São 17.00 de uma terça-feira e dois associados do Grupo Desportivo da Mouraria (GDM) já tocam e cantam fado no palácio da Travessa da Nazaré, rua onde funciona aquela associação cultural e desportiva desde 1936. Diferentemente de outras tantas coletividades de Lisboa, que veem a gentrificação na capital ameaçar a existência de lugares com história quase ou mais que centenária, o Desportivo da Mouraria, por ser uma associação municipal, ainda consegue “proteger-se” no mercado..“Aqui não há a hipótese de venda. Até porque estamos protegidos legalmente, através de um acordo feito entre associação e Câmara há muitos anos. Enquanto pagarmos a renda à Câmara, não saímos daqui. Já houve quem se tenha mostrado em investir no espaço, fazer estacionamentos, hotel, sabe-se lá o quê, mas não enquanto estiver aqui. Até porque, hoje em dia, estamos saudáveis financeiramente”, conta Francisco Gomes, conhecido apenas como Sr. Gomes, proprietário do bar do GDM, que ali trabalha há mais de 40 anos..As finanças do Desportivo da Mouraria, no entanto, nem sempre estiveram saudáveis. Para Francisco Gomes, foi fundamental reestruturar o clube para o manter vivo e fazer com que fosse viável pagar as contas do dia a dia e a renda à Câmara. Segundo o próprio, o clube encontrava-se “às moscas” alguns anos atrás, quando Francisco Gomes buscou modernizar a comunicação da associação: criou página nas redes sociais, incluiu o espaço em roteiros por Lisboa, passou a alugar a esplanada no terraço com vista para o Tejo e o ringue de futebol. Isso tudo sem aumentar o preço das imperiais (1 euro) ou da já famosa “Bifana à Mouraria”, de sua autoria..A remodelação na comunicação e no espaço do clube fez com que cada vez mais jovens ficassem atraídos pelo GDM. Atualmente, é difícil conseguir mesa na esplanada do terraço em tardes de verão. Portugueses e estrangeiros passaram a frequentar o Desportivo da Mouraria, o que fez com que o clube pudesse equilibrar as contas. Francisco Gomes garante que, hoje em dia, o GDM não tem dívidas, algo inimaginável alguns anos atrás: “Estava muito mal. Para sobreviver foi preciso muita organização e, claro, apoio e presença da malta jovem. Sem isso, não funcionaria”, conclui..No leque de atividades para os associados, o grupo oferece aulas de yoga, treinos de futsal e uma conhecida Escola de Fado, que promove aulas de canto e de guitarra. Aliás, há quem diga nas mais diversas coletividades de Lisboa que o fado surgiu justamente nestas associações culturais da cidade: “Havia até olheiros de fadistas nas coletividades, tal e qual os olheiros de futebol”, conta António Lucas, Presidente da Assembleia Geral do Mirantense Futebol Clube, associação visitada pela reportagem do DN logo a seguir à passagem pela Mouraria..A história de resistência das coletividades.Outras associações de Lisboa não têm a mesma sorte do GDM e lidam com a incerteza do futuro no dia a dia. Entre Arroios, Penha de França e São Vicente, são diversas as coletividades desportivas e culturais que fazem resistir o espírito de bairro destas freguesias. O apoio da “malta jovem”, mencionado por Francisco Gomes, é justamente o que associações como o Mirantense Futebol Clube, fundado em 1935, procuram conseguir para manterem os espaços vivos. A alta dos preços em Lisboa nos últimos anos, no entanto, afastou a clientela habitual. “Muitos dos nossos sócios tiveram de sair do centro da cidade com a gentrificação, trocaram zonas como Santa Engrácia e Graça por áreas mais periféricas, especialmente os jovens. Historicamente, as coletividades são frequentadas por quem é do bairro: se um dos dois tem de sair, seja a coletividade, como quase foi o nosso caso, seja os frequentadores, a coletividade acaba”, frisa António Lucas..Segundo ele, além de serem o “berço do Fado”, as coletividades são espaços que, sobretudo, foram criados como um ponto de encontro para os trabalhadores do bairro descansarem ao final do dia. Outros três pilares também foram fundamentais para construir a histórias dessas associações..“O primeiro foi a política, a contestação ao regime salazarista. As pessoas reuniam-se nas coletividades para poderem definir politicamente o que haviam de fazer. Depois, a área cultural, algo que se tem perdido hoje em dia. E por fim o desporto, no caso do Mirantense, ténis de mesa, andebol, futebol, várias modalidades que ao tempo se praticavam. Os rapazes que jogavam à bola na rua descalços não tinham outra hipótese senão recorrer às coletividades, que davam apoio a esses jovens. Lembro-me de que muitos não tinham água em casa e tomavam banho nos chuveiros das coletividades do bairro”, completa António Lucas..Em 2020, após 85 anos no mesmo lugar, o Mirantense recebeu uma ordem de despejo e teve de abandonar a sede. Por sorte, um dos sócios do clube era dono de uma loja ao lado e abriu as portas de uma parte da loja que estava sem uso para que o Mirantense pudesse ter uma casa sem se afastar do bairro e de seus associados. Segundo os membros dos órgãos sociais, isso garante que estejam seguros “pelo menos por 5 anos”, quando se encerra o contrato de arrendamento..