Luís Cunha Miranda é médico especialista da área da Reumatologia e foi o escolhido pelo bastonário dos médicos, Carlos Cortes, para coordenar o Observatório do Ato Médico (OAM), criado em fevereiro, e a funcionar há pouco mais de um mês. O objetivo deste organismo, como assume nesta entrevista ao DN, é “a defesa do melhor cuidado ao doente”, rejeitando que na base da sua criação esteja qualquer princípio “corporativista”. “Não vamos estar a trabalhar contra pessoas ou contra qualquer profissão”, mas "é preciso definir o que é Ato Médico, devolvendo aos médicos o que é dos médicos". O OAM vai receber e trabalhar as denúncias de utentes ou de profissionais que lhe cheguem sobre “usurpação de funções” ou de “falsa medicina”, como algumas que já estão a ser tratadas: “Farmacêuticos a fazerem procedimentos estéticos, enfermeiros a fazerem lipoaspirações ou fisioterapeutas a fazer infiltrações”, explica. Cada queixa será avaliada e, se for caso disso, enviada às entidades competentes na Saúde e Justiça. O que levou à criação do OAM, o aumento de queixas sobre a qualidade da prática médica ou a necessidade de definir melhor o que é o ato médico e como este deve ser praticado?Diria que as duas coisas. A primeira porque o ato médico só foi definido em lei recentemente, com a revisão dos estatutos da Ordem dos Médicos. Pode dizer-se que levou mesmo mais de 80 anos a ser legalizado, porque a primeira referência ao ato médico num decreto-lei é de 1942. E só passados 82 anos é que realmente se definiu o ato médico, e, a meu ver, mal, com diversas incongruências e com diversas debilidades.Porque é importante essa definição?Precisamente porque define o que é exclusivo dos médicos, mas a criação do OAM não tem tanto a ver com a análise da prática da medicina, porque essa cabe à própria Ordem, aos seus Colégios e aos Conselhos Disciplinares e de Ética. Este observatório é muito mais para proteger os doentes da falsa medicina, de falsos médicos e dos procedimentos que não devem ser feitos por não médicos e que neste momento estão claramente em expansão.Mas como é que o OAM poderá defender os utentes? Somos um grupo de médicos de diversas especialidades que vamos dar apoio à Ordem na gestão das situações em que é denunciado que alguém está a exercer um ato médico sem ter capacidade para o fazer. Este é o objetivo do OAM. É defender o ato médico, aquilo que são funções dos médicos, seja prescrição, diagnóstico, acompanhamento ou seguimento de doentes, porque isto é a base da profissão médica e da relação médico doente, o que é prioridade absoluta da Ordem.Concretamente, o que pode mudar com o OAM?A Ordem sempre tratou deste tipo de queixas, que visavam a usurpação de funções ou de falsa medicina, mas estas acabavam por não ser tratadas de forma concentrada. Não havia uma estrutura definida para avaliar estas situações. E o que se está a tentar fazer agora é ter uma estrutura que centralize estas situações e que consiga aumentar a capacidade de resposta a quem se queixa, já estamos a precisar disso.Porquê? Este tipo de situações, usurpação de funções, está a aumentar? Existe bastante, pelo menos, é o feedback que temos. Basta dizer que o OAM está a funcionar há pouco mais de um mês e já temos cerca de 20 queixas que estão a ser tratadas. Muitas delas com farmacêuticos a fazerem procedimentos estéticos, enfermeiros que estão a fazer lipoaspirações, fisioterapeutas a fazer infiltrações ou ecografias, podologistas a fazer cirurgias, etc. Tudo isto são situações que aumentam os riscos para os utentes. Portugal tem demasiados brandos costumes e mete no mesmo saco profissões que não têm a mesma capacidade técnica, não só a sociedade em geral como o poder político. E o que é capacidade técnica não pode ser avaliada por achismos ou por imposições legislativas. Tem de ser de acordo com a formação e capacidades técnicas adquiridas pelos profissionais ao longo do tempo. Imagine que nos aparece uma situação em que há usurpação de funções por parte de um farmacêutico que está a fazer procedimentos estéticos. Temos vários colégios que nos podem dar apoio em termos de validação do que está a acontecer e depois será o OAM a fazer queixa às entidades que achar que se justificam, inclusive a outras ordens profissionais.Fala no poder político, porquê? Não tem havido vontade política para fiscalizar situações de falsa medicina ou de usurpação de funções? Na minha opinião, não houve por parte do poder político vontade nem capacidade de definir o que é o ato médico. Isso foi claro até aos dias de hoje. Pelo contrário, o poder político tem interferido em decisões técnicas, ao dar por decreto capacidades técnicas a certas profissões que não as têm. Dou-lhe um exemplo muito simples. Só existe vacinação