Luís e Cristina: o casal do Totolouco

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Não, não foi só pelo dinheiro. Se fosse só pelo dinheiro - neste caso, muito - haveria um motivo racional e sensato para toda aquela contenda, assim mais do que justificada. Tudo indicia, porém, que, na acesa briga pelos milhões, um ror de oiro!, estiveram envolvidas outras e várias coisas, noções nortenhas velhíssimas, questões de orgulho e de honra, de amor próprio, mescladas com uma atávica desconfiança no mundo e nos outros, com o pavor de ser enganado por estes, de fazer figura de tanso e de lorpa e de ser crismado como tal.

Note-se que Luís e Cristina viviam num meio rural e pequeno, algures no país profundo, lá ao Minho Pitoresco, o clássico de José Augusto Vieira, terra de épicas disputas, famosa pela astúcia das suas gentes, um mundo em que ainda hoje se mata por um curso de água, por uma questão de partilhas, pelas extremas de uma courela, um mundo em que todos se conhecem, andaram juntos à escola, e em que, por isso, o supremo opróbrio é ser apontado nas ruas, nos cafés, nas boticas, como o tolito da vila a quem comeram as papas na cabeça.

Note-se, também, que à refrega se associaram as respectivas famílias e que estas, ao invés de funcionarem como um elemento de moderação e bom senso, actuaram como catalisadores e incentivadores da peleja, envolveram-se nela até ao pescoço. Além do guito, e muito mais importante do que ele, aqui jogou-se o pundonor de dois clãs, o brasão plebeu dos Simões, de um lado, e dos Ribeiro, do outro. Só isso explica, só isso pode explicar, o afã judiciário de ambas as partes, irracional e tremendo, que as fez estarem anos a fio sem porem as mãos na massa, gastando tempo, paciência e muitos milhares de euros com processos, custas, advogados.

Em síntese, o que aconteceu em Barcelos, no ano de 2007, foi ainda, e em boa parte, um vestígio ou resquício do Portugal medievo, a prova provada de que, apesar das autoestradas e da Europa, há coisas que jamais mudam, e que são lusitanas e nossas, muito nossas, demasiado nossas.

Desenganem-se, pois, os que pretendam ver no caso de Luís e de Cristina apenas mais um exemplo, entre tantos outros, da eterna e universal cupidez humana, dos extremos autodestrutivos e suicidários a que pode levar a ambição pela riqueza, tema amplamente tratado pela literatura desde os tempos mais remotos até à actualidade, num arco temporal que vai do conto "Os Quatro Ladrões", das Mil e Uma Noites, até a "O Tesouro", de Eça de Queiroz (de resto, assaz inspirado naquele). Pelo mundo fora, há situações em tudo iguais à deste casal de Barcelos, quase tiradas a papel químico, como uma, recente, de 2020, passada na Pensilvânia, em que um tribunal obrigou um homem, Jeffrey Jones, a partilhar o prémio da lotaria com a sua ex-namorada, Ruthann Colachino, já que também ela contribuíra para a afortunada aposta. Em Novembro do ano passado, um outro caso similar, desta feita em Sanford, na Florida, com ela a terminar 14 anos de namoro e a fugir com o bilhete premiado, apesar de este ter sido comprado a meias (em tribunal, o queixoso acabaria a ver navios pois, segundo a Lei Contra Fraudes da Florida, o acordo de partilha deveria ter sido reduzido a escrito). Também recentemente, em Setembro de 2022, houve notícia de um casal britânico, Kirk Stevens e Laura Hoyle, que se separou um ano depois de ganhar milhões na Lotaria Nacional, com ela a chutá-lo fora de casa e a ficar com o prémio todo, isto apesar de terem apostado os dois em conjunto (segundo a lei do jogo inglesa, o vencedor é quem compra o bilhete, mesmo que tenha existido uma sociedade para esse efeito). Na distante Austrália, também no ano passado, uma desavença conjugal terminada em divórcio: seguindo uma tradição familiar de muitos anos, um homem deu a um primo, como presente de Natal, uma raspadinha minúscula, no valor de cinco dólares (australianos), a qual, porém, continha uma fortuna oculta, 70 mil dólares, também australianos; a mulher increpou o marido por ter oferecido ao primo essa quantia astronómica, 70 mil AUD, ademais quando passavam dificuldades, ele ainda tentou convencê-la de que só gastara cinco na oferta natalícia, mas ela, contra todas as evidências, mais do que óbvias, não se comoveu, nem demoveu. Na América, dois namorados de 24 anos, por sinal bem giros, foram há pouco ostracizados para sempre pelas respectivas famílias, pelo singelo motivo, bastante válido, de não terem querido partilhar com elas um avultado prémio da lotaria. E, no Canadá, em 2018, uma reformada escusou-se a repartir o bodo com um sobrinho, apesar de o nome deste figurar no boletim da sorte e no cheque-gigante com que ambos foram fotografados pela imprensa; garantiu a aposentada que gostava do rapaz "como um filho", mas, perante a desfaçatez dele e dos seus pais, que reclamaram para si metade do prémio, desistira de dar-lhe os 150 mil euros que prometera. Naturalmente, o caso acabou em tribunal, sem fim à vista.

