até que é uma prioridade do seu mandato e Xavier Barreto diz esperar mesmo que o seja.

“Temos de ter a noção que os enfermeiros de hoje não são os de há 40 anos, e as suas funções não evoluíram assim tanto. A questão é que hoje temos profissionais licenciados e especialistas, que estão preparados para estas e outras tarefas”.

E dá um número para sustentar o que diz: “Entre 60% a 75% das consultas no SNS são de acompanhamento de doentes. Se temos médicos a fazê-las, não os temos nas primeiras consultas nem nos diagnósticos”.


Por isso, sublinha, “nesta altura, não tendo o SNS capacidade para dar resposta à procura, é urgente que se se encontrem novas formas de organização da prestação dos cuidados”. “Com isto não estou a dizer que não é necessário valorizar e remunerar melhor os médicos. Não. Estou a dizer que temos de concentrar os recursos médicos nas tarefas que lhe são exclusivas”, salvaguarda. 


A falta de respostas e o agravamento da situação é tão mais preocupante quando se pensa que, neste momento, Portugal tem uma realidade marcada por dois movimentos. Por um lado, “menos médicos, devido às rescisões e às aposentações, por outro uma população mais idosa, com uma esperanças de vida mais longa, com mais dependência e com mais procura de cuidados”.

Perante esta realidade, o administrador hospitalar não coloca sequer a hipótese de esta “discussão não ser feita agora”. Aliás, “não for feita agora, será depois pela pressão social, que exigirá mudanças”. 


A par da reorganização dos cuidados, Xavier Barreto defende ainda que seja feita a revisão do circuito assistencial do doente, que só entra no SNS através dos cuidados primários, de forma a aliviar a duplicação de consultas, por exemplo. “No setor privado, o doente pode procurar diretamente o apoio de um psicólogo, quando sabe que está com um problema de saúde mental, ou de um fisioterapeuta, quando tem um problema osteoarticular. No SNS isso não é possível, porque há um gargalo que afunila os cuidados”.


A discussão que pode levar a mudanças no SNS pode não ser fácil, mas o administrador relembra que “não há muito mais oportunidades” e que “este é o caminho a seguir nos próximos anos. Temos fé que esta discussão será tida em breve”. 

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