Há Unidades Locais de Saúde (ULS) que já estão a dizer aos utentes que a marcação das consultas do dia, da forma a que estavam habituados, vai terminar. Ou seja, estão já a comunicar que o agendamento vai passar a ser gerido pela Linha SNS24, mesmo depois do fim do Plano de Inverno 2024-25. Até ao final do ano passado, antes de este plano entrar em vigor, o utente podia ir ao seu centro de saúde para pedir uma consulta do dia, ou consulta aberta, ou enviava um email ou ligava telefonicamente. A partir de agora, e sobretudo nas unidades que aderiram ao projeto Ligue Antes, Salve Vidas, estas consultas poderão passar a ser geridas na totalidade pela Linha SNS24. O utente terá de ligar para este sistema de pré-triagem, tal como já acontece no acesso às urgências hospitalares, para depois ser referenciado para a consulta do dia (ou dos dias seguintes) no seu centro de saúde. Isso significa que, nesses casos, a triagem deixa de ser feita diretamente pelos profissionais dos centros de saúde. Aliás, e como o DN comprovou, há algumas Unidades de Saúde Familiar (USF) integradas em ULS que já aderiram ao projeto e que já estão com este tipo de triagem a 100%. Isto mesmo também foi dito ao DN pelo diretor dos cuidados primários da Unidade Local de Saúde São José (ULSSJ), em Lisboa. “Já temos USF que estão a usar este modelo de triagem a 100%, outras não”. Hugo Gaspar assume memo que este é o caminho que a sua ULS pretende seguir, mas cada USF está a adaptar-se ao seu ritmo: “Queremos trabalhar cada vez mais o projeto de referenciação nos cuidados primários, porque assim temos a certeza que a consulta do dia, ou consulta aberta, como quisermos, é utilizada correctamente para o seu propósito final, que é dar aos utentes o acesso a uma consulta rápida para o diagnóstico de doença aguda, de forma mais organizada”.Mas o presidente da Associação Portuguesa de Medicina Geral e Familiar (APMGF), Nuno Jacinto, alerta: “O conceito não está errado, mas tem de haver flexibilidade para o doente que vai diretamente ao centro de saúde, que liga ou que envia email. Se houver vagas alocadas à Linha SNS24 e vagas para quem vai diretamente, se calhar até é possível encaixar mais algum doente que necessite de ser observado. Se todas as vagas estiverem direcionadas para o sistema de pré-triagem pela Linha SNS24 estamos a perder flexibilidade e a proximidade com o doente”.Contactada pelo DN, para se saber se havia alguma indicação, até ministerial, no sentido de alargar aos cuidados primários a marcação das consultas do dia, a Direção Executiva do SNS respondeu não haver nenhuma medida ministerial deste tipo e que “as consultas do dia (consultas abertas) podem ser agendadas através de diferentes meios, nomeadamente: Linha SNS24; contacto não presencial (telefone, email ou outros meios disponibilizados pela unidade); contacto presencial (deslocação do utente à unidade de saúde)”. .Consultas no dia e diabetes controlada passam a contar na avaliação dos centros de saúde. No entanto, lembra que “as ULS são uma estrutura organizativa do Serviço Nacional de Saúde, com autonomia de gestão técnica e funcional”, podendo tomar “as medidas que têm por objetivo melhorar o nível de saúde da população inscrita e a qualidade e eficiência dos serviços prestados em conformidade com as diretrizes transmitidas pela DE-SNS e pelos Conselhos de Administração das ULS”.Já há 22 ULS que aderiram ao Ligue Antes, Salve VidasE é neste sentido que algumas ULS já estão a preparar o terreno para alargar ainda mais a pré-referenciação para as consultas do dia. Contudo, e como faz questão de sublinhar ao DN o diretor clínico da ULSSJ, “a consulta do dia jamais desaparecerá do centro de saúde”. Hugo Gaspar explica: “É uma consulta destinada à doença aguda, para o utente que tem uma febre, uma dor de ouvido, vómitos no próprio dia ou há mais de 24 horas e que necessita de aceder ao seu médico de família e aos cuidados de saúde primários. Portanto, estas consultas continuarão a existir com a implementação do projeto Ligue Antes, Salve Vidas. O que acontece agora é que desta forma todos os utentes têm a oportunidade de ligar para a Linha SNS24 e agendar a consulta do dia ou para o dia seguinte para o seu médico de família sem terem de se deslocar ao centro de saúde”.Já o presidente da APMGF recorda que a situação pode não ser assim de tão fácil funcionamento ou de habituação para os próprios utentes, sobretudo para os que estão integradas em zonas carenciadas de médicos de família ou que pertençam a uma faixa etária mais envelhecida, onde “o hábito é o contacto direto com o centro de saúde”, dando como exemplo a região onde exerce medicina. “Não estou a ver o idoso do meu Alentejo a deixar de ir diretamente ao centro de saúde para resolver o seu problema”, disse. Nuno Jacinto considera mesmo que a generalização do sistema até pode não ser benéfica para o médico. “Estarmos a criar mais um canal para gerir as nossas consultas de doença aguda pode ser um caminho perigoso para o médico. Estamos a abrir a porta a que, dentro em breve, todas as consultas possam ser geridas de forma automática e sem o nosso controlo”. E dá um exemplo: “Podemos chegar a um momento em que nos digam: ‘Quantas vagas tem para consulta de diabetes; e quantas para hipertensão?’ E depois tudo é marcado através de de uma central telefónica ou de uma máquina que gere a nossa agenda e as vagas”. O presidente da APMGF lembra que, se o caminho para o futuro for o da generalização do conceito de pré-triagem, “há profissionais que deixam de ser necessários e este não é um bom caminho de todo”, salvaguardando: “Não é o conceito de triagem que está errado, temos é de ter cuidado na forma como o aplicamos nos cuidados primários. Não podemos ser tão radicais”..Linha SNS24 atendeu mais de 3,5 milhões de chamadas em 2024 e mais de meio milhão já em janeiro. A referenciação pela Linha SNS24 começou em maio de 2023, como o projeto Ligue Antes, Salve Vidas, em várias Unidade Locais de Saúde do norte, nomeadamente na ULS Póvoa de Varzim e Vila do Conde, ULS Gaia/Espinho, ULS Entre Douro e Vouga, ainda com o ministro Manuel Pizarro. Mas, este Governo, decidiu alargá-lo a todo o país no âmbito do Plano de Inverno 2024-25, como forma de travar as idas às urgências hospitalares e aos centros de saúde que não fossem verdadeiras situações de “doença aguda”. Na altura, a tutela justificou a Portaria n.º 340/2024/1, de 19 de dezembro, com o objetivo de “melhorar a resposta durante a época das infeções respiratórias nas urgências hospitalares e nos cuidados primários”. E, neste momento, há já 22 ULS a funcionar neste regime, devendo até ao final deste mês haver mais oito que se juntam ao projeto.Triagem mais organizada pela Linha SNS24, diz médicoA ULS São José, que integra 9 polos hospitalares e 28 unidades de Cuidados Primários, para servir uma população de 430 mil utentes, tem 250 médicos nos cuidados primários e igual número de enfermeiros. Neste momento, Hugo Gaspar explica que o próprio Ligue Antes, Salve Vidas é “um projeto-piloto” e ainda “em fase de avaliação”. “Por isso, também estamos num processo de integração e de aprendizagem, mas o feedback que temos é muito positivo. Tanto para o utente, que através de uma chamada para a SNS24 tem automaticamente uma consulta agendada, como para os serviços. Há uma melhor organização e utilização das consultas do dia”, afirma, considerando mesmo que “existem muitas vantagens do método de triagem através da Linha SNS24 ”, destaca o médico.Confrontado com o facto de as consultas do dia poderem passar a ser geridas totalmente pela Linha SNS24, e de isso poder afastar os utentes da Saúde de proximidade, Hugo Gaspar rejeita a ideia: “Não existe perda de contacto nem afastamento, porque não há diminuição da acessibilidade do utente ao médico de família. O número de vagas para consultas do dia não diminui. E com a linha SNS24 há a capacidade de fazer a triagem e de enviar a situação para os cuidados primários ou, se for mais complexa, logo para a urgência hospitalar”, defende ao DN.Nuno Jacinto, por sua vez, recorda que “o projeto Ligue Antes, Salve Vidas tinha como objetivo inicial a referenciação dos doentes para os serviços de urgência hospitalar, para impedir que estes ali chegassem pelo próprio pé e sem necessidade de ali acorrer. O conceito tem vindo a estender-se progressivamente aos cuidados primários, mas, como digo, não podemos ser radicais. A decisão do número de vagas destinadas à triagem, pela Linha SNS24, tem de ficar ao critério de cada centro de saúde. Até pode haver situações de exceção em que a unidade considera que deve atribuir todas as vagas ao modelo de referenciação da Linha SNS24, mas não pode ser uma imposição pela adesão ao projeto Ligue Antes, Salve Vidas”.O diretor clínico dos cuidados primários da ULSSJ, destaca que, ali, cada USF está a organizar a sua agenda: “Temos unidades com 11 médicos e outras com oito. E cada médico de família dá em média 4 a 6 consultas do dia e há uma distribuição proporcional. Existem unidades que já só fazem consultas do dia por referenciação da Linha SNS24, outras não. Depende da organização de cada uma”. No entanto, garante que “se o utente for diretamente à sua unidade de saúde familiar, como ia antigamente, não é mandado para trás. Existindo vagas, é observado naquele dia ou no dia seguinte. As USF são responsáveis pelos seus utentes”.Apesar de a ULSSJ servir uma zona antiga de Lisboa, marcadamente com população envelhecida, Hugo Gaspar refere que “o reporte que temos das nossas unidades é que as coisas estão a decorrer bem. Mas vamos aos poucos - vamos vendo e avaliando”.