Elisa faz longos períodos de silêncio para conter as lágrimas. José Carlos sofre de depressão profunda. Fernando, em memória do pai, assume o ódio e a raiva. Luís vive com medo e obcecado pelo trabalho. Artur, massacrado por vários AVC, nunca mais dançou, ficando privado do seu único prazer. Dez anos depois, a queda do BES continua a assombrar a vida destas cinco pessoas. E de milhares de outras. A tristeza e o desalento apressaram a morte de muitas. Houve ainda as que decidiram pôr termo à vida. .Elisa Nunes inaugurou em Portugal o estatuto de vítima vulnerável, aplicado a quem apresenta especial fragilidade resultante da idade, estado de saúde ou deficiência, bem como de o tipo, grau e duração da vitimização haver resultado em lesões com consequências graves no seu equilíbrio psicológico, ou nas condições da sua integração social. .Os lesados do BES são de várias geografias e eram subscritores de produtos financeiros diferentes. Em 2017, o governo chegou a acordo com a associação Os Indignados e Enganados do Papel Comercial (AIEPC), assessorada pelos advogados Nuno da Silva Vieira e Luís Miguel Henrique, que representava aproximadamente 2 mil clientes, residentes em território nacional (continental) e detentores de papel comercial. Foi criado um fundo de recuperação de créditos que adiantou 75% das perdas a quem tinha investido mais de 100 mil euros e menos de 500 mil euros. Acima deste valor, a recuperação foi apenas de 50%, tendo os lesados renunciado a interpor ações contra o Novo Banco e entidades públicas. Um segundo grupo é composto por emigrantes na Europa, associados da AMELP- Emigrantes Lesados BES Novo Banco, detentores de produtos chamados “ações preferenciais”, que ficaram de fora do acordo com o governo, uma vez que a lei que permite criar fundos de recuperação de créditos não abrange acionistas. .Nuno da Silva Vieira, na representação desta associação, conseguiu chegar a um acordo com o Novo Banco, levando a que as vítimas recuperassem 75 % do seu investimento, sem renunciarem a qualquer direito. Estão em causa 1100 pessoas. .Um terceiro grupo incluiu os lesados das sucursais exteriores do BES, uma espécie de terra de ninguém porque, tratando-se de balcões de bancos estrangeiros, não foi viável chegar a acordo. Mesmo assim, em 2018, a Assembleia da República, por unanimidade, recomendou ao governo que fosse encontrada uma solução, criando para isso comissões arbitrais que apurassem os lesados elegíveis. A pandemia atrasou o processo e “a vontade política foi-se perdendo”, diz Nuno da Silva Vieira. A 3 de julho último, o advogado teve a primeira reunião com o governo de Luís Montenegro. Estão em questão 1300 pessoas. .No processo-crime contra o BES, Nuno da Silva Vieira representa 2014 pessoas com estatuto de vítima, sendo que 20% já receberam valores por conta dos acordos mas não prescindem dos danos morais pelo crime que sofreram. 80% não receberam qualquer valor e, por isso, pretendem receber danos patrimoniais e danos morais. Restam 300 clientes, subscritores, dispersos pelo mundo, de produtos mais exóticos. Estão também incluídos no processo-crime, exigindo indemnização por danos patrimoniais e danos morais..Elisa, 81 anos, reformada, do Funchal: “O meu sonho é poder ir a Fátima”.