Lepra é das doenças menos contagiosas e 90% da população mundial está imune

A identificação de dois casos importados de Lepra em Portugal voltaram a colocar a doença na ordem do dia. Os médicos que a tratam dizem que se "criou alarme", porque ainda há muita falta de informação. Só que tal faz com que o estigma social seja enorme, quando "a Lepra é uma doença que deve ser tratada como outra qualquer", diz Cândida Fernandes, coordenadora da consulta de referência para toda a região Sul do país.
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A manhã decorre com tranquilidade no pavilhão de consultas do Serviço de Dermatologia do Hospital dos Capuchos, que desde 2021 funciona no modelo de Centro de Responsabilidade Integrada (CRI). É ali que os doentes diagnosticados com doença de Hansen, Lepra, são observados, tratados e acompanhados. Neste momento, há 16 doentes, seis em tratamento e dez em seguimento, já houve mais, nos anos de 1960-1970, mas também já houve menos, na década de 1990. Agora, a média, é de quatro a cinco casos por ano. Portanto, "haver dois casos de Lepra no nosso país não é nada de novo. Todos os anos temos três, quatro e cinco casos importados de regiões do mundo onde a doença ainda é endémica, como América do Sul, Ásia ou África", afirma ao DN a coordenadora da consulta de Hansen do CRI Dermatovenereologia do Centro Hospitalar Universitário Lisboa Central. A médica Cândida Fernandes, que se dedica a esta doença desde que iniciou o internato da especialidade, no Hospital Curry Cabral, em 1992, destaca mesmo que, "nos últimos dez anos o número de doentes não tem aumentado, mas houve anos em que havia só um a dois, agora são, em média, cinco, mas ainda assim é um número muito residual", o que a leva a defender que "a Lepra é uma doença que tem de ser tratada como outra qualquer. De todas as doenças contagiosas é das menos contagiosas, é tratável e curável".

De acordo com as referências da Organização Mundial de Saúde (OMS), e como sublinha Cândida Fernandes, "estima-se que 90% da população mundial seja imune à Lepra". Em Portugal, por exemplo, há mais de 20 anos que não são diagnosticados casos endémicos - ou seja, novos casos em doentes portugueses. Todos os casos registados neste período são casos importados. "Os últimos casos que temos são, na sua grande maioria, oriundos do Brasil, mas também da Índia, do Bangladesh, e alguns esporádicos de África, São Tomé e Príncipe, Cabo Verde e Angola", explica a clínica. Mas do Brasil há doentes que já chegam à consulta dos Capuchos referenciados pelas unidades onde estavam a ser tratados no seu país de origem, para manterem a terapêutica. Os outros já acabam por ser diagnosticados no nosso país, tanto nos cuidados primários, nas urgências ou por um dermatologista.

Nesta fase, diz a coordenadora da consulta, a maioria dos doentes tem entre 30 a 50 anos, não havendo predominância de um ou de outro género, uns vivem em Lisboa, outros no Alentejo e no Algarve, mas "o que todos nos pedem é que não lhes dificultemos a vida, porque precisam de trabalhar e nem sempre podem deslocar-se ao hospital para fazer as consultas e levar a medicação todos os meses". Cândida Fernandes destaca que o objetivo do serviço é mesmo não complicar a vida dos doentes que, já por si, e na sua maioria, são pessoas fragilizadas, "alguns nem legais estão, e o que tentamos é, aos que vivem mais longe, entregar-lhes a medicação, numa farmácia comunitária próxima da residência". Obviamente, com as cautelas necessárias e para que o doente não seja exposto, porque, a grande questão, e "quando se noticia que há dois casos no país, um na Madeira e outro no Porto, o estigma social em relação à doença aumenta e os doentes ainda ficam mais isolados. No caso da Madeira é quase certo que a população irá saber de quem se trata, e tal deveria ser evitado", defende a médica. Aliás, a diretora do CRI, a médica Maria João Paiva Lopes, argumenta que "a situação criou alarme, desnecessariamente", ambas confessam terem ficado indignadas e que a solução passará por se disponibilizar mais informação à população, porque hoje "a Lepra é uma doença com cura".

Quando questionamos o porquê do estigma social, Cândida Fernandes ri-se e explica: "Vem do próprio nome, Lepra. É um nome que aprece na Bíblia, em filmes antigos, como o Ben-Hur, e a ideia que perdura é a de uma doença muito contagiosa com um fim inevitável, muita deformidade. E isto assusta as pessoas". Aliás, "a palavra Lepra ainda é muito usada para expressar uma doença grave ou uma situação má. O dizer-se a alguém "és leproso" é quase um insulto. Há toda uma memória histórica que permanece e que a estigmatiza".

