“Ligaram do Hospital de Santa Marta. Há uns pulmões para ti”
Global Imagens - Álvaro Isidoro

“Ligaram do Hospital de Santa Marta. Há uns pulmões para ti”

A única unidade de transplantação pulmonar no país ultrapassou os 400 doentes tratados. Um marco que será assinalado na presença do Presidente da República e da ministra da Saúde. Para o coordenador da unidade celebra-se “um caminho de maturidade”, mas a meta é fazer mais, até porque há 60 doentes em lista de espera.
Publicado a
Atualizado a

Paulo Fradão tem 55 anos e diz que já vai na sua segunda vida. Uma até aos 48 e outra que já tem quase sete anos e que começou a 30 de maio de 2017. “É uma nova vida. E completa. Para quem não corria e andava de forma muito limitada, para quem não conseguia subir umas escadas e estava a oxigénio há 12 anos, de repente poder respirar, caminhar e dançar foi uma segunda chance para uma nova vida.”

Paulo é um dos 410 doentes tratados na Unidade de Transplante Pulmonar da Unidade Local de Saúde (ULS) São José, em Lisboa, a funcionar no Hospital de Santa Marta. É a única no país desde 1991 a fazer esta transplantação, desde “que o dr. Rui Bento e a sua equipa fizeram o primeiro transplante cardiopulmonar”.

Ao longo do tempo, pode mesmo dizer-se que, pelo menos, 820 pulmões, tendo em conta que cada doente recebe por norma os dois, já passaram pelas mãos das equipas daquele serviço e com bons resultados. Mas, como diz o coordenador da Unidade de Cirurgia Torácica do Hospital de Santa Marta, Paulo Calvinho, “queremos ir mais longe, fazendo mais”.

O número de transplantes do pulmão aumentou nos últimos dois anos. Em 2022, bateu-se o primeiro recorde com a transplantação de 76 pulmões em 38 doentes. No ano passado, foi alcançado novo máximo: 88 pulmões em 44 doentes. Este ano, já foram transplantados 11 doentes. “Mas não estamos satisfeitos. A nossa meta é chegar aos 60 a 70 doentes transplantados anualmente, daqui a dois ou três anos”, explica o coordenador. Só assim será possível dar resposta ao número de doentes que existem normalmente em lista de espera. “Estamos a fazer um caminho para chegar a bom porto, e acreditamos que com a aquisição da tecnologia que está prevista para muito breve este objetivo será possível alcançar”.


Por agora, e no dia de hoje, a ULS São José, o Hospital de Santa Marta, profissionais e doentes celebram a passagem da barreira dos 400 doentes transplantados, numa cerimónia a ter lugar esta manhã, a partir das 9.30, no Auditório da Reitoria da Universidade Nova de Lisboa, em Campolide, que conta com a presença do Presidente da República e da nova ministra da Saúde, Ana Paula Martins. 


E se os profissionais celebram um caminho feito, os doentes celebram uma nova vida, agradecem “a toda a equipa” e deixam uma mensagem de esperança: “Cada doente tem de pensar que será um caso de sucesso”, sublinha Paulo, mesmo depois de assumir que ele próprio começou por ter uma reação de medo, de receio, de nervos cada vez que pensava no transplante, até receber a segunda chamada para uma nova vida quando estava na consulta com a médica que o acompanha no Hospital Egas Moniz e que o referenciou para o transplante do pulmão. Que lhe disse: “Tem de ir já. Chegou a sua hora, algum dia tinha de ser.”


Depois de três a quatro anos de espera, à segunda foi de vez


Paulo recebeu uma primeira chamada do Hospital de Santa Marta para o transplante a 30 de agosto de 2016, numa noite em que jogava Uno com o filho mais novo e com os sobrinhos em casa. A tarde tinha sido passada em família e a petiscar caracóis e cerveja, porque nada fazia prever que ao início da noite o telefone tocasse, a mulher atendesse e lhe passasse a chamada: “É do Hospital de Santa Marta. Temos uns pulmões para si”. 


Normalmente é assim, por telefone, que os doentes sabem que a sua vez chegou. Paulo estava em lista de espera “há uns três ou quatro anos”, mas cada vez que pensava no transplante “tinha muito receio e ficava com uma tosse desgraçada, não comia, nem dormia”.


“Quando recebi aquela chamada fiquei nervosíssimo”, desabafa ao DN. Mas não foi naquela altura que sua vida mudou. “A enfermeira começou a fazer-me perguntas sobre se tinha jantado e o que tinha sido. E eu tive de dizer que andei a comer caracóis a tarde toda e que ainda me faltava fazer uma TAC. Ela falou com a dr.ª Luísa Semedo, que acabou por me dizer que então não poderia ser.”


Mas nem isso o acalmou: “Com os nervos fartei-me de vomitar e não dormi nada.” Paulo sofria de DPOC (Doença Pulmonar Obstrutiva Crónica) e há 12 anos que respirava à custa de uma garrafa de oxigénio. “Era fumador, mas em 1998 tive os primeiros sintomas da doença e deixei”, conta.