Regressando a Portugal, e ao Verde Minho, houve uma notícia curiosa, de Março de 2018: um conjunto de 16 operários da fábrica Mabor Continental fez a habitual "vaquinha" no Euromilhões, que um deles, inominado, adquiriu no Café Ribeiro, à Freguesia de Lousado, Vila Nova de Famalicão; uma semana depois, ou mais, ainda ninguém reclamara o prémio - maquia grossa, 61 milhões -, pois o apostador, decerto zonzo por tanta fortuna, meteu baixa na empresa e esfumou-se para parte incerta; vários colegas seus fizeram o mesmo, mudaram de telemóveis, já que, afiançou a irmã de um deles, estes não paravam de tocar a toda a hora, com chamadas de agências e gerentes bancários, de gente a pedir empréstimos e a apelar à caridade (até o pároco local, imagine-se, ligou a solicitar um donativo). Enquanto isso, um jovem de 19 anos, que trabalhava perto do Café Ribeiro, pôs-se a exibir pela terra, pedindo dinheiro por conta, uma fotocópia martelada do bilhete premiado, dizendo aos incautos que o original verdadeiro estava guardado num cofre e que precisava muito de um adiantamento em cash (cf. O Minho, de 23/3/2018). Mais recentemente, já em Abril deste ano, a Judiciária deteve dois alegados astrólogos, de 51 e de 32 anos, que escolhiam vítimas especialmente indefesas e vulneráveis e lhes propunham a compra de um bilhete do Euromilhões premiado, mas obviamente falso. Com o esquema, ganharam mais de 500 mil euros, ou mais, burlando dezenas de incautos do Concelho de Barcelos, Distrito de Braga, ao velho Minho.

Era também por aí, no Lugar de Boavista, Freguesia de Courel, Concelho de Barcelos, que morava (e ainda mora) o jovem Luís Ribeiro. Levava uma existência pacata: ajudava os pais na lavoura, ordenhando as vacas de manhãzinha, e trabalhava numa firma de Barcelos, das 9 às sete da tarde, com duas horas (!) para almoço, o que lhe permitia ir comer a casa. Todas as sextas-feiras, quando regressava ao trabalho após o almoço, parava no Café Brandão, Freguesia de Alvelos, para apostar no Euromilhões. No dia 19 de Janeiro de 2007, quando fazia o seu percurso de sempre, recebeu uma sms de Cristina, a namorada, dizendo-lhe para não se esquecer de apostar e dando-lhe os números mágicos. Era um rito de namoro, adoptado praticamente desde que começaram a sair juntos, talvez uma prova de fidelidade mútua, de partilha do mesmo sonho, sobre o qual deverão certamente ter falado muitas e muitas vezes, na habitual conversa onírica sobre o que faremos caso nos saia o jackpot do Euromilhões. Para os namorados já espigadotes, mas que ainda moram em casa dos pais, apostar a meias nos jogos da sorte e azar é uma forma de antecipar a conjugalidade, de demonstrar um ao outro que se amam e que querem ficar unidos para todo o sempre, nos maus e nos bons momentos.

