Lei do Tabaco. Especialistas acusam poder político de cedência aos interesses comerciais

Lei do Tabaco. Especialistas acusam poder político de cedência aos interesses comerciais

Pizarro prometeu muito, mas fez uma “lei frouxa”. Ana Paula Martins colocou a prevenção do tabagismo na gaveta. “Tivemos outras prioridades”, diz fonte do Ministério da Saúde ao DN.
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"A prevenção do tabagismo não pode ser um não-assunto em Portugal.” O alerta vem da pneumologista Sofia Ravara. Professora da Universidade da Beira Interior, membro da Fundação Portuguesa do Pulmão (FPP), Ravara aponta o dedo: “A resistência sistemática dos governos e decisores políticos em avançar nas políticas públicas preventivas de tabagismo, privilegiando os interesses comerciais e negligenciando a saúde e o bem-estar dos portugueses, é uma irresponsabilidade política inaceitável.”

Primeiro, o Governo de António Costa. “Deixou cair a proposta de lei que continha um pacote robusto de medidas necessárias que permitiriam travar o consumo de tabaco e proteger a população da exposição ao fumo de tabaco.” O ministro Pizarro “partiu cheio de boas intenções”, mas no final apenas cumpriu a obrigação de transpor as medidas da Diretiva Europeia, já então com três meses de atraso: a equiparação dos cigarros eletrónicos ao tabaco tradicional para efeitos das regras de venda, publicidade, apresentação de produto e consumo, “desaproveitando uma oportunidade única de implementar novas medidas”.

Depois, o Governo de Montenegro. “Nada fez para continuar a discussão das medidas da proposta de lei anterior e nem sequer aumentou a taxação do tabaco prevista anualmente no Orçamento do Estado”, dando um sinal claro daquilo a que vinha: colocar o combate ao tabagismo na gaveta. E se Pizarro justificou o recorte da proposta inicial com a pressa em aprovar a legislação por interrupção da legislatura, o ministério de Ana Paula Rodrigues não nega o desinteresse: “Tivemos outras prioridades”, diz fonte próxima da ministra.

Prioridades das prioridades

“O tabaco continua a ser o maior responsável pelo top-3 da mortalidade em Portugal: doenças cardiovasculares, doenças respiratórias e cancro, nomeadamente o do pulmão”, diz Daniel Coutinho. “Se isto não é uma prioridade...”, pergunta-se o coordenador da comissão de tabagismo da Sociedade Portuguesa de Pneumologia. Para concluir que “o problema é outro e é de falta de coragem política”.

Foram vários os especialistas que alertaram os responsáveis políticos para a urgência de se olhar, de novo, para a lei. “Senhores deputados, não se esqueçam da Lei do Tabaco”, escrevia em julho de 2024 o médico Boléo-Tomé. As prioridades estão há muito elencadas pelos cientistas. “Portugal precisa urgentemente de políticas de controlo de tabaco para ontem”, diz ao DN Daniel Coutinho. A saber, indica Ravara: “aumentar a taxação de todos os produtos de tabaco e nicotina, de modo que se reflita no aumento do preço; alargar a proibição de usar tabaco e dispositivos de nicotina a todos os espaços públicos fechados sem exceção e a espaços públicos exteriores que causem exposição ao fumo de tabaco aos não fumadores, como esplanadas, terraços, paragens e plataformas de transportes, estádios e outros recintos desportivos; garantir a aplicação e a fiscalização da proibição de patrocínios e apoio financeiro da indústria do tabaco; além da proibição da publicidade, promoção dos produtos de tabaco e nicotina em eventos culturais, desportivos, discotecas, bares e locais de venda e nas redes sociais; garantir o acesso a programas abrangentes de cessação tabágica, reforçando a rede de consultas especializadas no SNS e na comunidade, como uma linha telefónica de apoio; implementar avisos de saúde e embalagens neutras desprovidas de cor e design de marca em todos os produtos de nicotina; proibir a comercialização de dispositivos de nicotina descartáveis; expor e travar a interferência da indústria na tomada de decisão de política de saúde pública”.

Sem este pacote, “não há combate eficaz ao tabagismo”, defende Ravara. De acordo com a Organização Mundial de Saúde, o período de tempo entre a aplicação de medidas rigorosas de controlo do tabaco e a redução do número de mortes por tabagismo é de cerca de trinta anos.

As liberdades inglesas

As leis restritivas antitabágicas convocam, no meio político e na sociedade em geral, um debate sobre os direitos individuais.

Foi por isso envolta em controvérsia que a proposta inicial levada a Conselho de Ministros em Maio de 2023, presidido por António Costa, mereceu críticas acesas mesmo dentro do grupo parlamentar socialista pela matriz considerada “proibicionista”, avançando com uma série de restrições ao consumo e venda, como por exemplo a proibição de fumar ao ar livre no perímetro de hospitais e escolas, à porta de bares e restaurantes e esplanadas parcialmente cobertas.