O início da doença fez com que começasse a ser acompanhado no Hospital Egas Moniz pela médica Helena Lucas, mas em 2005 o seu estado piorou muito, passando a respirar com a ajuda de oxigénio. Uns tempos depois foi referenciado para transplante pulmonar, mas só à segunda chamada é que este se concretizou.


“Foi uns meses após a primeira chamada, 30 de maio de 2017. Um amigo ia levar-me no seu carro ao Egas Moniz para uma consulta e o telemóvel começou a tocar, mas ia com o cinto e a garrafa de oxigénio e por questões de segurança não conseguia atender. Quando cheguei ao hospital vi que era a minha mulher. Liguei-lhe e ela diz-me: ‘Paulo, ligaram-te do Hospital de Santa Marta? Temos de ir já para lá. Há uns pulmões para ti’.”


“Ao contrário da primeira vez, fiquei calmíssimo. Falei com a minha médica e disse-lhe que tinha acabado de receber a chamada. Ela também me disse que era agora. Levei os exames que tinha feito e fui para Santa Marta. Esperei pela minha mulher sentado num pilar na rua à frente do hospital. Quando chegou, entrámos e ficámos a aguardar numa sala de espera onde estava outro casal, que também tinha sido chamado, e, a partir daqui, pouco mais recordo deste dia. A minha mulher é que me foi contando.” 


Paulo explica ainda que ele e o outro doente não se deveriam ter cruzado, mas, a verdade, é que “aconteceu e desde aí ficámos grandes amigos”. E se antes a vida “era difícil de várias maneiras, porque nos sentimos impotentes, porque o medo nos persegue, porque a doença traz outros problemas, como os financeiros, a partir daqui há uma nova vida”. 


Hoje, Paulo integra a Associação de Transplantados Pulmonares de Portugal (ATPP) e a cada doente com quem fala repete o que lhe foi dito pela presidente da associação: “Sei que cada caso será um caso de sucesso.” Atualmente, procura ajudar os outros desfazendo dúvidas e dando o máximo de informação, para que não receiem o transplante. “Digo-lhes para não perderem a esperança e que a vez deles há de chegar.”


Com mais apoio técnico será possível transplantar mais


O sentimento de que “tudo vai correr bem” é também transmitido pelos profissionais. Aliás, é isso mesmo que sentem ao longo destes mais de 30 anos de atividade. “Para a unidade, celebrar os mais de 400 doentes significa que celebramos um percurso, que foi difícil, mas pioneiro, que celebramos todos os intervenientes neste processo, desde o nosso hospital a todas as outras estruturas que nos apoiam nesta demanda - hospitais, gabinetes de referenciação, Força Área, INEM, etc. Significa que celebramos a maturidade um serviço prestado por um grupo de pessoas que fazem um trabalho que é absolutamente essencial”, destaca Paulo Calvinho.


Um trabalho que, diz, “é de missão, de interajuda e internacional”. Por isto também, e para se manterem os bons resultados na atividade, defende que é a hora de ir mais longe. “Com apoio técnico, por exemplo, malas que permitem manutenção do órgão durante 12 horas, poderemos avançar para um modelo mais abrangente de doação, como fazem a Áustria, a Alemanha, a Bélgica e a Holanda, que partilham entre si os órgãos disponíveis”, explica.


Portugal é dos países que está bem posicionado no ranking da doação, mas, mesmo assim, o médico do Santa Marta considera que este é o ponto em que “se marca passo na transplantação, não no sentido negativo, mas no sentido em que é preciso termos mais dadores e mais órgãos”.


“Já transplantamos 98% dos pulmões que nos são oferecidos e que têm viabilidade e compatibilidade. O nosso trabalho vai de Bragança a Vila Real de Santo António, os nossos dadores são de todo o país, mas é preciso continuar o trabalho de sensibilização de todos os profissionais para a doação e transplantação pulmonar, porque esta exige características específicas”, refere Paulo Calvinho. 


A transplantação pulmonar é feita, sobretudo, com dadores nacionais que sofreram paragens cardiorrespiratórias, mas há situações em que é necessário lançar alertas a Espanha para ver se há órgãos compatíveis. “Eles fazem o mesmo: este ano já vieram colher órgãos por duas vezes de dadores com 1, 80m e 1,90m de altura para quem não tínhamos doentes compatíveis”.


Mas, chegados aos mais de 400 doentes transplantados, os profissionais acreditam que com nova tecnologia é possível recolher mais órgãos que agora se consideram não estar em condições e alargar o espaço da doação para mais longe do que Espanha. A meta da unidade continua a ser a da excelência e os melhores resultados para os doentes. 

Portugal está a bater recordes também em toda a área da transplantação. Em 2023, foram transplantados 966 órgãos, segundo anunicou o então ministro Manuel Pizarro, e, em 2022, foram transplantados 814, o que nunca tinha acontecido. O fígado continua a ser o orgão mais transplantado. 

Artigos Relacionados

No stories found.
Diário de Notícias
www.dn.pt