nas farmácias há cerca de 10 a 15 anos, e tal só foi aceite para se aumentar a rentabilidade das farmácias num período de diminuição de ganhos com a introdução dos genéricos. Ou seja, a lógica não foi porque os farmacêuticos tivessem competências técnicas para isso, não foi para melhorar a qualidade dos cuidados, nem o acesso aos cuidados, porque este existe e deveria ser potenciado nos centros de saúde. Teve a ver com outros interesses. O que estou a dizer é que, por vezes, o poder político é demasiado sensível a lobbies e a pressões que interferem no que é a competência técnica de uma profissão. Dou-lhe outro exemplo, hoje em dia há uma campanha clara para se permitir que os partos simples sejam feitos por enfermeiros...Segundo os enfermeiros tal é para libertar os médicos para outras funções nos serviços...Mas que funções é que os médicos não desenvolvem e deveriam desenvolver? A questão é que não podemos substituir médicos por não médicos em tarefas que são essencialmente médicas. Isso é estar a diminuir a qualidade dos cuidados e a aumentar os riscos para os doentes.Por exemplo, e relativamente ao facto de as farmácias poderem vir a diagnosticar situações ligeiras, como infeções urinárias e poderem prescrever o antibiótico que faz parte do protocolo. Também não é possível?Não têm capacidade para tal. O diagnóstico não faz parte do ato farmacêutico nem a prescrição. É uma confusão propositada e, até diria, orquestrada por uma rede privada de saúde, que são as farmácias, havendo riscos graves para a saúde pública. Um dos maiores riscos de hoje é a resistência aos antibióticos e permitir que pessoas que não têm capacidade técnica, porque não têm essa formação, pois não faz parte do âmbito das ciências farmacêuticas, possam fazer diagnósticos ou prescrever antibióticos é aumentar os riscos para a saúde pública. Um médico leva 11 a 13 anos para ser especialista , sendo que grande parte da sua formação está centrada no diagnóstico, na avaliação do doente, no exame objetivo e na proposta terapêutica. E não podemos, à luz de decretos, diminuir a qualidade assistencial, invocando uma proximidade que não existe.Mas esta situação não é a prioridade do Observatório, certo? As nossas prioridades serão a usurpação de funções do que é o ato médico, mas vamos também propor, do ponto de vista estratégico, a avaliação do que dizem os websites ou as redes sociais de clínicas, que dizem ter médicos para determinados procedimentos e, depois, não têm. Tem de haver uma clarificação em relação aos profissionais que uma clínica diz ter para o exercício da sua atividade, que profissionais tem e quais são os procedimentos que fazem. Há uma grande confusão e isso é uma forma ardilosa de enganar os doentes e o público em geral. O aumento deste tipo de situações tem a ver com o facto de a sociedade portuguesa estar pouco habituada a escrutinar ou porque o Estado fiscaliza mal? Isso tem a ver com a falta de literacia para a área da Saúde, que é também uma das prioridades da Ordem dos Médicos e vai ser do observatório. Vamos tentar amortecer essa falta de literacia evitando que as pessoas sejam enganadas. Para nós, este é um ponto fundamental. Em relação ao Estado, acho que supervisiona mal, tanto nesta área como noutras, mas acho que as entidades da Saúde têm feito algum trabalho, apesar de, quando supervisionam é com poucos meios ou com pouca capacidade técnicas, e acho que se pode melhorar muito neste campo. Mas é importante que fique claro que o OAM não é um organismo corporativista, para atacar outras profissões. É um organismo que tem como propósito a defesa estrita do que é o melhor cuidado para o doente. Como é que os utentes poderão chegar até ao Observatório para fazerem as suas denúncias?Neste momento, o circuito está praticamente definido, mas a questão informática ainda não. Mas haverá um local específico no site da Ordem para que as denúncias possam ser feitas e o observatório iniciar o percurso habitual, que é: avaliar a denúncia e ver se é necessário o apoio de algum dos colégios. No fundo, o observatório servirá para agregar todas as queixas que cheguem à Ordem, quer sejam queixas de médicos que observam situações irregulares, de doentes que entendam que alguma coisa que não deveria ter sido feita por não médicos está a ser feita e vai dar apoio às entidades do Estado que supervisionam e têm capacidade inspetiva nestas matérias. Queremos ser parceiros destas entidades, que tantas vezes precisam de um apoio mais técnico. Estou a falar de entidades como Entidade Reguladora da Saúde, Inspeção Geral das Atividades em Saúde, a própria ASAE e até o Ministério Público. .Óscar Gaspar: "Preço muito aquém da estrutura de custos vai tornar impossíveis muitos atos médicos"