Ao contrário dos que jogam em comandita, e que por essa via apostam mais alto, exponenciando as hipóteses de ganho, Luís e Cristina gastavam pouco, dois, quatro euros, no máximo, fazendo-o, pois, apenas pelo jogo do jogo, por brincadeira íntima, muito inocente, típica dos casalinhos, que noutros ensejos trocam entre si finas alianças de prata ou corações de plástico, inscrevem os nomes dos amados no antebraço ou no cóccix, gravam nas árvores ou pintam nas esquinas ardentes juras de amor eterno. Depois, em caso de ruptura, devolvem-se os presentes ofertados, retornam a casa os peluches, removem-se as tatuagens, rasgam-se as cartas perfumadas ou, enfim, actualizam-se os rabiscos nas paredes, perto da casa da ex- (geralmente, "Vaca" ou "Porca", quando não pior).

Aqui reside o trágico desta história: tudo leva a crer, pois não há razão alguma para duvidarmos disso, que Luís e Cristina acreditaram no sentimento que os unia - e na sua perenidade - e fizeram decerto mil planos para um futuro a dois, ela de robe, ele de pantufas. Nesse transe apaixonado, esqueceram-se, porém, que até o amor mais sólido é sempre contingente e precário, sobretudo quando sofre um abalo desta natureza e grandeza, ademais inesperado. 15 milhões de euros, tal foi a magnitude do tsunami, a um tempo financeiro e emocional, que deitou por terra a esperança e o sonho daquele par de Barcelos.

Para agravar o imbróglio, fora Cristina a fornecer a chave vencedora - 5-13-27-33-42, mais as estrelas 2 e 4 -, mas tinha sido Luís a meter o boletim à caixa, lançando as sortes (e como a vida destes dois seria hoje diferente se, por uma infinitésima diferença, em vez de um 5 tivesse dado 6, ou se a estrela fosse 3, não 4 ou 2). Pior ainda, Luís fez três apostas: duas com o seu dinheiro, no valor de quatro euros, e uma por conta da amada, com a chave dada por ela, dois euros. Depois, na alegria do ganho, cada qual comunicou aos pais a sua nova condição de milionários sem esforço: Cristina falou com Augusto e Maria; Luís informou Joaquim. Cristina pediu então o boletim a Luís, este passou pela casa dela eram 20h30 de 20 de Janeiro de 2007 e entregou-lhe o papel abençoado, recebendo dois euros de troco (só ele não terá percebido, ó tonto!, o ardil que essa devolução implicava).

Nesta fase, quando ainda se davam bem, decidiram ir todos juntos até Lisboa, sacar o prémio, trazer a cheta. Luís e Joaquim, de um lado, e Cristina, Augusto e Maria, do outro, encontraram-se na Estação de Serviço de Viatodos, depois tomaram o comboio até à capital, onde foram recebidos pela Dr.ª Marta, da Santa Casa. Disse-lhes Marta, sobre a narta, que a Santa Casa não poderia emitir mais do que um cheque, assim mandavam os regulamentos. Cristina sugeriu então que o bendito do cheque fosse passado à ordem de seu pai, Augusto, "por razões de segurança" e por ser "pessoa com maior experiência de vida". Foi também decidido que, no "termo de identidade" do ganhador do prémio, figurasse o nome de Augusto. Luís e seu pai anuíram, estavam de boa-fé. Dias depois, foram todos à Caixa de Crédito Agrícola, onde abriram duas contas, uma em nome de Luís, de Cristina e dos pais desta, e outra em nome só de Luís e de Cristina. Para esta última não foi transferida verba alguma, mas Luís foi recebendo algumas quantias na sua conta pessoal, cerca de 75 mil euros ao todo, do mesmo passo que outro dinheiro ia escorrendo alegremente para a conta pessoal dos pais de Cristina.