“Não sabemos o que vai acontecer connosco, mas passa muito por tentar atrair pessoas jovens para agarrar nisto e mostrar resistência. Não é fácil, tem de se ter muito amor para gerir uma associação, mas eu cresci nisso e, mesmo com o meu trabalho, as minhas outras obrigações, não consigo largar. É uma paixão, que inclusive já passei para a minha filha. Ela quis fazer aqui o aniversário de 18 anos”, conta emocionada Michele Faro, presidente do Mirantense..Mirantense Futebol Clube, uma das mais antigas Associações Culturais e Desportivas de Lisboa. (Leonardo Negrão).A Academia Recreio Artístico (ARA) é outra que teme passar pelo que o Mirantense sofreu, embora, no caso desta que é considerada a associação mais antiga de Lisboa - fundada em 1855 - o contexto onde se insere seja ainda mais complexo. A ARA fica na Rua dos Fanqueiros, em plena Baixa de Lisboa. No ano passado, recebeu a notícia de que o proprietário que havia adquirido o espaço em 2018, um investidor vietnamita que beneficiou de um visto gold e que passou pelo espaço uma única vez, iria vender o prédio. A menos que consiga reverter a decisão, a coletividade mais antiga de Lisboa tem uma ordem de despejo prevista para 2027. Ao contrário do Mirantense, no entanto, não há alternativa viável que permita à coletividade mudar de sede - e nem vontade por parte dos associados..“Nós só temos interesse em existir na Baixa de Lisboa, não faria sentido ir para outro lugar. A Câmara poderia arranjar-nos, como já fez noutros casos, umas instalações em Chelas, por exemplo. Mas nenhum dos nossos associados e dos nossos vizinhos vão a Chelas, portanto, isto seria acabar com a ARA. Temos duas hipóteses: ficar na Baixa, ficarmos nestas instalações, que é o nosso primeiro interesse, ou então uma solução alternativa nas proximidades, em qualquer outra instalação que nos possa surgir, mas deve ser difícil”, lamenta Armando Oliveira, presidente da ARA há mais de 14 anos..Academia Recreio Artístico (ARA). Situada na Baixa de Lisboa é uma das mais antigas de Portugal e está sob ameaça de fechar as portas. (Leonardo Negrão).Antes da venda ao investidor vietnamita, Armando conta ter tentado adquirir o espaço. Acrescenta que conseguiu, com apoio dos sócios, que informa serem mais de 300 - pagam uma cota simbólica de 2 euros por mês -, ter levantado quase todo o valor necessário para a compra. O presidente da ARA afirma ter juntado mais de 300 mil euros, ficando a faltar 120 mil para ter o dinheiro necessário para a aquisição. Pediu ajuda à Junta de Freguesia e à Câmara para tentar fechar negócio, mas, sem sucesso, o edifício da ARA acabou por ficar na mão do investidor. Agora, com a ordem de despejo, Armando Oliveira diz que a Câmara se mostra disposta a ajudar, algo que, garante o próprio, poderia ter sido feito antes. “A Assembleia Municipal de Lisboa fez aprovar uma recomendação para que o município adquira as nossas instalações ou então as exproprie para que possamos edificar. Esta deliberação foi aprovada, agora desce às comissões na Assembleia Municipal, estão a ser desenvolvidos os trabalhos. Estamos na expectativa de saber o que daí vai resultar”, conclui Armando Oliveira..Além de associações como a ARA, o Mirantense e a Mouraria, foram muitas as coletividades recém-criadas em Lisboa neste século. A zona dos Anjos foi uma das que mais recebeu associações, como, por exemplo, a Sirigaita, na Rua dos Anjos. Fundada em 2019, com espaço que junta shows, performances e debates políticos, a Sirigaita sofreu um despejo em março de 2024, mas ainda não entregou as chaves do edifício. Os sócios agora tentam arranjar uma nova casa..“O nosso primeiro passo foi tentar negociar com o proprietário, o que não deu resultados práticos. Decidimos ficar aqui, não só por uma questão prática, mas porque queremos fugir da lógica do mercado, é uma maneira de nos posicionarmos e resistirmos contra a especulação e a gentrificação nesse bairro, que é cada vez menos de quem verdadeiramente lhe pertence”, explica um dos sócios da Sirigaita..O despejo de históricas e recentes comunidades em Lisboa tem gerado reação e a criação de diversos coletivos em defesa da habitação e da vida destas associações. “Habita!”, “Stop Despejos” e “Porta a Porta” são algumas delas. A próxima grande manifestação em defesa da habitação está marcada para o dia 28 de setembro..nuno.tibirica@dn.pt