“Sei que já não vou usufruir daquele dinheiro. Se algum dia o tiver nas mãos, pagarei, antes de tudo, as minhas dívidas. Depois, farei os exames médicos que agora não tenho dinheiro para pagar. Por último, gostava de fazer obras nestas quatro paredes que comprei, com o meu marido, antes de ser roubada. Talvez um pequeno luxo: poder pagar a quem me arrumasse a casa e me fizesse a comida, porque já não consigo fazê-lo. .Não vou ter dias bonitos, sei disso. Podia ter tido umas férias, as que nunca tive, mas roubaram-me. Gostava de ir a Fátima. De voltar a Fátima antes de morrer. Só essa imagem faz-me chorar. .Tenho 81 anos. Aquelas eram poupanças de meio século de trabalho. O meu marido saiu para o Brasil com 17 anos. Aos 18, foi para a Venezuela, sozinho. Morou na rua para poder sobreviver. Um calvário de vida. Casámos em 1970, aqui na Madeira. Fui com ele. Na Venezuela, vivíamos de um pequeno restaurante, mais tarde de uma loja de ferragens. Para o bem e para o mal, nunca tivemos filhos. Não tenho quem cuide de mim na velhice. Sou viúva desde 2014. O meu marido morreu dois meses depois de saber que não tinha um tostão. Faleceu de doença, mas também de desgosto e de tristeza. Em maio de 2014, a minha casa, a minha vida, derrubou. .Lembro-me do dia em que fui ao banco levantar algum dinheiro para o mês. Não me deram um cêntimo. Já havia uns rumores de que o BES estava mal, e isso preocupou-me. No entanto, nada disse ao meu marido. Inventei uma desculpa, mas ele ouvia as notícias. Passado uns dias, regressei ao banco. Nada de dinheiro. Disseram-me que havia uns problemas em Lisboa, mas que podia estar descansada. Percebi que estava perdida. Quebrei. Chorei muito junto das minhas irmãs. Dois meses depois, o meu marido morria. Não sei como não fui com ele. Não conseguia dormir. À noite, no silêncio, sentia -me a asfixiar. O meu problema de coração aumentava. O médico insistia que deveria ser operada. “Uma urgência”, dizia. Pedi tempo para pensar. As minhas irmãs acabaram por me convencer. Mas eu já estava sozinha com Deus. Perdi a vontade de viver. .Tenho sobrevivido com o apoio da minha família. Só tenho dinheiro para o dia-a-dia. Vivo de ajudas. Não quero ter ódio, mas aquele senhor merece pagar pelo que fez. Não acredito muito na doença dele. Queria tanto ter tido uns dias bonitos com o meu marido, e não pude. .Dizem que que o senhor precisa de 40 mil euros por mês para viver, que a mulher dele disse isso no tribunal. Penso que será mentira. Como é possível dizer-se isso? Na verdade, há coisas que o dinheiro não paga - acelerou a morte do meu marido e, por pouco, a minha. O médico manda-me andar, passear, estar com pessoas. A mim só me apetece chorar. Não há dinheiro que pague esta tragédia..José Carlos Nunes, 52, desempregado, de Santa Maria da Feira. "Nunca fui ganancioso".“Nunca fui ganancioso. As taxas que o BES dava eram as normais na época. 3,25 por cento ao ano. Confiei na minha gestora. Há 12 anos que lidava com ela. Achava que tinha feito um depósito a prazo, ainda mais porque era considerado um cliente muito conservador, que não arriscava. Confiava tanto que fiz a aplicação por telefone. Nunca mais me preocupei com aquilo. .Perante os rumores, fui falar com ela. Garantiu-me que havia provisão para cobrir o valor. Saí de lá mais descansado, ainda que tenha ponderado retirar o dinheiro. Disse-me que só no final do prazo. .Lesados do BES: José Carlos NunesFoto de Amin Chaar.A aplicação venceu, fui levantar o meu dinheiro. Porém, voltaram a falar-me na provisão. Já não acreditei. .Destruíram-me a vida. Fiquei sem família - sei que é difícil lidar com uma pessoa que passou a entregar-se a esta causa de forma obsessiva. Perdi a minha mulher e o meu filho. Tem 14 anos, não o vejo há dois meses. O meu negócio - revenda de artigos religiosos -, dá prejuízo. Estou desempregado, com uma depressão profunda. Estive em mais