Cada qual comprou um computador, namoraram ainda um ano, mas depois desentenderam-se. Luís tentou movimentar a conta bancária, para dar algum aos seus pais, mas os Simões opuseram-se e, sem eles, nada feito, o banco não permitia. Em resposta, Luís atravessou uma providência cautelar nas Varas Cíveis de Lisboa, para que os pais de Cristina não pudessem mexer mais no dinheiro. E assim aconteceu. Estiveram dois anos nisto, até o Tribunal de Barcelos dar parcial razão ao rapaz, dizendo que existira uma "sociedade irregular" entre ele e Cristina e que, por isso, deveriam dividir o prémio. Desatendeu a justiça ao pedido guloso de Luís, o qual, por ter metido quatro euros em jogo, contra só dois da amada, reclamava para si dois terços da massa. Mas, em contrapartida, o Tribunal desatendeu de igual modo ao argumentado por Cristina, também bastante gulosa, que reivindicava a "autoria intelectual" da chave ganhadora e, logo, a totalidade do ganho. À maneira salomónica, entendeu o juiz de Barcelos dividir o capital pela metade, acrescido dos vencidos juros, o que perfazia cerca de 8 milhões de euros para cada um dos pombinhos.

Houve recursos e, em 19 de Abril de 2011, ou seja, mais de quatro anos depois do dia premiado, a Relação de Guimarães confirmou a sentença da 1.ª instância, ordenando a repartição equitativa dos ganhos. Cristina, que antes recusara sucessivas tentativas de acordo, propostas por Luís e pelo próprio tribunal, ainda subiu ao Supremo, imagine-se, mas este, em acórdão de Julho de 2012, negou provimento ao seu recurso de "excepcional revista".

Foi, de facto, uma excepcional revista aquela a que o país assistiu durante cinco anos, ou mais. Às tantas, no decurso do julgamento em 1.ª instância, o juiz Jorge Teixeira irritou-se com as versões tão contraditórias dos antigos namorados, indiciadoras de que um, ou ambos, mentiam descaradamente à justiça. Palavras ásperas: "Ando nisto há 20 anos e poucas vezes vi uma coisas destas. Como é possível duas pessoas que viveram a mesma realidade dizerem coisas opostas? Isto tem um nome, não quero dizer quem, mas há aqui quem minta!", trovejou o magistrado.

Num caso que evidencia também a relação do povo com a justiça, à qual se teme, mas muito mente, Cristina negou que tivessem por hábito jogar juntos ao Euromilhões, dizendo que o sucedido naquele dia fora uma vez sem exemplo: como estava a trabalhar e não podiam ir apostar, pediu ao namorado que o fizesse por si, dando-lhe os números e as estrelas. Luís, ao invés, sustentou que apostavam por junto desde sempre, havendo a promessa de partilharem os prémios felizes. E mais disse que a chave fora de sua autoria, como, aliás, de todas as outras apostas que fizeram juntos, e, inclusive, que tinha deitado o boletim fora, só dando a Cristina o talão. "Alguém está a cometer uma completa fraude", desabafou o juiz, cansado de tanta inverdade.

Na audiência de julgamento, provou-se que jogavam juntos há muito tempo, contra a afirmação de Cristina, mas também se provou que fora ela a dar-lhe a chave da vitória, contra o que Luís afirmara. Ou seja, e em suma, ali não houve inocentes: ambos mentiram em tribunal e, pior ainda, fizeram-no de uma forma descarada e grosseira. Sentença justa teria sido tirar o prémio aos dois, dá-lo à caridade, mas se a isso mandava a Moral, não o permitia o Direito, sendo este caso também, e entre muitas outras coisas, um exemplo ilustrativo das não fáceis relações entre o ético e o jurídico.