A médica conta mesmo não esquecer situações associadas a este estigma que ainda fragilizam mais os doentes. Por isso mesmo, "a maioria não diz que está doente, por vezes, nem a pessoas próximas e nem no trabalho". Por tudo isto, nenhum dos doentes ali seguidos aceitou contar a sua história. Os doentes sabem que o silêncio pode evitar muita coisa, desde situações de violência a despedimentos. Cândida Fernandes dá exemplos: "Lembro-me da história de uma mãe a quem foi feito o diagnóstico a um filho adolescente, com 14 anos. E quando contou ao namorado da doença foi alvo de violência física. Se alguém disser no trabalho que tem a doença, a tendência também é para que seja despedida. Portanto, as pessoas tendem a proteger-se, ocultando, não dizendo e isolando-se ainda mais, porque podem ter de lidar com outras implicações". Tendências que a médica assegura terem a ver com "a falta de informação e com a falta de contacto com a doença", porque, senão, as pessoas saberiam que, "após a primeira toma do medicamento, o doente torna-se não contagioso, embora o tratamento seja longo, de seis a 12 meses. Do ponto de vista do contágio o risco diminui muito rapidamente e, na maior parte das vezes, os doentes não ficam com sequelas, podendo ter uma vida perfeitamente normal."

A situação pode ser mais complicada quando a doença é diagnosticada em adolescentes. "Quanto mais nova é a pessoa maior é o impacto da doença na sua vida", sublinha Cândida Fernandes. "Tivemos dois doentes que vieram do Brasil em que o diagnóstico foi feito na adolescência e o impacto na sua vida foi muito marcante, desde isolamento social e escolar e depressão, tendo havido necessidade de acompanhamento psiquiátrico especializado", quando, se o estigma não fosse tão forte, a doença poderia ser vivida de outra forma. Daí que defenda: "É preciso desmistificar a doença, fazendo a população perceber que a realidade atual é a de que a Lepra é tratável e curável, e que o estigma pode trazer muita fragilidade aos doentes e muitas complicações às suas vidas".

A consulta que hoje funciona no CRI do Lisboa Central "é herdeira da consulta original da doença de Hansen, criada no Hospital Curry Cabral, em 1961, para acompanhar a noção que estava a desenvolver-se na altura que era a de estes doentes não serem internados de forma obrigatória para fazerem o tratamento, como era no princípio do século XX", explica a médica. Até aos anos de 1960-1970, a política de tratamento para a Lepra era a de internar obrigatoriamente quem recebia o diagnóstico, normalmente na Leprosaria Rovisco Pais, mas "o aparecimento de novos medicamentos, como de antibióticos, veio permitir que os doentes passassem a ser tratados em ambulatório. E foi nesta altura que se criou a consulta no Curry Cabral, por ser um hospital de doenças infecciosas".

Mais de 60 anos passados, o estigma permanece e a consulta também, apesar de haver muitos menos doentes, mas Cândida Fernandes explica que é a forma de se manter a situação monitorizada. "A consulta está atualmente organizada para funcionar uma vez por mês, já que o número de doentes não justifica que seja mais frequentemente, e se estes não tiverem nenhuma complicação, a terapêutica que fazem é dada de três em três meses. Portanto, se não tiverem queixas não se justifica que venham ao hospital mais vezes", argumenta.

Sobre se a situação em Portugal pode estar subdiagnosticada, quer até pela falta de contacto com a doença por parte dos próprios clínicos que não sejam especialistas, a médica também é perentória ao afirmar: "Não considero que seja um diagnóstico que os médicos não dermatologistas façam com facilidade, o diagnóstico pode levar mais tempo, mas o diagnóstico é feito. Ou seja, não me parece que haja doentes com Lepra não tratados. Às vezes, a dificuldade dos doentes é chegar a um dermatologista que faça o diagnóstico".

De acordo com a OMS, o estado avançado da doença só é definido a partir do momento que as lesões neurológicas são visíveis, e a maioria dos doentes que vão à consulta dos Capuchos "não tem sequelas do ponto de vista neurológico visíveis. A maioria traz queixas, como de falta sensibilidade, mas não está numa fase avançada".

A médica explica que a Lepra é uma doença neurocutânea, que atinge a pele e o sistema nervoso periférico, podendo manifestar-se, dependendo do estado da doença, por lesões cutâneas, que são as que chamam mais a atenção, mas pode dizer-se que "é uma doença que tem manifestações muito diversas". O importante é a sociedade saber que cerca de 90% da população mundial está imune, não se infeta, porque o risco de contagiosidade é muito reduzido. A diretora do CRI Dermatovenereologia, Maria João Paiva Lopes, faz questão de reforçar que "a Lepra é uma doença menos contagiosa do que a tuberculose. Portanto, não se justifica o estigma social que ainda tem".

anamafaldainacio@dn.pt

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