de 80 reuniões. Cansei-me. Não consigo dormir. .Tenho psiquiatra de 4 em 4 meses e psicólogo de 8 em oito. Não saio de casa. Não saio da cama. Preciso de apoio clínico. Vivo sozinho. Apenas tenho os meus pais. Mas também eles perderam o que tinham com a queda do BES. No entanto, o meu pai, com 88 e a minha mãe, de 71, ainda são o meu suporte. Recebi uma parte do que me roubaram, mas o mal está feito. Perdi. Sim, penso muitas vezes num ponto final. A minha família ensinou-me a poupar, para ter uma velhice mais descansada. A minha mulher concordava, pensando sempre na formação do nosso filho. Fui a demasiados funerais ao longo destes dez anos. Muitas das vítimas que conheci suicidaram-se. .O meu pai teve 3 enfartes. Dizia que o BES era o banco mais seguro de Portugal..Fernando Almeida, 42, taxista, de Samora Correia: "O meu pai era muito poupado. Nunca teve um dia de férias"..No dia 15 de julho de 2019 encontrei o meu pai enforcado num vão de escada. Tinha 90 anos. Debaixo do tapete estava uma carta em que nos pedia desculpa. Por não resistir mais. .O meu pai era comerciante de fruta. Um de seis irmãos, saiu de casa aos 14 anos. Começou por arrebanhar as cascas que caem dos pinheiros, que vendia porta a porta. Filho de um alcoólico, e jogador, sofreu muito. Vendeu laranjas à beira da estrada para satisfazer as exigências do meu avô, que o obrigava a chegar com x dinheiro todos os dias. Matou burros para lhes vender a pele, e com esse dinheiro comprou uma bicicleta a pedais, uma jaula para guardar galinhas e patos que ia comprando pelas quintarolas aqui da zona, para vender na feira de Vila Franca de Xira. Conseguiu depois comprar uma mota e, mais tarde, uma carrinha. Passou a vender gado na feira da Malveira. Em boa hora trocou o gado pela fruta, o negócio de uma vida. .Lesados do BES. Fernando AlmeidaFoto de Paulo Spranger.O meu pai era muito poupado. Nunca teve um dia de férias. Nem gostava que eu tivesse. Certo verão, soube que eu ia passar uma semana a Portimão. “Estás rico”, comentou. O meu pai tinha cerca de 600 mil euros no BES, por 60 anos de trabalho. O banco era firme e a gestora de conta, mesmo depois dos rumores, nunca colocou a menor dúvida sobre a segurança do investimento. .O meu pai tinha duas paixões: o trabalho e o dinheiro. Primeiro, tentou matar-se a tiro. Valemos-lhe. Mas a vida deixou de fazer-lhe sentido. Era muito humilde, muito pacato, sem conhecimentos financeiros. Assinou de cruz. .O meu pai tinha um sonho: oferecer uma casa aos dois netos, meus filhos. A Ricardo Salgado desejava-lhe todo o mal do mundo. Viveu os últimos anos, os últimos segundos, com muito ódio nos olhos e no coração. Eu tenho um desejo de vingança, não consigo fugir a esse sentimento. Quero honrar a memória do meu pai. Não era um vigarista nem um ladrão. Sei que a certa altura estava a ir pelo caminho do meu pai. Parei a tempo..Luís Marques, 58 anos, engenheiro,de Barroselas: "No dia em que me disseram que não havia dinheiro, fui internado de urgência".Na passagem do dia 3 para o dia 4 de agosto de 2014, a minha conta do BES, onde tinha todas as minhas poupanças, ficou bloqueada. .Na altura, era emigrante em França onde o BES era visto como um império, uma casa muito segura. Fazíamos pura confiança. Quando percebi que a conta estava bloqueada, contactei o banco. Garantiram-me que o capital depositado estava seguro. Como estava em Portugal, dirigi-me ao BES de Barroselas. Falei com a gestora, que me garantiu não haver razão para preocupações. Hoje, poderia dar lições sobre meandros bancários, mas na altura não