Portugal dividiu-se então entre os Simões e os Ribeiros e a saga do "casal do Euromilhões" logo despertou os profissionais do bitaite, milhões deles. Em rodas de amigos e em intermináveis conversas de café, travaram-se mil razões, que de racional nada tiveram, pois, como é evidente, esta querela situou-se sempre, do princípio ao fim, no domínio da emoção, ou da violência e paixão, se quisermos. Aos que então opinaram, esgrimindo falsos moralismos, deve dizer-se que, à vista de 15 milhões, todos teríamos feito exactamente o mesmo do que aqueles dois, ou pior. Na apreciação do caso, não faltou o classismo, até o sulismo elitista (como se, acaso tudo se passasse numa cidade, não fosse igual a ganância), com os jovens barcelenses a serem retratados como dois lapuzes provincianos, muito bimbos, que se digladiavam e insultavam à vista de um país inteiro, ele de ar aluado, apalermado, e ela de triplo queixo, anafadita. No calor da contenda, o advogado de Cristina não hesitou sequer em classificar Luís como um "lobo mau", ao invés do "cordeirinho" por que se fazia passar, e em qualificar o seu comportamento de "terrorista", figurando-o como um talibã de Barcelos ou um Bin Laden minhoto.

Aos que fustigaram a ganância dos dois jovens - de facto, bárbara e despudorada - deveria lembrar-se, contudo, as fraudes que a todo o dia ocorrem pelo país fora, as corrupções e os figurões, como se, num mundo tão cão, Cristina e Luís tivessem de ser sumamente virtuosos, mais do que nós todos.

Por isso, insiste-se no que dissemos ao início: isto não foi, ou não foi apenas, uma luta monetária, toda centrada na massa. O que se processou em Barcelos e em Guimarães, anos a fio, foi uma pugna por questões de honra, de orgulho ferido, com Luís a afirmar-se burlado pela família da mais-que-tudo e Cristina a alegar que nunca perdoara ao namorado ter intentado uma acção sem antes falar com ela, e logo no Dia das Mentiras, 1 de Abril de 2008. A moça terá ficado "desfeita" e, em razão disso, só em razão disso, decidiu terminar o namoro, asseveraram à imprensa os moradores na freguesia onde vive, com uma das suas tias a bradar ao Diário de Notícias que a sobrinha "foi roubada e que o prémio é todo dela!" (DN, de 31/3/2009).

À época, Cristina vivia com os pais em Remelhe e estudava Farmácia em Famalicão, na Escola Superior de Saúde. Passou a sair de casa somente para ir às aulas e ao cabeleireiro, sempre na companhia da mãe, com "medo de ser roubada". "Foi a minha primeira e única namorada", contou Luís aos jornais, adiantando que se conheceram na escola, em 2003, quando ambos frequentavam a EB2/3, em Barcelinhos, e começaram a namorar dois anos depois, em 2005 ("não foi amor à primeira vista"). Ela é Capricórnio, ele do Escorpião, e o retrato que de ambos fizeram os respectivos vizinhos mostra que, além de uma figadal disputa entre Montéquios e Capuletos, aqui ocorreu também uma acesa briga de freguesias, muito bairrista e tribal, como aqueloutra que, anos antes, dividira de morte os povos gaienses de Crestuma e Lever (a questão, como é sabido, estalou em Maio de 1983, por causa de uma placa colocada numa barragem, e só terminaria 17 anos depois, em Dezembro de 2000, com uma decisão do Tribunal Constitucional; de permeio, houve cargas da GNR, tumultos e confrontos diários, cenas de pancadaria, casais brigados e até divorciados, querelas de historiadores, entre outros mimos).

A população de Courel, talvez na mira da guita, descreveu Luís Ribeiro como um rapaz muito atilado, avesso a noitadas, retratando-o como "trabalhador, humilde e calmo". "Gosto mais de trabalhar e ir até ao monte", afiançou o moço aos repórteres, mostrando as mãos calejadas, e acrescentando que não apreciava discotecas e que preferia o cinema ou o são convívio com os amigos no café, todos torcedores do Benfica.

Em contrapartida, as gentes de Remelhe caracterizaram Cristina como "uma rapariga modesta", que, pasme-se, "veste calças de ganga". A sua família, ainda aparentada ao bispo D. António Barroso, era "das mais ricas da localidade em terrenos" (este "em terrenos" diz tudo), coisa que permitiu à jovem ter até viatura própria, um VW Golf, de cor cinzenta. Mais disseram, todavia, que ela "era mais simpática antes de ganhar o Euromilhões". E, por fim, adiantaram um pormenor relevante, talvez a chave de tudo: os pais eram primos direitos e queriam casá-la com um primo seu, dono de uma vacaria.