“O problema dos políticos não é com a liberdade individual. Estamos a falar de proteger a Saúde Pública, que é uma obrigação constitucional”, lembra Ravara. “O problema real é o receio de enfrentar a indústria. Na Assembleia da República, a única entidade ouvida pela Comissão de Saúde é a Tabaqueira, subsidiária da Philip Morris International, a única que tem um conflito de interesses irremediável, enquanto as sociedades científicas não foram ouvidas.”

Como exemplo do que deve acontecer “num país que zela pela saúde da população e sabe gerir as prioridades governativas, e não cede à interferência da indústria do tabaco”, a especialista cita o caso do Reino Unido. “Depois da queda de um Governo (primeiro-ministro Sunak) que propôs uma lei robusta de tabagismo, mas não teve oportunidade de a implementar, o novo Governo e o Parlamento eleitos sequencialmente aprovaram no primeiro ano do exercício governativo, por esmagadora maioria, uma lei ainda mais inovadora e completa do que a lei proposta pelo Governo anterior.”

Uma lei que consigna a proibição de venda de tabaco e cigarros eletrónicos às gerações nascidas depois de 2009, gerando uma primeira geração de não fumadores. “A proposta foi apoiada pela maioria da população. Em Portugal, não vemos a sociedade, falo por exemplo de associações de pais, a pressionar o poder político”, diz Ravara, para quem o tabagismo é uma epidemia pediátrica. “Promover a saúde e prevenir doenças é a melhor estratégia para garantir a sustentabilidade do SNS”, é outro dos argumentos da pneumologista.

As medidas de controlo de tabagismo estão reunidas no tratado internacional da OMS (Convenção-Quadro de controlo de tabagismo da OMS) que Portugal ratificou, como Estado-membro da OMS e da UE, ficando vinculado a implementar as medidas de acordo com as suas diretrizes. “Ou seja, os governos de Portugal também não cumprem os seus compromissos internacionais”, diz Ravara.

Proteger as crianças e os jovens

“Fisgar a próxima geração: como a indústria do tabaco capta jovens clientes” é o título do documento da Organização Mundial de Saúde datado de 2024. Segundo o mesmo, são cerca de 37 milhões de adolescentes entre os 13 e os 15 anos em todo o mundo que consomem tabaco e em muitos países a taxa de consumo de cigarros eletrónicos supera a dos adultos.

Embora as taxas de tabagismo estejam a diminuir na maioria dos países, a OMS alerta para que as mortes relacionadas com o tabaco irão manter-se elevadas nos próximos anos. Fumar mata mais de oito milhões de pessoas anualmente, incluindo 1,3 milhões de não-fumadores expostos ao fumo do tabaco.

Mesmo que o número de fumadores continue a diminuir, a OMS estima que o objetivo de reduzir em 30% o consumo de tabaco entre 2010 e 2025 não deverá ser alcançado, prevendo-se que apenas 56 países conseguirão atingir a meta, excluindo-se Portugal.

Em Portugal, os dados nacionais escasseiam. As Universidades da Beira Interior e de de Santiago de Compostela estimaram recentemente a mortalidade atribuída ao tabaco (MAT). Assim, em 2019, o consumo de tabaco causou 13.847 mortes, representando 12,3% da mortalidade total entre a população portuguesa com mais de 35 anos. Do total da MAT, 71,2% ocorreu em homens e 22,2% foram mortes prematuras; 42,5% foram devido ao cancro, 35,4% a doenças cardiovasculares e metabólicas e 22,2% a doenças respiratórias.

A mortalidade foi desigual nas várias regiões, com os Açores, a Madeira e o Alentejo a apresentarem excesso de mortalidade nas doenças cardiovasculares, o que se explica pela falta de acesso aos cuidados de saúde, além de taxas mais altas de tabagismo nestas populações. Nos homens, o cancro foi a principal causa de morte em todas as regiões, enquanto nas mulheres foram as doenças cardiovasculares e metabólicas.

Conclusão: Em Portugal, a carga de mortalidade por tabaco é alta e apresenta fortes desigualdades por região, sexo e idade. “A mortalidade causada pelo tabaco aparentemente menor entre as mulheres e em algumas regiões portuguesas irá aumentar drasticamente no futuro próximo, destacando a necessidade de acelerar o controlo de tabagismo, tanto ao nível nacional quanto regional”.

A isto acresce o alerta de Sofia Ravara: “O consumo de tabaco e nicotina tem aumentado por conta do marketing agressivo e eficaz dos novos dispositivos de tabaco aquecido e cigarros eletrónicos; e continua a ser um grave problema de saúde pública e a principal causa evitável de morte prematura em Portugal.”

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