percebia nada do assunto. Acreditei. Pelo sim, pelo não, falei com o diretor do BES de Viana do Castelo. Conhecia-o há 30 anos. “Tenha calma, que isto está tudo seguríssimo”. No dia em que me disseram que não haveria dinheiro, fui internado de urgência. Tinha o lado esquerdo da cara, e o braço do mesmo lado, paralisados. A dor de cabeça, então insuportável, nunca mais passou por completo. Vivo com dor de cabeça crónica, apenas atenuada por comprimidos. .Lesados do BES: Luís MarquesFoto de Amin Chaar.Quando saí do hospital, pedi o divórcio à minha mulher. Disse-lhe para ela ficar com o que restava. Não aceitou. Esse gesto comove-me ainda hoje, muito. Tenho dois filhos, um com 33 e outro com 37 anos, e uma mulher que não me abandonou. .Sempre trabalhei, sempre me esforcei. Cheguei a fazer num ano escolar dois ou três. Formei-me com 19 anos. Estive nos trabalhos do túnel do Canal da Mancha, cheguei longe. Nasci numa aldeia de Viseu. Com dois anos, fui com a minha mãe para França. O meu pai já lá estava. Sempre tive ambição. Nunca pedi aos bancos um tostão emprestado. Encontrei neste processo, quer do BES quer do Novo Banco, mentirosos, vigaristas compulsivos. Com lenga lengas intermináveis. Apanhei a doença do medo e do trabalho. Trabalho de dia e de noite. Sou um revoltado. Cheguei a conhecer pessoalmente Ricardo Salgado. Assisti ao luxo em que vivia. Duvido muito que esteja tão doente quanto nos querem fazer crer. .O dia mais feliz da minha vida foi o dia 26 de abril de 2024. Ao fim de 5 anos, pude cancelar a conta no Novo Banco. Entretanto, a minha esposa também teve um AVC, ficando impedida de exercer a atividade. Sou uma pessoa perseverante, sempre disse que lutaria pelas vias legais. Mas sei que estamos a falar de pessoas que não merecem o pão que comem. Desde esse 4 de agosto de 2014 que vivo a tentar recompor a minha vida. Muitos sucumbiram. Aqui perto, um homem matou a mulher à facada, responsabilizando-a pelo que aconteceu. Ricardo Salgado deve cumprir pena adequada ao roubo. Foi o cabecilha. E o Banco de Portugal também devia estar no banco dos réus..Artur Ferreira, 82 anos, reformado, de Canidelo: "Dançar era o meu vício. Agora, não consigo".Era levado da breca, gostava tanto de dançar. Nunca bebi, nunca fumei. Dançar era o meu vício. Agora, não consigo. Pela tristeza que tenho e porque já levo oito AVC no corpo. Vejo o Ricardo Salgado na televisão e sei que estou muito pior do que ele. Ele sai pela mão da mulher, eu costumo sair de ambulância. Não lhe tenho ódio, nem raiva. Mas quero justiça. .Perdi a confiança total nos bancos. Às vezes, acordo otimista. Acredito que é possível reaver esse dinheiro e na justiça. Mas, regra geral, não posso ouvir falar dessa gente. Tive oito enfartes, e não me digam que não é por causa do que me fizeram. Até lá, ninguém me agarrava. .Era técnico oficial de contas, contabilista inscrito na Ordem. Sou casado, tenho dois filhos e uma neta. Toda a vida trabalhei. Os meus pais ensinaram-me a poupar. Em minha casa nunca entrou um centavo de que não se conhecesse a proveniência. Eu decidia onde aplicar o dinheiro. Havia uma regra de ouro: todos os meses o meu aforro tinha de subir um pouco..A certa altura, um extrato trazia menos 10 mil euros do que devia. Falei com a gestora de conta, que me disse tratar-se de um problema de informática. No mês seguinte, faltavam 40 mil euros. Comecei a ficar maluco. Novas desculpas. Pedi-lhe que me desse os 50 mil euros restantes. Disse-me que não podia..Nasci em 1942 no Porto. Fiz 82 anos há 8 dias. Deus há de trazer-me o dinheiro de volta.