Luís Ribeiro ainda intentou uma acção contra a Caixa de Crédito Agrícola, por causa dos juros da fortuna, mas perderia em toda a linha. "Obviamente!", respondeu o seu advogado à pergunta sobre se iriam interpor recurso. Estávamos em 2017, sendo possível que o caso ainda siga o seu curso nos nossos tribunais, desconhecendo-se quanto gastaram até à data Luís e Cristina em custas judiciais e nos honorários dos causídicos.

No acórdão da Relação de Guimarães, disponível na Internet, afirmou-se que Luís estudava na Universidade Lusíada, pólo de Famalicão, mas informações mais recentes dão-no ainda na agricultura, ajudando os pais, e a "trabalhar como um galego", segundo o próprio. Realizou alguns investimentos patrimoniais, que esperemos o eximam à sina de muitos dos bafejados pela sorte, como Adriano Casal, um arrumador de 70 anos, que, em 2001, esbanjada a fortuna súbita, 300 mil euros de lei, voltou ao velho ofício dos carros, com 80 euros no bolso. Noutro caso, Luís Lopes, 54 anos, ladrilhador na Caparica, que ganhou 8 milhões, em 2009, mas vive hoje com a conta congelada, a casa arrestada e um sem-fim de processos e de acusações contra a sua ex-advogada de Almada, com a qual manteve, disse, "uma grande amizade". E, noutro caso ainda, este famoso e mediático, Amélia de Jesus, antiga empregada de limpeza do Marco de Canavezes, ganhou 51,6 milhões de euros ao jogo, os quais lhe permitiram deixar casas para os filhos todos, uma capela em memória da mãe e viajar pelo mundo fora ("aquilo era fruta a toda a hora, água quentinha, uma maravilha", recorda as férias no Ilhéu das Rolas, São Tomé). Em 2013, pouco depois de ganhar o prémio, Amélia casou-se com Abílio, um ex-encarregado de obras, com o qual acabou por se desentender por causa da sua fortuna. Divorciaram-se em fogo e, apesar de Amélia ter jurado que o ex-marido a "ameaçava, coagia e agredia", o Tribunal Cível da Póvoa de Varzim condenou-a a pagar-lhe a bela quantia de 16 milhões de euros (cf. Notícias Magazine, de 21/10/2020).

Na estúpida "briga euromilionária" (Correio da Manhã), seguida com avidez pelos media, Cristina Simões e Luís Ribeiro destruíram as suas vidas - e muito mais do que pensam. Naquela cegueira do ódio e do dinheiro, perderam, além da dignidade e do respeito mútuos, o bem mais precioso de qualquer milionário da sorte, o anonimato e a privacidade, garantes sem preço de uma vida tranquila e segura, imune a extorsões e raptos, ou a insistentes pedidos de empréstimo, de caridade, de ingente auxílio. Terão consigo os milhões, é certo, mas têm também consigo o pavor da inveja e da ganância alheias (de resto, iguais às deles), o medo de tudo e todos, uma desconfiança permanente no mundo e nos seus habitantes. A troco da lotaria, e pela forma com que a disputaram, ganharam um cancro na alma, um rato no coração, sempre a roer, sempre a roer, povoando-lhes as noites e os pesadelos.

"A lotaria na Babilónia era um jogo de carácter plebeu", escreveu Borges num conto famoso sobre o tema. Hoje tudo mudou, e os jogos de sorte e azar são transversais às várias classes sociais, mas, note-se, não iguais para todas elas. Se acaso Luís e Cristina fossem betos da Linha ou meninos da Foz de Douro, é possível que tudo se passasse da maneira que passou, ou pior, mas é igualmente provável que teriam sido mais protegidos, sobretudo deles próprios e da sua ganância insana. No fundo e no fim de contas, este caso também mostra que, sendo Portugal uno e um, há nele vários países.

*Prova de vida (23) faz parte de uma série de perfis

Historiador. Escreve de acordo ​​​​​​​com a antiga ortografia.

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