Líder católico tira o tapete a Marcelo: "São pessoas, não são números"

Bispo José Ornelas, presidente da Conferência Episcopal, demarca-se da lógica quantitativa de Marcelo na análise do problema do abuso de menores na Igreja Católica.
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Em exatamente 2407 dias (seis anos, sete meses e dois dias) como Presidente da República (PR), nunca Marcelo Rebelo de Sousa se tinha colocado numa posição como aquela em que se colocou na terça-feira, sujeitando-se a duras críticas vindas de todos os lados, da extrema-esquerda à extrema-direita, passando por personalidades do PS e do PSD - um consenso na censura como nunca antes lhe tinha acontecido.

Ainda na terça-feira à noite, quando já se esforçava por controlar os danos da declaração incendiária que fizera ao final da manhã, em Belém, sobre a questão do abuso sexual de menores na Igreja Católica ("haver 400 casos não me parece que seja particularmente elevado, porque noutros países e com horizontes mais pequenos houve milhares de casos"), Marcelo parecia perplexo: "Fui mal interpretado, mas não percebo porquê".

Seja como for, na declaração inicial e, depois, na aclaração noturna de terça-feira ("este número [424 denúncias] não parece particularmente elevado face à provável triste realidade, quer em Portugal, quer pelo mundo"), o PR manteve sempre a mesma linha argumentativa, valorizando os números apurados pela Comissão Independente para o Estudo dos Abusos Sexuais contra as Crianças na Igreja Católica Portuguesa. Comentou o caso de forma quantitativa, distanciando-se, portanto, de um dos argumentos centrais do Papa Francisco: um caso que seja é um caso a mais, "uma monstruosidade".

Esta quarta-feira à tarde, numa conferência de imprensa, o presidente da Conferência Episcopal, José Ornelas, também bispo de Leiria-Fátima, recusou comentar toda a polémica em torno das considerações do Presidente da República (que em 6 de setembro enviou para a PGR reportes que recebeu, colocando Ornelas sob suspeita de ter encoberto casos de abuso de menores dentro da Igreja).

Contudo, não comentando diretamente as palavras do Presidente da República, fez sempre questão de sublinhar que o que importa, nesta questão, não são os números. Alinhado com Francisco, afirmou que, "qualquer número, é sempre demasiado", reforçando com a ideia de que "cada caso é uma derrota", porque "alguém foi espezinhado nos seus Direitos Fundamentais e de uma forma que é aquela que mais atingiria qualquer pessoa", além de que "contradiz radicalmente" o que é a Igreja.

"São pessoas, não são números. São pessoas com dramas muito grandes", insistiu. "É bom que se tenha uma declaração de todos, não são os números que me assustam. Este já é um grande número, mas denota e faz ver que há outros por trás", disse ainda - e deixando pelo meio apelos para que, quem tem razões para isso, use o direito de queixa à Comissão criada pela Igreja.

As criticas partidárias ao PR começaram na terça-feira - e a unanimidade serviu-lhe para perceber que tinha de se explicar. Apesar das aclarações, as críticas prosseguiram esta quarta-feira, e no mais inesperado dos cenários: a própria Presidência da República.

Ao longo do dia, o Presidente foi recebendo delegações parlamentares, sendo o tema o OE2023. E à saída das audiências os deputados dos vários partidos iam-se distanciando do Presidente, no que toca à questão do abuso de menores na Igreja - numa unanimidade a que só o PS e o PCP se furtaram. Em Belém, Jerónimo de Sousa considerou que as declarações de Marcelo devem ser "desdramatizadas". Em Viseu, onde foi por causa de uma conferência da AICEP, o primeiro-ministro solidarizou-se com o PR, considerando-o algo de uma "interpretação inaceitável". Contudo, reconheceu: "Às vezes não utilizamos a melhor expressão."

28 de julho "Aquilo que eu posso dizer - e nem é como Presidente da República, é como pessoa - é que o juízo que formulo sobre as pessoas e não os elementos da hierarquia católica, as pessoas D. José Policarpo e D. Manuel Clemente, é o de que não vejo em nenhum deles nenhuma razão para considerar que pudessem ter querido ocultar da Justiça a prática de um crime. É a opinião que eu tenho, pessoal."

5 de agosto "É preciso levar a investigação até ao fim, demore o tempo que demorar, independentemente do número de casos que houver e daí retirarem as ilações. Acho que a comunidade portuguesa e as várias instituições, no caso também da Igreja Católica, devem retirar as conclusões desse procedimento do passado."

4 de outubro (de manhã) "A Presidência da República enviou à Procuradoria-Geral da República, no dia 6 de setembro, uma denúncia envolvendo, nomeadamente, D. José Ornelas. (...) A 24 de setembro, o Presidente da República confirmou a D. José Ornelas esse envio, já depois de este ter sido contactado pela Comunicação Social sobre este assunto."

4 de outubro (à tarde) "Senti-me na obrigação porque, entretanto, me chegou uma versão apresentada pela Comunicação Social de que teria sido uma iniciativa por ser A, B ou C. E eu disse: "Olhe, senhor D. José, é muito simples, isto é a regra geral que se aplica e, portanto, a Comunicação Social diz que foi uma coisa pessoal, não foi pessoal.""

9 de outubro "[O telefonema ao bispo Ornelas] não só não parou a investigação como, pelo contrário, as investigações se aprofundaram para além - e eventualmente por causa - do telefonema."

11 de outubro (de manhã) "Haver 400 casos não me parece que seja particularmente elevado, porque noutros países, e com horizontes mais pequenos, houve milhares de casos."

11 de outubro (à noite) "Não é uma desvalorização. É precisamente eu achar que, infelizmente, as minhas expectativas eram muito superiores. Ainda bem que ficou em 424 casos, mas é curto para já, curto para a expectativa e para o universo de pessoas que contactaram com isso."

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